Publicado na Revista Fórum
Por Marcela Canéro
Pontos e Pontões de Cultura são mais de 9.500 histórias que o Brasil ainda não conhece em toda a sua potência. Estão presentes em todos os estados, transformam vidas e territórios, e já foram reconhecidos como uma das maiores revoluções nas políticas culturais do mundo. Ainda assim, não são amplamente conhecidos: muitas vezes permanecem restritos às comunidades onde atuam, sem que sua força e alcance sejam percebidos pelo conjunto da sociedade. Essa falta de visibilidade revela uma lacuna na comunicação e na memória coletiva, porque se trata de uma experiência única, de base comunitária, que preserva tradições, fortalece identidades e projeta o Brasil como referência internacional em políticas culturais.
Quando Gilberto Gil esteve à frente do Ministério da Cultura, em 2004, a política foi criada e implementada. Foi ele quem criou o conceito “do in antropológico”, uma massagem no corpo social brasileiro capaz de ativar energias adormecidas e revitalizar a vida cultural onde ela pulsa de forma mais autêntica. Essa imagem traduz bem o espírito da política: reconhecer e apoiar aquilo que já existia nos territórios, dando condições para que se fortalecesse e se multiplicasse. É essa energia que os Pontos de Cultura mobilizam até hoje, que preserva memórias, dá continuidade às tradições e abre caminhos para a invenção do futuro.
Passadas duas décadas, a necessidade de despertar, manter e ativar essa memória é ainda mais urgente. Os tempos mudaram, e com eles mudaram também os meios de comunicação. Hoje, a circulação das narrativas precisa dialogar com as linguagens digitais, com a hiperconectividade em rede e com uma nova forma de viver e compartilhar informações. É nesse ponto que se revela o tamanho do desafio: como falar à geração que cresceu em um ambiente de comunicação e informação totalmente diferente?
Essa distância ficou clara em uma experiência pessoal. Recentemente, ao conversar com meu filho e um grupo de adolescentes, percebi que eles nunca tinham ouvido falar em Ponto de Cultura. O mesmo acontece com amigos próximos, com acesso à informação, hiperconectados, mas que também desconhecem a potência dessa política pública. Essa constatação mostra que o problema não é a falta de relevância, mas a ausência de difusão da informação: sem comunicação estruturada, histórias que deveriam inspirar o país inteiro acabam restritas.
Exemplos não faltam. Em comunidades quilombolas, os Pontos de Cultura foram responsáveis por manter vivas tradições como a capoeira angola, o jongo e o maracatu. Entre povos indígenas, fortaleceram a produção de artesanato, a preservação de línguas e a transmissão de saberes para as novas gerações. Em periferias urbanas, abriram espaço para jovens no teatro, na dança, na música, no hip-hop, criando alternativas de vida onde antes havia apenas exclusão.
Roque Antonio Gonzalez Menoret, 71 anos, responsável pelo Ponto de Cultura Resgate da Cerâmica Guarani, em Paraty, é fazedor de cultura há quase três décadas. Ele resume essa importância: “A associação existe há 27 anos, e desde 2010 é Ponto de Cultura. Nosso trabalho é manter viva a arte tradicional guarani, transmitindo os saberes para estudantes e professores do município. Até 2016 realizamos o evento anual Ymaguare Mitos, que ajudou a fortalecer a memória e a visibilidade da cultura indígena na região.”
Quando perguntado sobre a comunicação do Ponto, Roque foi direto: “No momento sou eu quem cuida. Quando temos um projeto, precisamos contratar alguém para gerar conteúdo. Precisamos de alguém que trabalhe com isso, mas só conseguimos quando temos projetos aprovados.Temos muitas atividades que passam despercebidas porque não temos estrutura para comunicar melhor.” O depoimento de Roque revela como a falta de apoio estruturado em comunicação limita a difusão das ações culturais, mostrando na prática que garantir o direito à comunicação é condição para efetivar o direito à cultura.
A experiência brasileira com a Política Nacional Cultura Viva e com os Pontos de Cultura é hoje fonte de inspiração para políticas públicas em diversos países. Argentina, Colômbia, Peru, México, Costa Rica e Espanha já desenvolveram programas inspirados nesse modelo brasileiro, que mostrou ser possível democratizar a cultura a partir da valorização do que já existe nos territórios. Trata-se de um legado que projeta a cultura brasileira como vanguarda de políticas públicas criativas, de base comunitária e enraizadas na vida cotidiana.
Mas para difundir e expandir esse legado nos novos tempos, é essencial fortalecer a comunicação. Não basta registrar ou divulgar pontualmente: é preciso construir redes digitais de cultura, capazes de conectar comunidades, compartilhar produções e criar visibilidade permanente. Como lembra Néstor García Canclini: “As comunidades se constroem também em redes digitais, em circuitos de intercâmbio que não substituem o território, mas o estendem, reativam e criam novas formas de convivência.” Essa visão é central para compreender o momento atual: os Pontos de Cultura têm como desafio ampliar sua presença nas mídias digitais, criando comunidades digitais de cultura.
Fortalecer a comunicação, portanto, é criar condições para que cada Ponto de Cultura produza e difunda suas próprias narrativas, participe de plataformas colaborativas, ocupe mídias digitais e se conecte em rede. É apoiar a produção audiovisual comunitária, formar comunicadores populares, estimular parcerias entre coletivos e veículos de mídia, e garantir conectividade e infraestrutura para que essa voz coletiva circule. Trata-se de transformar a comunicação em estratégia de crescimento e difusão, ampliando o alcance das vozes que já produzem cultura em cada canto do país.
Por isso, como jornalista cultural, faço aqui um apelo inclusive aos colegas de profissão: precisamos olhar com mais atenção para os Pontos e Pontões de Cultura. Eles não são apenas iniciativas locais, mas a prova de que o Brasil é capaz de inventar políticas culturais que inspiram o mundo. São guardiões da memória, da identidade e da cultura brasileira. E só terão sua grandeza reconhecida quando suas histórias circularem em rede, criando uma memória coletiva viva, compartilhada e presente.


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