Por Redação – on 19/08/2018Categorias: Desigualdades, Destaques, Mundo
Diante do crescimento do populismo de direita em todo o mundo, 
Nancy Fraser sustenta: há revolta positiva no ar; é preciso dar-lhe 
sentido
Entrevista a Shray Mehta | Tradução: Inês Castilho
Quando emergem na cena política personagens como Jair Bolsonaro, 
parte da esquerda tende a uma atitude defensiva. Em face de um perigo 
corretamente associado ao fascismo e à violência, seria o caso de 
preservar a normalidade do sistema institucional, e mesmo de convocar 
alianças em seu favor. A repercussão que o discurso de ódio encontra 
entre parcelas amplas da sociedade indicaria que é hora de refrear o 
passo, até que a onda regressiva se esvazie.
Associada a um marxismo heterodoxo, a filósofa e feminista 
norte-americana Nancy Fraser julga que esta atitude não afastará o 
perigo — e pode, ao contrário, torná-lo maior. Uma visão particular 
sobre o chamado “populismo de direita” a faz  pensar assim. As maiorias,
 crê Fraser, têm boas razões para se revoltar contra a ordem. Ao longo 
das três últimas décadas, elas foram castigadas, na maior parte dos 
países, pelo desmonte dos direitos sociais. Em muitos casos, partidos 
associados à esquerda envolveram-se ativamente neste processo (no 
Brasil, vale lembrar a adesão do segundo governo Dilma ao “ajuste 
fiscal” proposto pela direita). Agora, há raiva e rancor. Enxergar os 
que nutrem estes sentimentos como “fascistas” só agravará o cenário.
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O feminismo é, para Fraser, uma chave para encontrar outro 
tipo de resposta. A crise global da esquerda está associada à transição 
do capitalismo industrial ao financeirizado — e, portanto, à ineficácia 
das antigas estratégias de resistência, que se baseavam na ação dos 
trabalhadores organizados. Agora, o centro de geração de valor e 
acumulação de riqueza do próprio sistema deslocou-se: já não é a 
fábrica, mas a produção imaterial, que se espraia por toda a sociedade. 
Não bastaria isso para enxergar a relevância (e a potência 
transformadora) de formas de trabalho não-reconhecidas e 
não-remuneradas, secularmente associdas às mulheres?
Como fazê-lo? Na entrevista a seguir, concedida em março
 deste ano ao jornalista indiano Shray Mehta, Fraser oferece algumas 
pistas. “O que necessitamos”, diz “é o que André Gorz chamou de 
‘reformas não-reformistas’. Elas melhoram a vida das pessoas aqui e 
agora, enquanto trabalham também numa direção contrassistêmica, em parte
 por desestabilizar o equilíbrio do poder de classe em detrimento do 
capital”. Porém, estas reformas, prossegue a filósofa, “não podem estar 
focadas exclusivamente na produção e trabalho remunerado. Precisam, 
igualmente, tratar da organização social da reprodução – a oferta de 
educação, moradia, saúde, cuidado das crianças, cuidado dos idosos, meio
 ambiente saudável, água, serviços, transporte, emissões de carbono – e o
 trabalho não remunerado que sustenta as famílias e os laços sociais 
mais amplos”.
Esta estratégia dá resultados concretos, mostra Fraser. A 
Inglaterra é o exemplo eloquente. Lá, boa parte dos votos de rancor 
dados ao Brexit, há dois anos, tem sido recuperada por Jeremy 
Corbyn, líder rebelde do Partido Trabalhista, que propõe precisamente um
 programa radical de recuperação e ampliação dos serviços públicos. Foi 
esta postura, aliás, que desarmou o partido xenófobo (UKIP) — líder do 
voto contra a União Europeia, mas hoje esvaziado e dividido. 
E no Brasil: qual o melhor antídoto contra os Bolsonaro e os 
Alckmin? A equação de Fraser sugere que talvez não seja uma esquerda 
defensora da ordem — mas, ao contrário, capaz de desafiá-la por meio de 
medidas distributivas e antissistêmicas bem mais profundas que as 
praticadas pelo lulismo, em sua primeira experiência de governo. Fique, a
 seguir, com as ideias da filósofa (A.M.)
Muito obrigado pela oportunidade desta conversa. O
 mundo está assistindo a uma aumento alarmante de líderes populistas e o
 padrão parece repetir-se com frequência em todo o espectro político, 
não restrito apenas ao Norte ou ao Sul globais. Como se pode 
contextualizar essa expansão do populismo como um momento histórico 
mundial? Ele teria uma dinâmica sistêmica que vai além das nações e está
 localizado na economia internacional e crise do capitalismo?
O populismo está situado numa dinâmica histórica mundial. Ele 
sinaliza uma crise hegemônica do capitalismo – ou melhor, uma crise 
hegemônica de uma forma específica de capitalismo que temos hoje: 
globalizado, neoliberal e financeirizado. Esse regime suplantou a 
variedade anterior, do capitalismo gerido pelo Estado, e dizimou todos 
os ganhos que as classes trabalhadoras haviam conquistado no período 
prévio. O populismo é, em grande medida, uma revolta dessas classes 
contra o capitalismo financeiro e as forças políticas que o impõem. Para
 entender a revolta, é preciso entender o bloco hegemônico anterior que 
está sendo rejeitado. Eu chamei esse bloco de “neoliberalismo 
progressista”. Como formação dominante, o neoliberalismo progressista 
estava centrado nos Estados mais poderosos do Norte global, mas tinha 
também postos avançados em outros lugares. Exemplos incluem o “Novo 
Trabalhismo” de Tony Blair, na Inglaterra, o “novo” Partido Democrático 
de Bill Clinton, nos EUA, o Partido Socialista na França, e os últimos 
governos do Partido do Congresso, da Índia.
O que é específico do “neoliberalismo progressista” é que ele combina
 políticas econômicas regressivas, liberalizantes, com políticas de 
reconhecimento aparentemente progressistas. Sua economia política 
baseia-se em “livre comércio” (que em realidade significa livre 
movimentação do capital) e desregulamentação das finanças (que empodera 
investidores, bancos centrais e instituições financeiras globais para 
ditar políticas de “austeridade” para o Estado por meio de decretos e da
 chantagem da dívida). Entretanto, seu lado de reconhecimento centra-se 
na compreensão liberal do multiculturalismo, do ambientalismo e dos 
direitos das mulheres e LGBTQ [lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros,
 queer]. Inteiramente compatível com o neoliberalismo financeiro, essa 
compreensão é meritocrática, oposta ao igualitarismo. Focados na 
“discriminação”, eles buscam assegurar-se de que uns poucos indivíduos 
“talentosos” de “grupos sub-representados” possam ascender ao topo da 
hierarquia corporativa e alcançar posições e remuneração paritárias com 
os homens heterossexuais brancos de sua própria classe.
O que não é mencionado, contudo, é que enquanto esses poucos “quebram
 o teto de vidro”, todo o resto continua preso no porão. De fato, o 
neoliberalismo progressista articulou uma política econômica regressiva 
com uma aparente política progressista de reconhecimento. O lado 
progressista de reconhecimento serviu como um álibi ao lado econômico 
regressivo. Isso possibilitou ao neoliberalismo apresentar-se como 
cosmopolita, emancipatório, inovador e moralmente avançado – em 
contraste com as classes trabalhadoras aparentemente paroquiais, 
atrasadas e incultas.
O neoliberalismo progressista foi hegemônico por umas duas décadas. 
Encabeçando vastos aumentos da desigualdade, foi uma grande bonança para
 o 1% global, mas também para o estrato gerencial profissional. Foram 
atropeladas as classes trabalhadoras do norte, que haviam se beneficiado
 da social democracia; os camponeses do sul, que sofreram desapropriação
 renovada por dívida, em escala maciça; e um vasto precariado urbano no 
mundo inteiro. O que se vem denominando populismo é uma revolta desses 
estratos contra o neoliberalismo progressista. Ao votar em Trump, no 
Brexit, em Modi (Índia) e no Movimento Cinco Estrelas na Itália, as 
maiorias declararam que se recusam a continuar desempenhanado o papel 
que lhes foi atribuído, de cordeiros de sacrifício, num regime que não 
tem nada a lhes oferecer.
Os movimentos poulistas são frequentemente apresentados como 
“fascistas”, assim que começam a articular suas demandas. Contudo, 
quando vistos como uma articulação das preocupações populares contra a 
apatia sistêmica, surge um cenário mais complexo. Por exemplo, a 
ascensão de Trump está baseada até certo ponto no apoio de uma base 
eleitoral que é apressadamente descartada como “homens brancos 
racistas”, embora possam ter votado em Obama nas duas últimas eleições. 
Num outro contexto, na Índia, a ascensão do nacionalismo hindu é taxada 
de fascista sem vê-la na perspectiva histórica, de reação às políticas 
neoliberais dos governos anteriores, do Partido do Congresso. Como 
perceber essa rejeição completa das preocupações populares no discurso 
público, por um lado, e a rotulagem da reação popular como fascista?
Concordo com sua visão nesse assunto. O liberalismo tem uma longa 
história de tentar deslegitimar a oposição a ele – estigmatizando seus 
opositores como, por exemplo, “stalinistas”, “fascistas”, o que seja. 
Isso é certamente o que está acontecendo agora com relação ao termo 
“populismo”. Essa palavra é hoje amplamente usada pelos liberais para 
desqualificar como ilegítimas as forças populares que estão se rebelando
 contra seu domínio. Mas você está certo, é uma tática defensiva por 
parte dos defensores do “neoliberalismo progressista”. Ao estigmatizar a
 oposição, eles esperam ressuscitar seu projeto. Nos Estados Unidos, 
estão procurando desesperadamente um novo líder, com mais apelo que 
Hillary Clinton, sob o qual possam restaurar uma nova versão do 
neoliberalismo progressista. Essa é a agenda de uma grande parcela da 
“resistência” anti-Trump. Não conheço o suficiente da política indiana 
para ter certeza, mas imagino que o Partido do Congresso está usando 
tática semelhante na esperança de retomar o poder.
Eu certamente jamais endossaria Trump ou Modi [o presidente da Índia]
 – isso é óbvio. Todavia, não estou infeliz com o fato de que quem foi 
massacrado pelo “neoliberalismo progressista” levante-se contra ele. Em 
alguns casos, é claro, a forma que esta rebelião assume é problemática. 
As populações frequentemente equivocam-se quanto à verdadeira causa de 
seus problemas, e fazem de bode expiatório os imigrantes, muçulmanos, 
negros, judeus e outros. Mas é contraprodutivo simplesmente 
desqualificá-los como racistas e islamofóbicos irredimíveis. É tolo 
assumir, de saída, que não há qualquer possibilidade de ganhá-los para a
 esquerda, seja para o populismo de esquerda ou para o socialismo 
democrático.
Além disso, a ideia de que todos esses eleitores não passam de 
racistas de carteirinha não bate com os dados. Nos EUA, como você disse,
 8,5 milhões de pessoas que votaram para Obama em 2012 mudaram de 
posição e votaram em Trump em 2016. Muitos deles eram pessoas da classe 
trabalhadora em comunidades do “cinturão de ferrugem”, que sofreram 
maciçamente com a desindustrialização, precarização e uma grande 
epidemia de adição a opiáceos, orquestrada pela indústria farmacêutica. 
Foram eles que entregaram a presidência para Trump. Em ambas as 
eleições, 2012 e 2016, votaram contra a economia neoliberal – primeiro 
para Obama, que fez campanha à esquerda, adotando a retórica do “Ocuppy 
Wall Street”, e depois para Trump, cuja campanha baseou-se não somente 
no reconhecimento excludente, mas também na economia populista. O que 
isso mostra é que as questões identitárias não estavam, na mente desses 
eleitores, acima de tudo. Nessas questões, eles foram bastante volúveis,
 agindo de diferentes maneiras, conforme as opções oferecidas. Ao 
contrário, foram consistentes na rejeição da terceirização, “livre 
comércio” e financeirização; no apoio à proteção social, pleno emprego e
 salários dignos. O mesmo é verdade, aliás, no Reino Unido. Muita gente 
da classe trabalhadora do norte da Inglaterra que votou a favor do 
Brexit apoia agora, fortemente, Jeremy Corbyn. Na França também, houve 
grande troca de votos, de um lado pro outro, entre a Frente Nacional [de
 ultra-direita] e o candidato de esquerda, Jean-Luc Mélenchon.
Meu ponto é que todos esses eleitores (e outros!) têm queixas 
legítimas contra o neoliberalismo progressista. Ao invés de 
desqualificá-los como racistas, a esquerda deve validar suas críticas. 
Ao invés de assumir que eles não têm jeito, devemos partir da premissa 
de que muitos eleitores populistas à direita podem ser, em princípio, 
conquistados pela esquerda. Precisamos atraí-los, validando suas queixas
 e oferecendo-lhes uma análise alternativa da verdadeira causa de seus 
problemas e uma proposta alternativa para resolvê-los.
Sobre oferecer uma explicação e uma visão alternativas, não é
 a primeira vez que ocorre essa troca de eleitores entre a esquerda e a 
direita. Sabemos que há precedentes históricos. A direita é capaz de 
estabelecer nexos casuais entre os problemas sistêmicos e grupos sociais
 tais como judeus, muçulmanos ou imigrantes, para sugerir que 
transformá-los em alvos pode resolver os problemas de emprego – isso tem
 apelo para as pessoas. Ainda que a esquerda tente intervir, a visão 
alternativa parece muito utópica para as pessoas. Você sente que ainda 
há uma lacuna crucial, na esquerda, com relação a isso?
Sim, eu concordo. Há com certeza uma lacuna programática na esquerda.
 Isso se deve em parte ao fim do comunismo soviético, que teve o infeliz
 efeito de deslegitimar não apenas aquele regime esclerosado, mas também
 ideias de socialismo e igualitarismo social em geral. A atmosfera 
resultante beneficiou grandemente os neoliberais, enquanto intimidava e 
desmoralizava a esquerda.
Mas isso não é toda a história. Nesse clima, uma parte significativa 
do que poderia ter sido uma opinião à esquerda foi direcionada para o 
liberalismo. Pense por exemplo no feminismo liberal, no anti-racismo 
liberal, no multiculturalismo liberal, no “capitalismo verde” etc. Essas
 são as correntes dominantes, hoje, de parte dos novos movimentos 
sociais, cujas origens foram, se não diretamente à esquerda, ao menos 
esquerdizantes ou proto-esquerdistas. Hoje, porém, falta-lhes até mesmo a
 mais pálida ideia de uma transformação estrutural ou uma economia 
política alternativa. Longe de buscar a abolição da hierarquia social, 
sua mentalidade está voltada a atrair mais mulheres, gays e não-brancos 
para os altos escalões. Certamente, nos EUA mas também em outros países,
 a esquerda foi colonizada pelo liberalismo.
A meu ver, o melhor caminho para reconstruir a esquerda é ressuscitar
 a velha ideia de um “programa socialista de transição” e dar a ele um 
novo conteúdo, apropriado ao século 21. Hoje, não podemos começar 
dizendo às pessoas que vamos socializar os meios de produção e em 
seguida elas terão empregos seguros e bem pagos. Essa retórica está 
vencida. O que necessitamos, ao contrário, é o que André Gorz chamou de 
“reformas não-reformistas”. Elas melhoram a vida das pessoas aqui e 
agora, enquanto trabalham também numa direção contrassistêmica, em parte
 por desestabilizar o equilíbrio do poder de classe em detrimento do 
capital. Além disso, essas reformas não podem estar focadas 
exclusivamente na produção e trabalho remunerado. Elas precisam, 
igualmente, tratar da organização social da reprodução – a oferta de 
educação, moradia, saúde, cuidado das crianças, cuidado dos idosos, meio
 ambiente saudável, água, serviços, transporte, emissões de carbono – e o
 trabalho não remunerado que sustenta as famílias e os laços sociais 
mais amplos.
Embora longe da perfeição, a campanha de Bernie Sanders nos EUA teve 
algumas ideias que apontavam nessa direção. Acima e além do aumento do 
salário mínimo para 15 dólares a hora, Sanders fez campanha pelo 
“Medicare para todos”, ensino universitário gratuito, reforma da justiça
 criminal, liberdade reprodutiva e a quebra dos grandes bancos – tudo 
isso ligado ao emprego. Suas ideias não foram inteiramente 
desenvolvidas, é certo. E elas são possivelmente mais social democratas 
do que democráticas socialistas. Mas representam a primeira inspiração 
de uma alternativa populista à esquerda, nos EUA.
A esquerda precisa também pensar sobre finanças e bancos. Um dos 
pesadores mais interessantes nesse assunto é Robin Blackburn, que 
defende que as finanças deveriam tornar-se um bem público, como 
costumava ser a eletricidade — o que significa que devia pertencer a 
todos e ser alocada publicamente. Decisões sobre crédito, onde investir e
 quais projetos financiar deveriam ser tomadas com base não na taxa de 
retorno, mas no valor e utilidade social. E deveriam ser tomadas 
democraticamente – por meio de conselhos eleitos, encarregados de 
representar as comunidades e outras partes interessadas. Essa é uma 
ideia muito interessante, porque precisamos, é claro, de um sistema de 
crédito. Abolir os bancos e instituições financeiras globais não é a 
resposta. O que é necessário, ao invés disso, é socializar as finanças.
Aliás, esses são tempos perfeitos para desenvolver um programa de 
esquerda para as finanças. Muita gente está agora aberta para esse 
problema. Afinal, era exatamente este o ponto do Occupy Wall Street. 
Todo mundo sabe que os circuitos de investimento que causaram a crise 
estão de volta a seus velhos truques e que nada foi feito no sentido de 
uma reforma estrutural para prevenir um derretimento global, no futuro 
próximo. Os norte-americanos estão bem conscientes de que Obama usou os 
impostos para socorrer os bancos, cujos esquemas predatórios quase 
derrubaram a economia global — mas não fez nada para ajudar as 10 
milhões de pessoas que perderam sua casa na crise de execução das 
hipotecas. Não há dúvidas de que muitos estão abertos a repensar esse 
sistema. Nessa questão, nem a direita nem o centro têm nada a oferecer, 
de modo que é uma grande oportunidade para a esquerda.
Gostaria agora de debater algumas preocupações teóricas. No seu artigo “A morada escondida de Marx” (“Marx’s HIdden Abode”), na New Left Review,
 você argumentou longamente sobre como o valor é produzido não apenas 
pelo trabalho produtivo, mas também pelo trabalho não remunerado. Este 
último seria o que, na verdade, suporta e sustenta o primeiro. A
 certa altura você sugere que uma parte da expansão do capitalismo é o 
“potencial emancipatório do capitalismo”. Esse “potencial emancipatório”
 é um tema muito debatido no pensamento marxista. Argumenta-se que 
frequentemente o trabalho não livre é ainda mais aprisionado, na 
dialética da “dupla liberdade” do capitalismo. Nesse contexto, como se 
pode entender o potencial emancipatório do capitalismo no que diz 
respeito ao trabalho não livre?
A expressão “dupla liberdade” é irônica. O lado positivo tem a ver 
com o fato de podermos circular e termos o direito de aceitar 
“voluntariamente” um contrato de trabalho. Mas, como você sabe, ela 
carrega um outro lado. Ao tornar-se livre para vender sua força de 
trabalho, uma pessoa também livrou-se de – quer dizer, foi privada de – 
ter acesso aos meios de subexistência e aos meios de produção. Marx 
ressaltava que os proletários haviam sido “libertos” do acesso à terra, 
ferramentas, matérias primas e outros bens de que necessitariam para 
organizar seu próprio trabalho e satisfazer suas necessidades. Em 
consequência, não têm escolha senão aceitar um contrato de trabalho com 
um capitalista. O lado bom da liberdade está severamente comprometido, 
quando não é simplesmente ilusório.
A liberdade no capitalismo é de fato uma faca de dois gumes. Se 
alguém é escravo ou servo, a possibilidade de tornar-se um trabalhador 
remunerado é certamente um passo adiante, como o próprio Marx 
frequentemente ressaltava. Mas isso não significa que essa pessoa se 
torne livre num sentido completo e robusto. Ao contrário, o proletariado
 torna-se sujeito de dominação. De modo que eu não superestimaria o 
potencial emancipatório do capitalismo, mas também não o ignoraria.
O ponto focal, contudo, é outro: o capitalismo não é um sistema 
uniforme. Ele não trata todo mundo do mesmo modo ao mesmo tempo. Mesmo 
quando “emancipa” alguns da dependência e trabalho forçado, 
transformando-os em proletários duplamente livres, ele deixa outros – 
muitos outros, de fato – em contextos e formas de dominação 
tradicionais. Ou, ainda, transforma aquelas formas e contextos 
tradicionais em formas novas, frequentemente muito opressivas.
De fato, argumentei recentemente, na palestra Contribuições ao 
Conhecimento Contemporâneo, que a exploração de “trabalhadores livres” 
está intimamente ligada — depende, na verdade — da expropriação de 
“outros” dependentes. O que quero dizer com expropriação é o sequestro 
de bens de pessoas subjugadas (seu trabalho, terra, animais, 
ferramentas, crianças e corpos) e o afunilamento desses bens 
sequestrados em circuitos de acumulação de capital. Compreendida dessa 
maneira, a expropriação difere nitidamente da exploração. A exploração é
 mediada por um contrato salarial: o trabalhador explorado troca 
“livremente” sua força de trabalho por salários que supostamente cobrem 
os custos sociais médios necessários a sua reprodução. A expropriação, 
ao contrário, dispensa a folha de parreira do consentimento e toma 
brutalmente propriedade e pessoas, sem contrapartida – seja por força 
militar ou por dívida. Minha visão é como a de Rosa Luxemburgo e David 
Harvey: a exploração por si só não poderia sustentar a acumulação de 
capital ao longo do tempo. Esta depende, antes, de contínuos movimentos 
de expropriação. Então, os dois “ex” estão interligados. E é o processo 
combinado de exploração e expropriação que cria o valor excedente.
Essa ideia é lindamente ilustrada numa frase de Jason Moore, relativa
 ao início da industrialização. Ele diz, “Atrás de Manchester fica 
Mississippi”. Isso significa que a indústria têxtil altamente rentável 
de Manchester, sobre a qual Engels escreveu, não seria rentável sem o 
algodão barato fornecido por meio do trabalho escravo das Américas. Sou 
tentada, por sinal, a acrescentar um terceiro M — para Mumbai, para 
assinalar o importante papel desempenhado no crescimento de Manchester 
pelo destruição calculada da manufatura têxtil da Índia pelos 
britânicos. Este é um caso em que a expropriação é condição para a 
possibilidade de exploração lucrativa. O capitalismo joga um jogo duplo 
com as pessoas, encaminhando alguns à “mera” exploração e condenando 
outros à brutal expropriação — uma diferença que historicamente tem sido
 associada com império e raça. De modo que eu rejeito a alegação, com 
frequência atribuída a Marx, de que o valor é produzido apenas pelo 
trabalho assalariado. Há muitos outros fatores não assalariados no 
processo, inclusive o trabalho social-reprodutivo das mulheres, sem o 
qual o trabalho assalariado não seria possível.
Para aprofundar isso, você poderia por favor explicar essa 
dinâmica do potencial emancipatório do capitalismo tendo em mente as 
economias “periféricas”? Você acha que pode-se continuar a pensar nelas 
como periféricas, num contexto do neoliberalismo que parece prover 
liberdade completa ao capital, ao restringir o trabalho em bases 
nacionais?
O conceito de “centro e periferia” faz menos sentido agora do que fez
 em períodos anteriores, mas estamos ainda lutando para encontrar uma 
alternativa satisfatória. Defensores da teoria de sistema-mundo falam de
 países semiperiféricos com estratégias para subir os degraus da escada 
de valor agregado baseados na produção de commodities. Mas mesmo isso 
não é inteiramente adequado para uma situação em que a indústria está 
sendo realocada em escala maciça. Dado o peso das economias de países 
como os membros do BRICS, é difícil chamá-los de “semiperiféricos”, 
quanto mais de periféricos. O que complica a situação ainda mais é que, a
 despeito de seu peso econômico, os países dos BRICS não estão (ainda?) 
em posição de afirmar-se como potências globais no cenário mundial. Ao 
contrário, uma potência econômica decadente (os EUA) ainda desempenha o 
papel de hegemonia global, a despeito de sua credibilidade moral que 
desaba e a mudança em seu status para uma nação devedora. Ainda não 
sabemos aonde tudo isso leva — e depende muito da China. Mas embora as 
coisas funcionem assim, precisaremos desenvolver um novo vocabulário e 
enquadramento para apreender a nova situação histórica.
Ainda assim, uma coisa já está clara: tem havido uma tremenda mudança
 no relacionamento entre exploração e expropriação no capitalismo 
financeiro. Isso ocorre em grande parte graças à realocação da indústria
 para longe de seu centro histórico e à universalização da expropriação 
pela dívida. Este último fator é óbvio no caso da desapropriação de 
terras e dos programas de ajuste estrutural, que impõem 
condicionalidades de empréstimo aos países do Sul global. Governos de 
todo lugar, da América Latina à África e à Grécia tiveram de cortar 
gastos sociais e abrir seus mercados ao capital estrangeiro, 
vampirizando seu povo para o benefício do capital. Nesses casos, a 
dívida é um veículo de expropriação na (ex) periferia e semiperiferia, 
mesmo que essas regiões também estejam se tornando locais primários de 
exploração.
Ao mesmo tempo, a expropriação está aumentando no “centro” histórico.
 À medida em que o trabalho precarizado e de baixos salários nos 
serviços ultrapassa o trabalho industrial sindicalizado, o capital paga 
seus trabalhadores menos do que o custo socialmente necessário para sua 
reprodução. No entanto, ainda precisa que esses trabalhadores cumpram o 
duplo dever como consumidores. Então, o que fazer? A solução é aumentar a
 dívida dos consumidores, que permite às pessoas comprar coisas baratas 
produzidas em outros lugares. Aqui, também, a expropriação alimenta 
aqueles que também são explorados em “McEmpregos”.
Ou seja, estamos diante de uma nova constelação, que mistura a velha 
divisão exploração/expropriação. A maior exploração costumava ocorrer no
 centro histórico, enquanto a maior parte das expropriações era feita na
 ex-periferia. Não é mais o caso. Agora os dois ex não formam um ou/ou, 
mas um ambos/e. Não mais alternativas mutuamente excludentes, eles 
encontram-se em grande proximidade; frequentemente as mesmas pessoas são
 submetidas a ambas.
Você perguntou sobre as implicações disso para a emancipação. Essa é,
 a meu ver, a questão chave para a esquerda em nossos tempos. O que se 
segue, politicamente, ao fato de que o capitalismo não mais atribui a 
exploração a um grupo social ou região e a expropriação a outro grupo ou
 região? Quanto era assim, os cidadãos-trabalhadores “livremente” 
explorados do centro podiam dissociar facilmente seus objetivos e lutas 
daqueles sujeitos subjugados, racialmente expropriados da periferia. E 
isso enfraquecia as forças da emancipação, pois permitiam o 
dividir-para-governar. Agora, contudo, quase todo mundo está sendo 
simultaneamente explorado e expropriado. Então, parece que a base 
material para aquelas divisões políticas intra-classe-trabalhadora está 
desaparecendo. Em teoria, isso poderia abrir perspectivas para alianças 
novas e ampliadas. Se aqueles que sofrem podem agora entender que 
exploração e expropriação são elementos — analiticamente distintos, mas 
praticamente enlaçados — de um único sistema capitalista, o qual é a 
própria causa raiz da maioria de seus sofrimentos, então podem concluir 
que compartilham um inimigo comum e deveriam unir forças. Mas esse 
resultado não é nem automático, nem assegurado. Por ora, ao menos, as 
mudanças associadas ao capitalismo financeiro estão gerando paranoia e 
ansiedade, que conduzem a formas exacerbadas de chauvinismo, inclusive 
nos populismos de direita que discutimos no início.
Na verdade, fechamos agora um círculo completo nesta conversa. Mas 
devo ressaltar novamente agora o que disse antes. Ainda que 
solidariedades ampliadas não sejam geradas automaticamente, pelo simples
 fato de que ocorreu uma mudança estrutural, elas ainda podem ser 
criadas politicamente, através de intervenções políticas de esquerda. 
Estas, como disse antes, precisam rejeitar firmemente os jogos 
táticos-assustadores que o liberalismo desempenha com a palavra 
“populismo”. Sem medo dessa palavra, e determinados a conquistar aqueles
 que estão agora atraídos por suas variantes de direita, devemos montar 
nossa própria crítica de esquerda estrutural-sistêmica do neoliberalismo
 progressista e nossa própria visão transformadora de uma alternativa 
emancipatória. Rompendo definitivamente tanto com a economia neoliberal 
quanto com as várias políticas de reconhecimento que ultimamente lhe 
deram suporte, devemos abandonar não apenas o etnonacionalismo 
excludente, mas também o individualismo liberal-meritocrático. Somente 
unindo uma política de distribuição fortemente igualitária a uma 
política de reconhecimento substancialmente inclusiva, sensível à 
classe, podemos construir um bloco contra-hegemônico capaz de nos levar 
além da crise atual, em direção a um mundo melhor.
__
Esta entrevista foi realizada em março de 2018, quando Nancy Fraser 
foi convidada pelo Departamento de Sociologia da Universidade do Sul 
Asiático para fazer uma palestra sobre “Raça, Império, Capitalismo: 
teorizando os nexos”.
__
Shray Mehta é um acadêmico do Departamento de Sociologia da Universidade do Sul Asiático, em Nova Deli.
 




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