Mesmo governos de esquerda, como se apregoa ser o Trabalhista inglês, procuram a todo custo entregar à iniciativa privada a responsabilidade pela produção e pelo crescimento?Qualquer governo democrático de hoje tem que se esforçar horrores para convencer a população da importância de se investir em artes. Com problemas como alimentação, transporte, saúde pública, educação, qual o motivo de investir na construção de teatros ou na manutenção de orquestras? Até as revoluções liberais que percorreram o mundo nos séculos XVII e XVIII, cujas mais marcantes que serviram de paradigma às outras foram a inglesa (1688), a americana (1776) e a culminante revolução francesa (1789), o apoio oficial dado à arte não precisava ser justificado, pois era parte inerente daquelas sociedades. A arte não era entendida como um gasto público, mas como uma questão de honra e de ostentação, perigosamente confundidos com patriotismo e nacionalismo.
François Matarasso, num texto chamado To Save the City: the Function of Art in Contemporary Europe Society, lembra-nos de que na peça ?Sapos?, de Aristófanes, escrita em 405 aC , o Deus do Teatro, Dionísio, viaja ao mundo subterrâneo na intenção de trazer de volta à vida Aeschylus ou Eurípedes. Quando então é indagado pelo por quê da necessidade de se buscar poetas ele responde numa frase clássica: ?para salvar a cidade?. Na comédia de Aristófanes, evidentemente, essa frase tem todo seu significado em relação ao enredo e à narrativa, o que a torna muito mais complexa. No entanto, o que nos interessa notar é que a arte, como vista pelos gregos, era uma parte ativa da vida social, capaz de salvar a cidade de sua decadência. Mas como e por que a arte teria tamanho poder? Exageros à parte, pois Aristófanes também era um poeta, a arte na Grécia antiga não se desgarrava da sociedade, não se considerava como algo além do mundo terreno embasada na falácia de que era uma obra estética e como tal distante do entendimento mundano. Quando Aristóteles discute a Estética, em seu famoso texto, de maneira alguma coloca a arte acima da sociedade, o que se comprova com a idéia fundamental da catarse, que une o espetáculo ao espectador. Na verdade, era a arte que trazia para as pessoas as feições, as roupas, os ensinamentos, a personalidade dos Deuses do Olimpo, tornando-os presente no dia-a-dia. Portanto, trazer a arte de volta à vida era uma maneira de trazer a identidade do povo, a religião e, como nunca poderia deixar de ser, o entretenimento que passava longe da idéia de alienação nos tempos de crise.
Esse exemplo grego não se repetiu exatamente durante a História. Em cada época a arte teve sua função e muitas vezes não das mais louváveis. Ao invés de salvar a cidade pode-se dizer que a arte já serviu muito mais para salvar o governo. De qualquer modo, com o fim dos governos aristocráticos outros setores da população passaram a fazer parte das decisões políticas através da escolha de seus líderes. Ainda não se fala em democracia, mas em participação burguesa na política. A partir de então o dinheiro do governo vinha através de impostos pagos pelos mesmos burgueses. O gasto público do Estado passou a ser sentido no bolso de quem governava. Até aí o orgulho que a arte despertava nos burgueses e nos ex-nobres (?esnobes?), além da falta de voz ativa que viesse da massa popular e que reivindicasse compromisso social, garantia dinheiro e apoio ao desenvolvimento cultural.
No entanto, o século XX foi marcado pela democratização – embora longe de ser completa – das instituições públicas. O voto em quase todos os cantos do mundo passou a ser universal aos maiores de idade, independente de sexo ou condição financeira. Com isso, a educação deixou de ser privilégio de poucos para se tornar generalizada e uma obrigação de Estado. A saúde teve de tratar com aquelas pessoas que antes eram meramente mão-de-obra. A partir da década de 30, Franklin Roosevelt implementou a rede de proteção social (Welfare State) nos Estados Unidos, que, das mais diversas maneiras, espalhou-se pelo mundo afora. Independente de qualquer discussão moral, tudo isso representou um grande aumento nos gastos públicos. Quando a conta teve de ser paga vieram as crises das décadas de 70 e 80 e um conseqüente afastamento do Estado da economia. Mesmo governos de esquerda, como se apregoa ser o Trabalhista inglês, procuram a todo custo entregar à iniciativa privada a responsabilidade pela produção e pelo crescimento. O ex-presidente do Banco Central do Brasil, Gustavo Franco, na revista Veja de número 1775, diz que as cartas de intenção de investimento do governo na verdade são ?cartas de intenções alheias, porque quem toma a decisão de investir é o setor privado?.
Um Estado com tantos gastos e já não tão presente na economia de um país não pôde mais manter a mesma relação com a arte. Do mesmo modo, a própria arte em relação à sociedade mudou. O mercado do artista não é mais o nobre ou o enriquecido burguês. Seu mercado está ampliado e visa também às pessoas afastadas da chamada alta cultura; procuram na arte, na verdade, um modo simples e rápido de entretenimento. O artista também não é mais aquela pessoa apoiada pelo Estado, seja de modo direto, com dinheiro injetado pelo em suas obras, seja através de cargos públicos, como nos mostra Antonio Candido em relação ao Brasil em ?Literatura e Sociedade?. Não é mais o Príncipe, em geral, que compra as obras de arte, mas o mercado, muitas vezes inculto e viciado. O artista se tornou parte da economia como uma pessoa comum em busca de reconhecimento profissional. Ele nem possui mais, para a sociedade em geral, a imagem de alguém com dom divino, nem é mais sentido como o representante e tradutor da alma de um povo. O artista na economia de mercado avassaladora das últimas décadas parece ter perdido sua aura. É necessário, agora, para qualquer governo ao investir na cultura justificar de modo prático e, se possível, estatístico, a razão pela qual a cultura deve receber recursos públicos. A arte, a partir de então, tem de passar por uma avaliação capaz de dizer se ela justifica o investimento público. No entanto, o instigante é definir o que terá peso nessa avaliação. Talvez seja nessa definição que se possa encontrar o que seja uma política cultural.
No fim dos anos 1980 um famoso estudo John Myerscough demonstrou a importância na economia do setor cultural. Com dados, Myercough procura convencer que uma política cultural bem elaborada pode levar a grandes lucros a uma grande movimentação financeira da nação. Essa assertiva pode ser confirmada com o dado do Arts Council of England que diz que o setor cultural teve um crescimento de 16% no ano passado, enquanto a economia em geral não cresceu 2%. Como se sabe, nos anos 80 a Inglaterra foi governada pelas idéias do liberalismo econômico de Margareth Tatcher. A política conservadora (que por mais antagônico que sejam os termos, não se opõe ao liberalismo econômico) adotada naquela época procurava desmontar a rede estatal, falida pelos gastos, como se justificava, nas áreas de segurança social. A idéia básica das propostas do Partido Conservador era transferir para a iniciativa privada tudo aquilo que era deficitário e que pesava nas contas públicas. Nesta barca também passou a navegar a nauseada política cultural, tendo de lidar a partir de então basicamente com o mercado.
O mercado não é inimigo da arte. Pelo contrário, é ele quem torna artistas em milionários e famosos. É ele quem cria milhares de empregos todos os dias para pessoas ligadas direta ou indiretamente à arte. E é ele quem já apoiou algumas das mais belas peças artísticas. No entanto, o mercado se torna de costas à qualquer coisa que não traga inerente a varinha de condão do lucro. É simplificador dizer que boa arte não dá lucro. Muitos grandes artistas, reconhecidos por críticos, conseguem atingir o grande público e por conseqüência agradar ao mercado. Outros, no entanto, não conseguem sair de um pequeno ciclo de admiradores que mal conseguem pagar os custos de uma obra. Guinga, um violinista carioca muito respeitado no meio musical, disse certa vez em um show que era besteira dizer que artista vira os olhos ao grande público. ?Meu sonho é ver meus discos serem vendidos nas Lojas Americanas?, ele dizia. O problema é que para isso, segundo ele, teria que mudar seu repertório, fazer uma música mais ?fácil?. Para ele, então, deixar o apoio à cultura à boa vontade do mercado é esmagador. De qualquer modo, o estudo de Myercough preponderou durante o governo Tatcher como justificativa para se apoiar a arte. Em outras palavras, dizia-se, arte dá lucro e isso basta para que seja apoiada. No entanto, embora não abandonada, a idéia de Myercough passou logo a ser revista. François Matarasso, no livro Defining Values: Evaluating Arts Programme, critica a idéia liberal que se criou durante o governo Tatcher. Diz ele:
But, despite appearances to the contrary, financial growth is not the only measure of public good. And while the arts certainly can contribute to our GNP, they contribute far more to the health, well-being, stability, development and happiness of British society. The problem is to express these contributions in ways which are clear, provable and helpful in making the most of culture and creative activity.*
Portanto, François Matarasso não procura negar mas acrescentar outros aspectos para a avaliação de um projeto artístico que vão além do índice no PIB nacional. Saúde, bem-estar, estabilidade, desenvolvimento e felicidade da sociedade britânica são aspectos que para esse escritor estariam acima da economia e que a arte poderia influenciar fortemente. Em outras palavras, ao invés do aspecto econômico o foco é sobre o social. O estudo de Matarasso, que na verdade faz parte de uma série coordenada por ele na editora Comedia, chamada Defining Values, busca definir os valores que devem ser empregados quando da avaliação de um projeto artístico. Durante todo o texto o autor desenvolve uma metodologia questionando o validade ou não de cada vetor a ser empregado. No fim, o que se nota é a dificuldade de se concluir como negativa ou positiva qualquer avaliação.
Evidentemente, há entre os estudos de Myercough e o de Matarasso uma guinada para o ideário da esquerda (ainda que discreta), do mesmo modo que o governo inglês, agora sob o comando do trabalhista Tony Blair. De todo modo, o que é comum é o que viemos falando até então: há, qualquer seja o governo e qualquer que seja sua visão da cultura, a necessidade de se justificar para a população o dinheiro investido. Isso pode parecer um entrave nas relações entre governo e entidades culturais, mas, na verdade, é a representação dos tempos democráticos. A cultura é um bem fundamental para uma sociedade por todas as justificativas possíveis, desde a grega até a econômica ou social, e um governo que reconheça isso, sem demagogia e democraticamente, pode, sem maiores problemas, mostrar à população a pertinência de se gastar o dinheiro público nesse setor. E o produto desse relação democrática, o que será inovador, poderá ser compartilhado por todos.
* ?Mas, apesar de parecer o contrário, crescimento financeiro não é a única medida do bem público. E enquanto as artes podem certamente contribuir para nosso ?GNP?, elas contribuem muito além para a saúde, bem-estar, estabilidade, desenvolvimento e felicidade da sociedade britânica. O problema é expressar essas contribuições por meios que sejam claros, demonstráveis e que contribuam para fazer o máximo possível de cultura e atividade criativa.?
Michel Nicolau é formado em Direito pela PUC-SP. Em 2001, desenvolveu projeto com a Fapesp chamado “Linguagens Cinematográfica e Literária nas obras ?Traumnovelle?, de Arthur Schnitzler, e ?Eyes Wide Shut?, de Stanley Kubrick”. Atualmente cursa ?Arts Planning and Manegement? na Universidade de Londres.
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Michel Nicolau
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