sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Lula está certo!! O traficante do varejo não é o inimigo ontológico do Estado, mas seu produto histórico. Por Sérgio Alarcon

 Lula está certo - ainda que sua formulação tenha sido mal recebida num ambiente dominado pela histeria punitivista. Embora seu comentário sobre traficantes como “também vítimas dos usuários” seja formalmente um argumento equívoco (traficantes não são exatamente vítimas de usuários), ele tem todo sentido dentro de uma maneira de pensar  mais ampla sobre a economia global da droga e suas assimetrias.

"Toda vez que a gente fala de combater as drogas, possivelmente fosse mais fácil a gente combater os nossos viciados internamente. Os usuários são responsáveis pelos traficantes, que são vítimas dos usuários também. Você tem uma troca de gente que vende porque tem gente que compra. Então é preciso que a gente tenha mais cuidado no combate à droga…" leia mais em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2025/10/24/lula-se-retrata-apos-dizer-que-traficantes-sao-vitimas-dos-usuarios.htm?cmpid=copiaecola

O que chamamos de “traficante” é, na verdade, apenas o trabalhador do varejo do mercado ilegal - aquele que morre nas “guerras urbanas”, que enfrenta o BOPE sem camisa e de chinelo no pé. É o elo mais fraco de uma cadeia produtiva que reproduz, com brutal clareza, a estrutura do capitalismo dependente.

Ele é o operário precarizado da economia ilícita, o corpo descartável sobre o qual se ergue o lucro dos verdadeiros donos do negócio: os financistas, os empresários da lavagem, os políticos e policiais corrompidos que fazem o sistema girar.

Metade do Congresso que o bozismo elegeu tem alguma ligação com esse mercado - direta ou indireta - e dele depende para manter relevância econômica e peso político.

A “guerra às drogas” é o nome moral que o Estado dá à gestão desses corpos descartáveis. O poder moderno não se define mais apenas por quem vive ou morre, mas por quem pode ser morto sem escândalo. O jovem negro, periférico, envolvido no tráfico, é o exemplo mais cruel dessa necropolítica tropical: uma vida matável, morte administrável por uma contabilidade macabra feita em lugares como a Faria Lima.

Enquanto isso, o capitalista - o dono dos meios de produção desse mercado - vive tranquilo, em Alphaville, Leblon ou Miami, multiplicando seus lucros em dólares. É ele quem financia políticos como Jair e Tarcísio, ou o inexpressivo governador do Rio cujo nome nem lembro. Representantes de um moralismo que condena e mata o pobre delinquente e deixa nas sombras aquele que o seduz e contrata para a delinquência e para seu lucro insano. O bozismo é, sempre foi, nesse sentido, o braço político da milícia e do narcocapitalismo: a versão institucional da violência privatizada.

O tráfico e a milícia são, afinal, a mesma engrenagem - duas faces do mesmo mercado de controle territorial e acumulação primitiva. Um vende pó, outro vende segurança, mas também vende pó. Ambos produzem morte e lucro. E ambos servem a um mesmo senhor: o capital.

Por isso, o que Lula disse - e que tanto escandaliza as elites morais - é simplesmente o óbvio: o traficante do varejo não é o inimigo ontológico do Estado, mas seu produto histórico. A formulação correta e que escapou à Lula seria: “os traficantes do varejo são tão vitimas do mercado ilegal quanto os usuários, os consumidores desse mercado”… Vitimas do mercado ilegal cujo dono dos meios de produção não está nas favelas e periferias. E q nunca é pego pelas operações policiais.

Na verdade, toda a América Latina é vítima de uma economia mundial que precisa do tráfico para produzir cadáveres nos países latinos, controlá-los por dentro pelo ódio, pelo medo, pelo apartheid moral, e lhes impor políticas cada vez mais antipovo - tudo para facilitar o saque de suas riquezas.

É curioso que a chamada “guerra às drogas” só exista como guerrilha armada nos países do Sul Global, enquanto as nações que mais consomem drogas - Estados Unidos e Europa - jamais conheceram o equivalente das nossas balas perdidas.

Mais curioso ainda é ver Donald Trump assassinar pessoas no mar do Caribe, em águas internacionais, apenas com a alegação unilateral - sem julgamento, sem provas - de que seriam “traficantes”. E fazê-lo sem jamais ser chamado de terrorista.

Na visão de Trump, os “traficantes” e “bandidos” somos nós, latino-americanos. Eles, os grandes consumidores, seriam apenas pobres vítimas do vício - cidadãos enganados por nossa “barbárie tropical”. E o mais trágico é que muitos de nós, aqui mesmo, nos nossos países, batemos palmas para esse delírio colonial, repetindo o discurso do opressor como se fosse sabedoria moral.

Por isso digo e repito: Lula está certo!

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