“O
 conhecimento foi fazendo com que as pessoas se abrissem mais, fossem 
mais solidárias e enxergassem que outras regiões da cidade precisavam 
muito mais do que a sua naquele momento. Esse é um legado importante que
 infelizmente está morrendo” (Foto: Vinícius Roratto/Sul21).
O Orçamento Participativo foi uma invenção que tornou Porto Alegre 
uma cidade conhecida internacionalmente. Criado a partir da eleição de 
Olívio Dutra para a prefeitura da capital gaúcha, em 1988, o OP 
enfrentou muitas dificuldades no início, mas logo se tornou uma 
experiência de participação popular que é referência até hoje. Uma das 
responsáveis pela criação dessa política foi Iria Charão. Militante do 
movimento comunitário, em 1988 trabalhava no Hospital da PUC quando foi 
convidada por Olívio Dutra para uma tarefa: cuidar da participação 
popular. Ela aceitou o desafio e passou a trabalhar na construção do OP.
Em entrevista ao Sul21, Iria Charão fala sobre esse processo de 
construção do Orçamento Participativo, dos problemas e da desconfiança 
inicial, da criação de uma política pública que se tornou, acima de 
tudo, um espaço construtor de cidadania, solidariedade e conhecimento. 
Segundo ela, uma experiência que começou praticamente do zero:
Tem muita gente que hoje escreve sobre aquela época e diz que nos
 baseamos nisto ou naquilo, na experiência de Pelotas com Bernardo de 
Souza, ou na experiência de uma cidade de Santa Catarina. Vou dizer com 
toda franqueza: eu não me baseei em absolutamente nada disso. Eu apenas 
recebi uma tarefa do partido pra fazer.
Iria Charão segue participando das assembleias do OP em sua região e 
vê com preocupação a transformação do espaço em encontros meramente 
reivindicatórios. O OP, diz ela, foi uma grande escola popular:
O conhecimento foi fazendo com que as pessoas se abrissem mais, 
fossem mais solidárias e enxergassem que outras regiões da cidade 
precisavam muito mais do que a sua naquele momento. Esse é um legado 
importante que infelizmente está morrendo agora, pois está reinando o 
“farinha pouca, o meu pirão primeiro”. 
“Naquela
 época, as associações de moradores eram todas registradas na 
prefeitura. O prefeito é que assinava a prestação de contas das 
associações. Era um absurdo”. (Foto: Vinícius Roratto/Sul21).
SUL21: Quando e como o Orçamento Participativo entrou na tua vida?
Iria Charão: Em 1988, quando ganhamos a eleição para
 a prefeitura de Porto Alegre, tínhamos no programa de governo o 
compromisso de que o povo participaria das decisões do governo 
municipal, de que haveria participação para a elaboração do orçamento. 
Mas não era nada muito desenvolvido. Eram meia dúzia de frases que 
falavam da importância da participação do povo, mas nada mais que isso. 
Não tínhamos uma fórmula nem um método de como iríamos fazer. Naquela 
época, todos nós acreditávamos no socialismo. A gente tinha um grupo 
idealista e sonhador que achava que iria mudar o mundo a partir dali. 
Ganhamos a eleição e aí o desafio era fazer.
SUL21: O que você fazia na época?
Iria Charão: Eu trabalhava no Hospital da PUC. O 
Olívio me chamou para trabalhar no governo e eu disse para ele: o que é 
que eu posso fazer, não entendo nada de administração. Ninguém entendia,
 na verdade. Era a primeira experiência. Nós fomos cobaias daquela 
administração. Ele me disse que me queria cuidando da participação. 
Vamos lá, então, eu disse. Era assim mesmo, meio à moda diabo. Eu e o 
Gildo Lima fomos trabalhar na coordenação de relações com a comunidade e
 a Geci Prates ficou cuidando da parte sindical. Tem muita gente que 
hoje escreve sobre aquela época e diz que nos baseamos nisto ou naquilo,
 na experiência de Pelotas com Bernardo de Souza, ou na experiência de 
uma cidade de Santa Catarina. Vou dizer com toda franqueza: eu não me 
baseei em absolutamente nada disso. Eu apenas recebi uma tarefa do 
partido pra fazer.
Em 1989, o Clóvis Ilgenfritz era o Secretário do Planejamento e era o
 Planejamento que fazia o orçamento municipal. O Clóvis ficou 
encarregado disso e eu acompanhei as primeiras tratativas, desde o 
início. Como fazer, como começar? Nós reunimos as lideranças 
comunitárias para expor a elas qual era a nossa vontade. A gente já 
vinha fazendo isso no cotidiano. Havia uma prática na prefeitura até 
então, pela qual as lideranças marcavam audiência com o prefeito. Tinha 
associação de moradores à revelia. Chegava a ter duas em uma mesma rua. 
Nós tomamos a decisão de que, ao invés de atender os presidentes de 
associações de bairros, nós iríamos ao encontro das pessoas. O meu 
trabalho aí foi dizer isso para as pessoas. Em apenas um mês e meio de 
trabalho eu tinha recebido umas 250 solicitações de audiências com o 
prefeito.
Naquela época, as associações de moradores eram todas registradas na 
prefeitura. O prefeito é que assinava a prestação de contas das 
associações. Era um absurdo. Nós acabamos com isso e, no início, as 
pessoas não gostaram muito. Havia mais de 200 associações de moradores 
em Porto Alegre. Nós pedimos que eles reunissem as pessoas que o 
prefeito iria falar com elas na comunidade. Com essa medida, muitas 
agendas caíram pois havia muita associação de fachada e aqueles que não 
conseguiam reunir povo para receber o prefeito. Dissemos então que o 
povo iria deliberar sobre o orçamento, que poderia apresentar demandas e
 que essa seria uma nova forma de relacionamento do governo com a 
população.
A nossa primeira proposta de orçamento foi apresentada na Câmara num 
prazo já meio limite. Eu vinha do movimento comunitário, de mobilizações
 de ocupações de prédios públicos, essas coisas. Então a gente conhecia 
muitas lideranças comunitárias e as chamamos para conversar sobre o 
orçamento. Aí apresentamos uma proposta que foi absolutamente detonada 
por essas lideranças. Acharam que era uma proposta goela abaixo, que 
dissemos que iríamos discutir com o povo e não estávamos fazendo isso…
SUL21: Era uma proposta de orçamento?
Iria Charão: Não, era uma proposta de processo de 
discussão do orçamento. Até hoje eu costumo dizer que ele é um processo,
 que não tem uma forma pronta e acabada. Ele vai se remodelando no 
caminho. O pessoal não gostou muito, mas a gente colocou que havia o 
problema do prazo, do tempo, e eles aceitaram, sob a condição de que na 
próxima vez seria melhor discutido. Aí nós fomos para as regiões. Na 
época, Porto Alegre tinha uma regionalização absurda. As regiões eram 
imensas.
Nós preparamos uma forma de apresentar a nossa proposta, comparando o
 orçamento público com o orçamento doméstico, o salário com os impostos.
 Não era só um processo onde as pessoas iam dizer “quero calçar minha 
rua, melhorar minha escola e o transporte”; para nós era uma questão de 
entendimento e de protagonismo.
“Na
 campanha eleitoral nós dissemos que o transporte seria prioridade. Na 
verdade, quando fomos ouvir as pessoas, o transporte não se manifestou 
como prioridade. Apareceu em terceiro lugar. A grande prioridade da 
população era saneamento básico”. (Foto: Vinícius Roratto/Sul21).
No início, as pessoas chegaram um pouco desconfiadas, pois a relação 
com a prefeitura sempre tinha sido clientelista até ali. Era uma relação
 direta. Muitos presidentes de associações eram cabos eleitorais. As 
pessoas brigavam com o vizinho e fundavam outra associação, ganhavam 
“ajuda” do governo, papel, caneta, essas coisas. Era um verdadeiro 
balcão de negócios.
Para mudar esse quadro, nós decidimos ir para as ruas e ouvir as 
pessoas para montar um processo de participação. Nosso primeiro erro 
teve a ver com a nossa vontade imensa de mudar. Nós dissemos para o 
povo: vocês vão dizer o que precisam. A periferia naquela época era 
completamente abandonada, havia muito esgoto a céu aberto. Na campanha 
eleitoral nós dissemos que o transporte seria prioridade. Na verdade, 
quando fomos ouvir as pessoas, o transporte não se manifestou como 
prioridade. Apareceu em terceiro lugar. A grande prioridade da população
 era saneamento básico.
Recebemos uma avalanche de demandas. As pessoas precisavam de tudo e 
não tinham muita noção do que era competência municipal, estadual ou 
federal. Então as coisas eram muito umbilicais, muito a “minha rua”. 
Fomos trabalhando esse conceito, reconhecendo que a rua de cada um é o 
lugar mais importante – e eu acredito nisso até hoje -, mas que ela faz 
parte de um bairro, que faz parte de uma região, que faz parte de um 
Estado, que faz parte de um País, que faz parte de um continente que, 
por sua vez, faz parte do planeta. Portanto, precisamos de muitas coisas
 no cotidiano, mas temos que pensar que para mudar essas coisas não 
podemos fazer isso só na nossa rua, precisamos levar em conta um 
contexto mais amplo que envolve questões como a do meio ambiente que 
atinge hoje todo o planeta. Na época as pessoas não se importavam muito 
com isso.
Esse processo de participação era também uma grande escola popular, 
de aprendizado, protagonismo e de construção de uma grande rede de 
solidariedade entre as pessoas. O conhecimento foi fazendo com que as 
pessoas se abrissem mais, fossem mais solidárias e enxergassem que 
outras regiões da cidade precisavam muito mais do que a sua naquele 
momento. Esse é um legado importante que infelizmente está morrendo 
agora, pois está reinando o “farinha pouca, o meu pirão primeiro”. 
Aquela rede de solidariedade que se formou nos primeiros anos está um 
pouco esquecida.
SUL21: Então, no início, havia uma certa desconfiança entre a população que rapidamente evoluiu para a confiança?
Iria Charão: Na verdade, a credibilidade do 
Orçamento Participativo só virá no segundo semestre de 1990. É bom não 
esquecer que estamos falando da aplicação de 1%, 2% do orçamento do 
município, o que é uma gota d’água no oceano. Só para dar um exemplo, 
quando tratamos da pavimentação, na hora de dividir os recursos 
disponíveis dava 500 metros de pavimento para cada região. Aí foi 
preciso definir prioridades. Vamos pavimentar onde? E as pessoas 
começaram a escolher: de frente à parada do ônibus, pois senão o ônibus 
não sobe em dia de chuva; na frente da escola ou na frente do posto de 
saúde e assim por diante. As pessoas começaram a entender que não tinha 
dinheiro pra tudo. Isso foi muito explicado no primeiro ano. De onde vem
 o orçamento municipal, quais os impostos, por que era importante pagar 
imposto. O IPTU representava cerca de 8% da arrecadação do município.
“Quando
 o nosso primeiro orçamento foi entregue, em 1989, as pessoas foram para
 a Câmara para evitar que os vereadores fizessem emendas e destruíssem o
 que elas tinham construído junto com o governo municipal”. (Foto: 
Vinícius Roratto/Sul21).
Então aos poucos fomos trabalhando essa questão do conhecimento, 
falando como era importante a participação da população para ajudar a 
criar novas políticas. Nós estimulamos muito o movimento organizado 
neste período, as associações de moradores e alguns conselhos populares 
que já existiam. A partir dali as pessoas multiplicavam o que recebiam 
de conhecimento e de novas informações. O esquema que funcionava até 
então era assim: o líder, que às vezes não era tão líder assim, detinha 
toda informação, sabia como tramitar uma questão na prefeitura ou nos 
gabinetes de vereadores, e não abria muito para outras pessoas se 
apropriarem desse conhecimento. Havia algumas exceções, mas essa era a 
regra. Com o Orçamento Participativo, as pessoas começaram a participar 
de um novo processo que envolvia decisão coletiva.
Quando o nosso primeiro orçamento foi entregue, em 1989, as pessoas 
foram para a Câmara para evitar que os vereadores fizessem emendas e 
destruíssem o que elas tinham construído junto com o governo municipal. 
Aí houve uma polêmica que, para nós, já era uma questão vencida 
envolvendo a relação entre a democracia representativa e a democracia 
participativa.
SUL21: Os vereadores não gostaram muito da novidade…
Iria Charão: Os vereadores berraram. Na época, o 
Olívio foi para a Câmara antes de iniciar o processo do OP e convidou 
todos os vereadores a participar do mesmo. Mas nós tínhamos oposição até
 interna, dentro do PT, o que mais tarde iria se repetir também em nível
 estadual e federal. O processo das conferências das cidades, que eu 
coordenei em nível federal, também enfrentou essa resistência interna. 
De qualquer maneira, alguns vereadores do PT ajudaram bastante dentro de
 suas comunidades. Outros que eram contra no início foram mudando de 
posição. As pessoas começaram a se perguntar: como é que um cara do PT 
vai ser contra o Orçamento Participativo?
SUL21: Desde o início esse processo foi batizado de Orçamento Participativo?
Iria Charão: Sim. Hoje, eu prefiro trabalhar esse 
processo como participação popular nas políticas públicas do governo, 
pois se criaram políticas públicas com a participação popular. Se 
batizamos só como “orçamento” isso restringe o processo à pavimentação 
de ruas, a instalação de esgoto e a outras obras, quando, na verdade, 
trata-se de algo muito mais amplo. O OP criou e estimulou cidadania, não
 foi só um processo de escolha de obras na minha rua. As pessoas foram 
se modificando, criaram-se novos hábitos na relação da população com o 
governo municipal. O que ajudou muito é que o prefeito acreditava muito 
nessa ideia, e segue acreditando. Quando as pessoas vinham até ele por 
outros meios para tentar conseguir coisas “por fora”, ele dizia que 
havia um processo de discussão do orçamento e que era preciso ir até às 
assembleias para fazer essa discussão. Então, o que eu falava para a 
população era a mesma coisa que o prefeito dizia para as pessoas com 
quem tinha contato em audiências. Havia uma grande sintonia e ele não 
abria mão disso. Acho que isso ajudou bastante.
Quando saiu o nosso primeiro orçamento, o investimento era mínimo, em
 torno de 2%, se não me engano. Não era nada. Era só vontade mesmo. 
Muitíssima vontade e pouquíssimo dinheiro. Em função disso, é claro que 
não conseguimos começar nada no ano seguinte. As pessoas começaram a 
participar no início do ano e achavam que até o fim do ano suas demandas
 estariam atendidas. Até entenderem que estavam discutindo um orçamento 
que seria para o ano seguinte levou um tempo. As pessoas tinham pressa, 
pois a demanda represada era muito grande. Como consequência dessa 
demora, o processo do OP em 1990 foi um fracasso total de público. As 
pessoas não foram e disseram que aquilo era uma enganação, que nada do 
que tinham discutido estava sendo feito, etc. Quando houve a condição de
 investimento, o governo buscou as demandas de 1989 que tinham sido 
definidas pelas comunidades. Aí a situação se reverteu completamente. As
 pessoas viram que o que tinham discutido estava começando a se tornar 
realidade. Aí explodiu o processo. As pessoas passaram a acreditar, de 
fato, no OP.
Na verdade, nem a população nem os militantes sociais que participam 
de um processo como este, se dão conta do que está acontecendo no 
momento. Só vão se dar conta depois que estão fazendo história. O que 
nós estávamos fazendo era redesenhar a cidade. Se olharmos para essa 
região aqui (rua Manoel Elias, perto da FAPA), a Protásio Alves era uma 
faixinha, a Antônio de Carvalho idem, a Manoel Elias era o fim do mundo,
 ninguém queria vir morar aqui, a faixa preta da Cavalhada também era 
uma faixinha. Essas eram demandas do poder público. A gente discutia e 
disputava com a população. A nossa obrigação era pensar a cidade 
estrategicamente também, pensar a mobilidade urbana que na época não era
 um tema muito discutido. Nós dizíamos era importante calçar as ruas, 
mas também era importante garantir fluxo de trânsito. Assim, nós fizemos
 o alargamento da Antônio de Carvalho, da Protásio, da Manoel Elias, a 
Terceira Perimetral, a reforma do Mercado Público (já na gestão do 
Raul). Tudo isso teve início lá no OP, onde discutimos que as demandas 
que as pessoas traziam eram importantes, mas que algumas grandes obras 
também eram.
Quando nós propusemos o aumento do IPTU, em 1990, as pessoas foram 
para a Câmara de Vereadores defender o aumento. Naquele ano, a cidade 
ganhou uma nova planta de valores e nós fizemos uma grande discussão 
sobre a questão do IPTU. O Verle (João Verle) era o secretário da 
Fazenda e foi para as assembleias explicar para a população como se 
formava o orçamento, por que era preciso aumentar o IPTU e por que 
muitas pessoas nem iam pagar o imposto. Porto Alegre era muito irregular
 em termos de regularização fundiária. Ainda é, aliás, mas era muito 
mais. Cerca de um terço da cidade era irregular e não pagava imposto. 
Criou-se uma consciência entre grande parte das pessoas que participam 
das assembleias que era necessário pagar imposto para ter a retribuição 
nos serviços da cidade.
Para mim, o grande legado do Orçamento Participativo foi a 
consciência que as pessoas adquiriram de que a cidade é sua, de se 
apropriarem da cidade. Alguns hábitos mudaram. Até o governo Collares, 
ninguém sentava nas escadarias da prefeitura na hora do almoço ou no 
final de tarde. Tinha sempre guarda ali ou a prefeitura estava fechada e
 não havia acesso livre. As pessoas começaram a se apropriar do espaço 
que virou um “point” de final de tarde. Até chimarrão iam tomar ali. 
Foram novos hábitos de apropriação da cidade que a participação trouxe.
Eu costumo dizer que os primeiros quatro anos do OP foram um trabalho
 de terraplanagem, de preparo do terreno para plantar as sementes. A 
gente sabia que nem todo mundo iria participar. Seria uma ilusão achar 
que a cidade inteira iria se mobilizar para isso. Mas era importante que
 as pessoas soubessem que esse processo estava acontecendo na cidade. O 
próprio fato desse processo não ser institucionalizado por meio de uma 
lei nos deu liberdade de promover mudanças e melhorias a cada ano. 
Assim, aos poucos, fomos criando mecanismos de aprimoramento. Foi uma 
criação praticamente do zero. Eu não conhecia nenhum modelo anterior. A 
única coisa que eu sabia é que recebi a tarefa de cuidar da participação
 popular.
Nós fomos criando a partir das necessidades que surgiam. Um exemplo 
disso foram os ônibus com os conselheiros. Nós colocamos os conselheiros
 do OP em ônibus e fomos conhecer a cidade. Por incrível que pareça, as 
pessoas não conhecem a cidade onde moram. Elas conhecem a zona onde 
moram e algumas áreas mais próximas. Eu fiz a proposta que foi aceita. A
 gente dedicava um dia inteiro para isso. Um conselheiro da zona norte 
falava dos problemas desta área para conselheiros da zona sul e assim 
por diante. Foi aí que começou a rede da solidariedade. As pessoas 
começaram a ver os problemas do outro e se dar conta que, muitas vezes, 
era mais grave que o seu. Assim, abriam mão da sua demanda para aquele 
ano e deixavam para o ano seguinte, para que outra demanda mais urgente 
fosse atendida. Foi um processo de conhecimento da cidade e de 
construção de uma rede de solidariedade. Isso não foi fácil. Houve muito
 conflito. Não foi um processo cor de rosa.
“O
 OP criou e estimulou cidadania, não foi só um processo de escolha de 
obras na minha rua. As pessoas foram se modificando, criaram-se novos 
hábitos na relação da população com o governo municipal”. (Foto: 
Vinícius Roratto/Sul21).
SUL21: Hoje, você está trabalhando com alguma política de 
participação popular? Qual sua avaliação sobre o atual estágio do 
Orçamento Participativo?
Iria Charão: Eu participo do conselho local da 
unidade de saúde do meu bairro e do conselho distrital de saúde. Eu vou 
nas assembleias do OP na minha região. Sinto muita diferença. Eu tenho 
reclamado pro pessoal do próprio movimento porque virou uma coisa muito 
guetizada. Falei isso recentemente num painel da UFRGS para o qual fui 
chamada. Estão criando regras que eliminam as pessoas e estão eliminando
 a universalidade da participação.
SUL21: Que tipo de regras?
Iria Charão: Por exemplo, eu fui numa assembleia bem
 cedo pois queria me inscrever para falar sobre a saúde. Quando cheguei 
lá não consegui me inscrever, pois as inscrições tinham sido feitas 15 
dias antes no fórum de delegados. Eu não participo do fórum de 
delegados. Logo, quem não participa desse fórum não pode se inscrever 
para falar na assembleia. Eu acho que essa regra encerra as pessoas em 
guetos e impede que outras pessoas se interessem em participar e renovem
 assim o processo todo. Não é possível que as pessoas vão para as 
assembleias só para bater palma. Um dia desses, uma mulher veio pedir a 
minha cédula para dizer em que eu tinha que votar. Fiquei muito 
indignada. Pediu para a pessoa errada.
Enfim, as assembleias se tornaram uma coisa só reivindicativa. Tenho 
acompanhado as assembleias da região Nordeste. Até tem bastante gente, 
mas sempre são os mesmos que falam. Eu acredito que uma das coisas mais 
importantes do processo do Orçamento Participativo é que as pessoas 
possam ir lá e expor suas ideias, dizer o que pensam, abrir os seus 
horizontes. Pelo que tenho visto, virou só uma coisa reivindicativa. 
Neste sentido, ele retrocedeu. Desde o início, trabalhou-se muito para 
ampliar o horizonte das pessoas, para que elas tivessem uma consciência 
da cidade. Hoje o que vejo são as mesmas pessoas, cobrando e cobrando. É
 um desfile de lamúrias. Isso acaba com o espírito do conhecimento, da 
troca de experiência, o que ameaça acabar com todo o processo.
Tags: democracia participativa, Íria Charão, Olívio Dutra, OP, Orçamento Participativo, Porto Alegre
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Certa feita, conversando com um amigo educador/artista, que 
reside na cidade de Olinda, em Pernambuco, sobre o modo de a esquerda 
governar, ele externou para mim algumas preocupações referentes ao 
modelo de gestão de muitas administrações progressistas que ele conheceu
 e que se moldam facilmente à cultura política das oligarquias locais e 
realizam, mesmo que de forma mais eficiente, uma gestão cuja prioridade 
são apenas as grandes obras, os programas assistenciais e os shows com 
grandes artistas ligados à cultura de massa, o que acaba lembrando uma 
canção do Cazuza: “Um museu de grandes novidades” ou parafraseando Belchior: “Minha dor é perceber que apesar de tudo que fizemos, ainda somos os mesmos, “pensamos” e  administramos a coisa pública como os velhos coronéis.”
E o meu amigo fez o questionamento porque, ocorrendo o término do mandato (sem reeleição), uma outra administração ligada a partidos conservadores, com inteligência e perspicácia pode fazer a mesma coisa: realizar grandes obras, investir em programas sociais e prosseguir na organização dos mega shows e, conseqüentemente, passar para a população a idéia de que não haverá necessidade de se votar na esquerda novamente.
Se na época não consegui imaginar isso como uma possibilidade real, decorridos alguns anos dessa conversa, reconheço que essa opinião é pertinente e esse texto foi escrito para ajudar na reflexão sobre o assunto, na linha de que tudo que é sólido se desmancha no ar e de que o que é novidade facilmente torna-se comum, e por isso todo indivíduo ou organização que deseja ser sempre considerada e reconhecida deve continuadamente buscar se aprimorar naquilo para que foi criada e facilitar as coisas para que novas descobertas e novas invenções possam ter lugar.
E isso só acontece num ambiente de autonomia e que favoreça condições e oportunidades para a construção e reconstrução subjetiva dos indivíduos .
Nesse sentido, considero duas questões primordiais. Em primeiro lugar, atenção especial para a mudança de valores e práticas de relacionamento político pautado nos antigos procedimentos da elite dominante, como o clientelismo, o paternalismo, o autoritarismo etc...
Em segundo lugar, atenção especial àquilo que aponta para a criação de sujeitos mais solidários, mais livres, mais ousados, àquilo que cria e dá sentido à realização plena das pessoas (refiro- me aqui à produção artístico/ cultural).
No primeiro caso se faz necessário (re)construir, fortalecer ou criar estruturas formais e informais de participação “real” da população nas decisões sobre os rumos do governo, como os conselhos, as conferências, as câmaras setoriais, os fóruns e as redes, além do incentivo e apoio à organização da sociedade civil através das ongs, e cooperativas. Assim, se viabilizaria um ambiente favorável à gestação de novas idéias e recursos para resolver ou atenuar velhos problemas, o que também pode garantir a criação de um antídoto para evitar o retrocesso de condução antidemocrática das decisões, a partir da eleição de partidos ligados às velhas elites dirigentes, após suceder-se um governo de esquerda.
No segundo caso, democratizar o acesso aos meios de produção artística e dos meios de produção e difusão da informação, com orçamento decente e gestores comprometidos, preparados e que saibam ouvir os interessados no assunto, o que resultará em diretrizes e ações que garantirão à maioria da população a possibilidade de se expressar de maneira que não fiquem apenas se comportando como meros consumidores de um bocado de lixo que é comercializado como produto cultural e cujos conteúdos -- carregados de intolerância (inclusive religiosa), vulgarização do sexo, preconceitos vários, individualismo exacerbado, banalização da violência, etc., -- vão na direção contrária de tudo aquilo que defendemos, formando o “caldo” da cultura que conduz ao retorno e sustentação da nova/ velha direita.
E isso é tudo que muita gente que ousa lutar e acreditar em outro país menos deseja, mas que será inevitável, caso opiniões como a nossa não sejam levadas em consideração a tempo.
P.S.: Segundo o pensador italiano Norberto Bobbio a esquerda orienta-se por um sentimento igualitário e a direita aceita a desigualdade como natural. Embora no Brasil seja praticamente impossível perceber a diferença através dos discursos e propaganda em época de campanha eleitoral.
Quanto as questões que apresento no texto acima percebo que o modelo de gestão do Ministério da Cultura aponta para o que escrevi acima. Apesar da necessidade de aumento do orçamento e da capacitação técnica e redução da burocracia para o acesso dos pequenos empreendedores culturais do interior e das periferias aos editais. Em Recife, em visitas a comunidades periféricas e em conversas com artistas e arte-educadores populares e também com o Secretário de Cultura, João Roberto Peixe, que nos concedeu audiência de quase duas horas no ano de 2004, pude perceber que muito daquilo que queremos/sonhamos já é realidade. Na oportunidade, o secretário me entregou cópias do relatório de gestão 2000/2004 e da I Conferência Municipal de Cultura do Recife, da qual tive a honra de participar.
José de Oliveira Santos - “Zezito” Professor de história e ativista cultural – e-mail.: zezito2002@ig.com.br
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OUTRO BRASIL? SOMENTE COM PARTICIPAÇÃO E ARTE.
E o meu amigo fez o questionamento porque, ocorrendo o término do mandato (sem reeleição), uma outra administração ligada a partidos conservadores, com inteligência e perspicácia pode fazer a mesma coisa: realizar grandes obras, investir em programas sociais e prosseguir na organização dos mega shows e, conseqüentemente, passar para a população a idéia de que não haverá necessidade de se votar na esquerda novamente.
Se na época não consegui imaginar isso como uma possibilidade real, decorridos alguns anos dessa conversa, reconheço que essa opinião é pertinente e esse texto foi escrito para ajudar na reflexão sobre o assunto, na linha de que tudo que é sólido se desmancha no ar e de que o que é novidade facilmente torna-se comum, e por isso todo indivíduo ou organização que deseja ser sempre considerada e reconhecida deve continuadamente buscar se aprimorar naquilo para que foi criada e facilitar as coisas para que novas descobertas e novas invenções possam ter lugar.
E isso só acontece num ambiente de autonomia e que favoreça condições e oportunidades para a construção e reconstrução subjetiva dos indivíduos .
Nesse sentido, considero duas questões primordiais. Em primeiro lugar, atenção especial para a mudança de valores e práticas de relacionamento político pautado nos antigos procedimentos da elite dominante, como o clientelismo, o paternalismo, o autoritarismo etc...
Em segundo lugar, atenção especial àquilo que aponta para a criação de sujeitos mais solidários, mais livres, mais ousados, àquilo que cria e dá sentido à realização plena das pessoas (refiro- me aqui à produção artístico/ cultural).
No primeiro caso se faz necessário (re)construir, fortalecer ou criar estruturas formais e informais de participação “real” da população nas decisões sobre os rumos do governo, como os conselhos, as conferências, as câmaras setoriais, os fóruns e as redes, além do incentivo e apoio à organização da sociedade civil através das ongs, e cooperativas. Assim, se viabilizaria um ambiente favorável à gestação de novas idéias e recursos para resolver ou atenuar velhos problemas, o que também pode garantir a criação de um antídoto para evitar o retrocesso de condução antidemocrática das decisões, a partir da eleição de partidos ligados às velhas elites dirigentes, após suceder-se um governo de esquerda.
No segundo caso, democratizar o acesso aos meios de produção artística e dos meios de produção e difusão da informação, com orçamento decente e gestores comprometidos, preparados e que saibam ouvir os interessados no assunto, o que resultará em diretrizes e ações que garantirão à maioria da população a possibilidade de se expressar de maneira que não fiquem apenas se comportando como meros consumidores de um bocado de lixo que é comercializado como produto cultural e cujos conteúdos -- carregados de intolerância (inclusive religiosa), vulgarização do sexo, preconceitos vários, individualismo exacerbado, banalização da violência, etc., -- vão na direção contrária de tudo aquilo que defendemos, formando o “caldo” da cultura que conduz ao retorno e sustentação da nova/ velha direita.
E isso é tudo que muita gente que ousa lutar e acreditar em outro país menos deseja, mas que será inevitável, caso opiniões como a nossa não sejam levadas em consideração a tempo.
P.S.: Segundo o pensador italiano Norberto Bobbio a esquerda orienta-se por um sentimento igualitário e a direita aceita a desigualdade como natural. Embora no Brasil seja praticamente impossível perceber a diferença através dos discursos e propaganda em época de campanha eleitoral.
Quanto as questões que apresento no texto acima percebo que o modelo de gestão do Ministério da Cultura aponta para o que escrevi acima. Apesar da necessidade de aumento do orçamento e da capacitação técnica e redução da burocracia para o acesso dos pequenos empreendedores culturais do interior e das periferias aos editais. Em Recife, em visitas a comunidades periféricas e em conversas com artistas e arte-educadores populares e também com o Secretário de Cultura, João Roberto Peixe, que nos concedeu audiência de quase duas horas no ano de 2004, pude perceber que muito daquilo que queremos/sonhamos já é realidade. Na oportunidade, o secretário me entregou cópias do relatório de gestão 2000/2004 e da I Conferência Municipal de Cultura do Recife, da qual tive a honra de participar.
José de Oliveira Santos - “Zezito” Professor de história e ativista cultural – e-mail.: zezito2002@ig.com.br
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