Fonte: Carta Capital
05.01.2013 07:02
Administrado
por Gilberto Gil e Juca Ferreira no governo Lula e durante 20 meses por
Ana de Hollanda sob Dilma Rousseff, o Ministério da Cultura não tem
ainda uma política de Estado a apresentar. Não observava isso um
detrator, mas a própria titular da pasta, dois meses após sua posse,
ocorrida em 13 de setembro deste ano. A ministra Marta Suplicy garantia
então, em entrevistas a jornais brasileiros, desejar fazer da obtenção
dessa política sua marca, com a ressalva de que também fora esta a
missão a ela confiada pela presidenta do País. Entre as qualidades de
Marta para assumir essa incumbência, talvez a mais importante, a exceder
seu domínio gerencial à frente da prefeitura de São Paulo, tenha sido a
habilidade em lidar com os meandros do poder. Pragmática, ela que
insistira na própria candidatura à prefeitura, mas fora derrotada em
suas intenções por Lula, agora se licenciava do Senado para assumir um
MinC em crise e empenhar-se de maneira decisiva para o sucesso da
candidatura de Fernando Haddad.
Marta Suplicy está à frente do ministério, portanto, não em razão de
seu notório saber em torno da administração da cultura, mas porque,
espera-se, saberá desempenhar o jogo político exigido pela função. Sua
antecessora, ligada ao universo da canção popular como intérprete e
habituada a empenhar-se pelas culturas regionais enquanto funcionária da
Funarte, se revelara, em mão contrária, inapetente para o diálogo,
desarmada para construir os próprios quadros no ministério e isolada
pela comunidade digital desde que, no discurso de posse, esclarecera ao
Brasil que “sem artista não há arte”. Em lugar de expor claramente suas
ideias, Ana se fechara para a imprensa e para setores que, fortemente
mobilizados pelas redes sociais, insistiam na predominância de políticas
públicas de acesso progressivo e ilimitado à indústria cultural. Marca
das gestões de Gil e Ferreira, tal acesso tendia a ser ampliado pela
nova lei de direitos autorais, que na primeira versão, em alguns casos,
determinava o fim do desígnio do autor sobre a própria obra. Esse
anteprojeto, que recebeu nova redação sob a administração de Ana,
representava a negação das crenças da então ministra sobre a propriedade
do autor em relação à sua criação.
Como ocorrera antes a Gil e Ferreira, contudo, Ana não recusaria uma
política cultural baseada essencialmente em dinheiro renunciado, advindo
de leis de incentivo, como essencial à administração da área. O uso fez
a norma. Em 2013, por exemplo, Marta terá à sua disposição 2,9 bilhões
de reais, mas esse valor recorde se terá por insuficiente para fazer
andar a contento a cultura de um país de tais dimensões, carente de
equipamentos culturais elementares, como museus, teatros e bibliotecas, e
pleno de reclames por parte dos setores que aqui produzem. A mudança
nesse padrão apenas começa a ser implantada. No dia 29 de novembro, a
Câmara e o Senado promoveram sessão solene para promulgar a Emenda
Constitucional 71/12, que institui o Sistema Nacional de Cultura.
Aprovada por meio da Proposta de Emenda à Constituição 416/05, a
proposta ficou conhecida como PEC da Cultura e prevê a ampliação
progressiva dos recursos públicos para o setor cultural.
A percepção de que o governo brasileiro carecia de uma política de
Estado nessa área teria sido óbvia até mesmo para um longínquo
observador da produção nacional. A maior parte do Brasil que faz arte
precisa servir-se de renúncia fiscal, recorrendo a leis como a Rouanet,
ou seu trabalho se inviabilizará. Em alternativa à lei, há o corpo a
corpo do artista em relação aos seus patrocinadores e ao público que
paga ingressos ou, às vezes, é preciso recorrer ao crowdfunding
(financiamento coletivo). E ele também pode acionar instituições como o
Serviço Social do Comércio, em especial o de São Paulo, que oferece
agenda e infraestrutura a essa produção sem esperar retorno comercial
para sua marca. Informalmente, entre os artistas, diz-se que o Sesc é o
“verdadeiro” Ministério da Cultura do Brasil. Ali, quem produz arte será
financiado integralmente e não se submeterá ao mercado. Principalmente,
terá a oportunidade de fazer chegar ao público sua criação livre, sendo
pago para isso.
Enquanto a política de Estado da cultura não se estabelece, a maior
briga ainda é por tornar verdadeiramente estimuladora, não excludente, a
principal lei dita de incentivo em atividade no País. O deputado
federal Pedro Eugênio (PT-PE), relator da reforma dessa legislação na
Câmara, prevê em seu texto mudanças que, se aprovadas, dobrariam o valor
investido hoje (perto de 1,6 bilhão de reais). Em relação ao texto que
tramita desde 2007, as principais mudanças sugeridas são contrapartidas
claras, aumento do limite de renúncia fiscal e fortalecimento de um
fundo gerido pelo governo federal. Para que a contrapartida seja feita,
Eugênio sugere um sistema de pontuação pelo qual a renúncia fiscal
concedida a incentivadores cresça à medida que o projeto estabeleça
ingressos gratuitos e ações educativas. O relator propõe que o teto do
imposto destinado pelas empresas a projetos culturais passe dos atuais
4% do IR devido para 6%. A proposta tornaria maior o Fundo Nacional de
Cultura e faria crescer o investimento anual no setor para 3,2 bilhões
de reais. Os recursos do fundo, cujos beneficiários são escolhidos pelo
governo, não por empresas, passariam de 256 milhões para 800 milhões de
reais. Se aprovado na comissão, o projeto irá à Comissão de Constituição
e Justiça antes de seguir para o Senado, o que estava previsto ainda em
2012.
Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta
que, até 1995, a maior parte do dinheiro da área da cultura vinha do
ministério. Em 2010, segundo o Ipea, o dinheiro incentivado, portanto
liberado de pagamento de imposto, alcançava os 90%. Em entrevista ao
jornal O Estado de S. Paulo de 9 de novembro, Marta se declarou
“bastante” incomodada com o fato de uma área crucial não ser tratada
aqui como instrumento de desenvolvimento econômico. “Em virtude da pouca
importância que se tem dado à cultura por todos os governos é que foi
desenvolvido um método bastante engenhoso (de renúncia fiscal) que
funciona, mas tira das mãos do ministério a possibilidade de fazer uma
política de Estado mais forte.” Dilma pediu a Marta que interfira na
política de patrocínio das estatais.
A ministra diz pretender que a inclusão social oriente seu
ministério. Um dos símbolos dessa diretriz é o vale-cultura, cujo
projeto de lei foi sancionado por Dilma Rousseff em 27 de dezembro. O
vale concede 50 reais por mês aos contratados em regime CLT que ganhem
até cinco salários mínimos. Mas, analisado sob o signo da polêmica, ele
não beneficiará os aposentados, segundo estabelecia a versão inicial do
projeto, tampouco funcionários públicos federais e estagiários. Somente
receberão o benefício os empregados das empresas que aderirem ao
projeto. O contratado, que poderá optar por não desfrutar do benefício,
terá um desconto de até 10% do valor do vale em seu salário. Ele poderá
utilizar o dinheiro na compra de produtos como livros e DVDs, mas
setores da produção cultural ainda discutem se o instrumento deveria ser
aplicado à aquisição de bens da indústria cultural globalizada, como os
blockbusters. Para Marta, seriam essenciais ainda a construção de 360
CEUs das Artes, centros de produção cultural dotados, por exemplo, de
biblioteca somente com livros artísticos, batizados pela ministra de “o
Bolsa Família da Alma”, e a aplicação de projetos e editais de incentivo
à produção da cultura negra.
Questionada sobre essa última meta, a ministra aproveita para se
declarar favorável às cotas raciais no País das desigualdades. É
gritante, ela diz, que dos projetos da Lei Rouanet atualmente em
análise, 71 sejam do Norte e 5.374, do Sudeste. Na distribuição de
valores, o Norte recebe 1,6% e o Sudeste, 67%. “Com os negros ocorre
algo semelhante”, ela considera. “Porque eles têm menor condição de
acesso a meios para elaborar e depois, aprovados pela Rouanet, não
conseguem captar. É mais ou menos como a Região Norte. Ninguém quer
patrocinar. É péssimo falar isso. Mas o que vamos fazer? Cruzar os
braços?”, disse ao Estado.
Marta tem falado pouco e com cautela, na tentativa de não acirrar os
ânimos. Mas ela já sente a força das rivalidades no que se refere à
questão crucial a ter marcado a gestão de Ana de Hollanda, o autor e
seus problemas. Em 1975, por pressão dos artistas, foi criado o
Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), àquela época,
contudo, fiscalizado pelo Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA),
extinto durante o governo Collor. Ana de Hollanda não via necessidade de
fazer a fiscalização por meio de um órgão externo, argumentando pela
autonomia do Escritório. Marta, contudo, já decidiu que trabalhará para a
fundação de um organismo independente a acompanhar a atuação do Ecad,
reivindicação dos próprios artistas acolhida pela CPI do Senado. Eles
haviam ainda solicitado, em março de 2011, a criação de uma secretaria
da música a operar no ministério nos moldes da Secretaria do
Audiovisual, por entenderem que o setor também exigiria atenção
específica. É uma proposta ainda não considerada, como aquela partida da
Associação Brasileira de Música Independente, para que um servidor
central arrecade e distribua os direitos autorais relativos a cada
fonograma nele registrado e acessado pelo usuário de banda larga.
Outro importante desafio será o estabelecimento do marco civil da
internet, cuja votação foi adiada pela quinta vez em novembro. Um ponto
polêmico é a responsabilização dos provedores pela retirada de um
conteúdo (novela, filme, música). Esse dispositivo envolve discussões
acerca de direitos autorais, o que gerou a intervenção do MinC. Hoje,
uma notificação de autor basta para que os provedores de aplicações na
internet (plataformas, redes sociais, portais) retirem um conteúdo
online. A não retirada implica processo judicial para o provedor. Mas o
novo texto propunha a mudança da regra. Não mais bastaria um aviso
simples para que a remoção fosse feita, mas uma notificação judicial. Os
defensores do acesso irrestrito aos produtos da indústria cultural na
rede se veem desencantados com a possibilidade de tudo ficar como está.
Os detentores de direitos autorais e Marta, não. Por enquanto, a
ministra diz considerar o notice and takedown, como é conhecida a
ferramenta vigente, segundo a qual basta uma notificação simples para a
remoção de um conteúdo, a maneira mais correta de proteger um autor,
este que constitui o fulcro e a origem de toda a discussão cultural
destes dias.
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