Fonte: https://outraspalavras.net/brasil/visita-guiada-a-uma-noite-insurgente/
Categorias: Alternativas, Brasil, Comportamento, Destaques, Periferias e Centro, Políticas, Sociedade
– on 11/07/2018
Com o Teatro Ofina por palco, surge articulação nacional de
candidaturas coletivas ou comunitárias — a partir também das quebradas,
aldeias e quilombos. Movimento é resposta ao esvaziamento da velha
política
Por Roberto Andrés
Enquanto o velho Brasil oligarca segue sua triste
sina de veneno e lama, a sociedade brasileira se movimenta para buscar
saídas para a enorme crise que vivemos. Dentre tantas iniciativas, há o
crescimento de uma insurgência democrática que vem de coletivos
ativistas, das periferias, de gente do chão das lutas, para quem a
institucionalidade sempre foi negada.
Essa sublevação é incipiente, mas não é nova. Ela já deu as caras nas eleições de 2016, com movimentações como as Muitas, que elegeu as vereadoras Áurea Carolina e Cida Falabella em Belo Horizonte; Bancada Ativista, que ajudou a eleger Sâmia Bomfim em São Paulo; Agora é com a gente,
que elegeu Ivan Moraes no Recife; e com as vitórias expressivas de
Marielle Franco no Rio de Janeiro, Talíria Petrone em Niterói e Marquito
em Florianópolis, dentre outras.
Foi só as conexões começarem e percebeu-se que essa
rede é maior do que a vista alcança. Em tantas e tantas quebradas desse
país, há gente que sempre fez política e que agora decidiu ocupar os
espaços institucionais. Em 2017, foi feito um chamado para um primeiro
encontro dessa rede, em Belo Horizonte – que contou com mais de 300
pessoas de 20 estados brasileiros.
Daí nasceu o #OcupaPolítica, um arco de pessoas do
campo cidadão, popular, feminista e periférico que ousa “sonhar outro
futuro, no qual se expandem as possibilidades de vida livre, feliz,
integrada com a natureza, fundada nos interesses coletivos e na
democracia real”, como colocado no manifesto.
As pré-candidaturas são construídas com autonomia em
cada contexto, mas se fortalecem ao formarem uma rede de troca e
compartilhamentos. E potencializam esperança ao se articularem como um
conjunto. Em uma noite de sábado do inverno paulistano, no último 7 de
julho, no Teatro Oficina, foram lançadas as 70 pré-candidaturas do
movimento.
O evento foi transmitido ao vivo e está disponível em alguns vídeos na página do Ocupa Política. Nesse breve relato me propus a fazer uma visita guiada, um testemunho pessoal e obviamente incompleto, dessa noite insurgente.
Quem chegava ao Teatro Oficina se deparava com duas
imensas fileiras de cadeiras, uma em frente à outra. As pré-candidatas
ocupavam as cadeiras da fileira à esquerda e o público era convidado a
se assentar e bater um papo reto, de frente, em uma dinâmica chamada
flertaço que foi inventada pela Bancada Ativista nas eleições de 2016.
Aliás, é preciso dar um grande salve à Bancada
Ativista, que foi uma das principais articuladoras do encontro e teve a
generosidade de abrir seu lançamento para um evento múltiplo e diverso. É
preciso dar um grande salve também ao modelo de candidatura coletiva
que a Bancada, assim como as Juntas no Pernambuco, propõe: pessoas de diversas lutas construindo uma candidatura que tem somente um nome na urna.
Como bem lembrou a Áurea Carolina, em sua fala
brilhante, “nós também temos em nós afetos violentos, competitivos.
Superar esses afetos em busca da cooperação e da colaboração exige
trabalho.” As candidaturas coletivas destravam os mecanismos automáticos
de competição entre candidatos, abrem espaço de diálogo e
fortalecimento mútuo. O lançamento das pré-candidaturas da Bancada Ativista, com sete mulheres e dois homens de diversas lutas juntas no palco, mostra essa força.
Depois do flertaço veio um Auê,
um rito de cantos tradicionais puxado por indígenas e quilombolas,
ativando as energias de invenção e resistência daquele templo do teatro —
que só poderia ter sido projetado por uma mulher como Lina Bo Bardi.
Quem cantava não era artista contratado, mas as próprias pré-candidatas e
suas apoiadoras, como Sandra Quilombola e Kerexu, pré-candidatas a
deputada federal em Minas Gerais e em Santa Catarina.
A apresentação de mais de 50 pré-candidaturas trouxe a diversidade de
pautas e lutas presentes, mas foi o momento seguinte que permitiu
compreender essa força: uma série de rodas temáticas, ali chamadas
aquários, em que uma pessoa convidada fazia provocações a pré-candidatas
de diferentes locais, contextos e formas de atuação.
A primeira roda (que começa aos 37’30” deste vídeo),
mediada por Bianca Santana, propôs que as ocupações legislativas ali
presentes refletissem sobre suas experiências. Práticas reais de
radicalização democrática, transparência, composição equitativa de
equipes, desconstrução de privilégios, foram trazidos por Daniela
Monteiro (RJ), que compunha a mandata de Marielle Franco, Rafa Barros
(MG), que atuava na gabinetona de Áurea Carolina e Cida Falabella, e
pelas vereadoras Fernanda Melchionna (RS), Ivan Moraes (PE) e Marquito
(SC).
Por mais engessadas que sejam nossas instituições, assistir a esta
mesa impressiona por revelar as potentes possibilidades de atuação e
incidência, de transformação real a partir da prática política no
contato direto com as comunidades.
A roda seguinte (que começa aos 56′ deste vídeo e continua no início deste) abordou o tema Outra Política, Outras Economias.
Mediada pela antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, teve a participação
de Tatiana Roque (RJ), Kênia Ribeiro (MG), Celio Gari (RJ), Celio Turino
(SP) e Sandra Quilombola (MG), em um debate sobre as formas de proteção
social em um mundo em que o trabalho se reconfigurou.
Direito ao futuro foi o tema seguinte (começa aos 12′ deste vídeo).
Em um país em que boa parte dos jovens tem chances reais de ter seu
futuro encurtado, como pontuou a mediadora Claudia Visoni, há uma força
comprometida que emerge nas juventudes periféricas, expressas nessa mesa
por Max Maciel (DF), Douglas Belchior (SP), William Siri (RJ), pelas
potências de Leandrinha Du Art (MG), Eugenia Lima (PE) e Kerexu (SC).
As diferenças abissais entre os centros e as periferias, estas
desprovidas de equipamentos culturais, espaços e serviços públicos, na
mesma medida em que estão saturadas de violência do Estado foi uma das
tônicas da mesa, sintetizada na pergunta de Max Maciel: “Qual o futuro
que vamos ter, se uma pistola que custa R$5.000 chega primeiro nas
periferias do que o ingresso do cinema, que custa R$30”?
A última roda aborda Crise da democracia e papel do Estado, e
acredito que vale ser assistida por todas as pessoas que se importam com
as possibilidades democráticas no Brasil hoje (começa aos 44′ deste vídeo).
A provocação de Marcos Nobre joga na arena as tensões abertas pela
crise de 2008 e os ciclos de protestos de 2011-13, lembrando que não há
uma resposta, nem no Brasil nem fora, desenhada para o momento. Cabe a
nós, portanto, formular respostas, o que a mesa faz prontamente, nas
brilhantes colocações de Áurea Carolina, Marivaldo Pereira, Sâmia
Bomfim, Úrsula Vidal e Marina Helou (mesa continua neste vídeo)
Mas é a partir dos 28′ desse último video que a
coroação dos debates acontece, com a presença de três mulheres negras
que hoje contrariam as estatísticas ao ocupar a política, por isso com
tanta força: Andreia de Jesus, Monica Francisco e Taliria Petrone. O
momento foi também uma homenagem a Marielle Franco, que havia
participado do Ocupa Política em BH e teve ali projetada, pela primeira
vez, sua fala registrada em vídeo em 2017.
Não sei muito bem o que dizer sobre essas quatro
mulheres juntas, com suas falas urgentes, com seus corpos que gritam uma
história atual – Marielle, presente! – de violências, com sua
inteligência e resolutividade, com toda a revolução que expressam, a não
ser que chorei como não chorava há muito tempo, e constatei que
participar dessa construção é, para mim, o único caminho possível para
trabalhar por uma democracia de fato no Brasil.
Ainda na minha perspectiva, há um antes e um depois
do 7 de julho de 2018 no Teatro Oficina. Assim como a Bianca Santana bem
lembrou haver um antes e um depois de um 7 de julho de 40 anos atrás,
em 1978, com a manifestação que reuniu duas mil pessoas em plena
ditadura militar e significou a criação do Movimento Negro Unificado.
O encontro se encerrou ainda sobre o eco,
reverberando naquele teatro, das palavras da Talíria Petrone: “Se a
Marielle foi executada em um crime político, nossa resposta será trazer
as lutas dela para o centro da nossa ação política. O Ocupa Política vem
dizer que é necessária outra política e que não é mais possível aquela
política velha, carcomida, embranquecida, dos barões de café, dos
senhores de engenho, dos proprietários de terra. Ocupar a política de
outra forma é fazer com afeto, com sorriso, e devolver a política do
lugar de onde ela foi roubada. Porque a gente já faz política há muito
tempo.”
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Roberto Andres
Roberto Andrés é editor da revista Piseagrama
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