VIDA, MORTE E RESSURREIÇÃO
 {Le Monde Diplomatique Brasil – edição 117 – abril de 2017}
                                                
                                    
                
                    por Célio Turino                
                
                    Abril 3, 2017 O  Cultura Viva morreu? De maneira alguma. Ela 
segue viva como sempre seguiu e, inclusive, em um novo e mais poderoso 
patamar. Vários Pontos de Cultura se empoderaram nesse processo, se 
equiparam, avançaram na consciência política, saindo do estágio do “em 
si” para o “para si”
Cultura Viva e Pontos de Cultura, essa política é hoje referência no 
mundo e até o papa Francisco a abraçou, com os Pontos de Encontro e 
Agentes Jovens de Cultura Cidadã. De forma inusitada, em termos de 
políticas públicas, há que destacar que, mesmo sofrendo um forte 
desestímulo e até perseguição e criminalização por parte do Estado 
brasileiro (e isso de antes do golpe de Estado), os Pontos de Cultura 
seguem por aí, mesmo sem receber nenhum tipo de apoio ou recurso oficial
 há vários anos. Isso porque foi uma política de aderência àquilo que o 
povo já faz como base de suas tradições e vínculos comunitários.
Para compreender essa política pública, porém, há que destacar dois 
momentos distintos. Entre 2004 e início de 2010: formulação, implantação
 e consolidação do programa. Este foi lançado em julho de 2004, partindo
 do zero e alcançando 72 Pontos de Cultura seis meses depois; o 
orçamento, que em 2004 era de pouco mais de R$ 3 milhões, saltou para R$
 67 milhões em 2005, via emenda parlamentar coletiva (R$ 55 milhões mais
 R$ 12 milhões no orçamento previsto). Com surpresa do êxito inicial foi
 possível lançar um segundo edital para seleção de Pontos de Cultura a 
desesconder o Brasil, como nunca antes havia sido feito: 2,5 mil 
projetos se apresentaram, chegando a 470 Pontos de Cultura ao final de 
2006. Em 2007, via programa Mais Cultura, um novo salto, com a 
descentralização dos editais por meio de acordos com estados e 
municípios de grande porte. Mais 2,5 mil pontos conveniados, até 
alcançar, ao final de 2009, a marca de 3,5 mil Pontos de Cultura no 
país, espalhados por 1,1 mil municípios e beneficiando entre 8 milhões e
 9 milhões de pessoas (Dados Ipea – Cultura Viva – Avaliação do 
Programa, 2010), sempre sob o conceito da gestão compartilhada entre 
Estado e sociedade, ou Estado-rede.
Esses números compreendem desde a rede de cineastas indígenas até 
grupos de jovens em favelas, assentamentos rurais, pequenos municípios, 
grupos de arte de vanguarda, tudo integrado, pois a cultura se integra e
 se entrelaça no tempo e no espaço, daí o próprio nome Cultura Viva. O 
Ponto de Cultura funciona como um agregador local, incentivando o 
empoderamento comunitário e, em torno dele, uma série de ações: 
setecentas bolsas para mestres da cultura tradicional, os griôs; 11 mil 
bolsas para os jovens agentes de Cultura Viva (entre 2005 e 2006); 
Escola Viva integrando escolas, comunidades e Pontos de Cultura; 
Interações Estéticas com residências artísticas (foram três editais 
gerando duzentas criações comuns entre Pontos de Cultura e artistas 
profissionais); oitenta Pontos de Mídia Livre, para sites independentes,
 comunicação popular, rádios e TVs comunitárias, a mídia livre; a 
Cultura Digital, com desenvolvimento de software livre para edição de 
imagem e som (na época, 2004, praticamente inexistiam no mundo 
ferramentas livres para edição), estúdios multimídia e 82 oficinas de 
conhecimentos livres, realizadas em quilombos, pequenos municípios e 
favelas; trezentos Pontinhos de Cultura (para cultura lúdica e da 
infância); Cultura e Saúde, fortalecendo projetos de medicina popular e 
terapias alternativas, a arte da arte; oitenta Prêmios Tuxauas para 
articuladores em rede; duzentos Pontões de Cultura, atuando como 
capacitadores, articuladores e difusores em rede; economia viva para 
projetos de economia solidária em Pontos de Cultura, criando, inclusive,
 moedas comunitárias, como o Sampaio, no bairro do Campo Limpo, na 
periferia de São Paulo; Prêmio Asas, para Pontos de Cultura que 
concluíssem os convênios, no valor de R$ 80 mil para cada ponto.
Segundo dados do Sistema de Controle Orçamentário do Ministério do 
Planejamento, o maior orçamento anual realizado foi em 2009, no valor de
 R$ 120 milhões, totalizando um investimento federal de R$ 450 milhões 
entre 2004 e 2009. Para 2010, havia um orçamento previsto no valor de R$
 210 milhões, mas a partir desse ano começou um desinvestimento no 
programa, incluindo cancelamento de editais, de modo que o orçamento 
realizado foi inferior a 40% do previsto. Nos anos seguintes, ainda 
menos, até chegar a pouco mais de R$ 10 milhões em 2014 e zero de 
realização orçamentária em 2015 e 2016.
Também houve uma série de encontros, publicações e análises sobre o 
programa e as Teias, encontros dos Pontos de Cultura, com forte 
componente simbólico e espaço para reflexão, organização e articulação 
entre os Pontos de Cultura. Entre 2006 e 2010 foram realizadas quatro 
Teias Nacionais e dezenas de estaduais, organizadas sempre em espaços de
 referência para a cultura – a primeira na Bienal de São Paulo, depois 
no Palácio das Artes em Belo Horizonte, na Esplanada dos Ministérios em 
Brasília e no Dragão do Mar em Fortaleza, esta com mais de 5 mil 
participantes, inclusive com delegações internacionais. A cada Teia era 
escolhido um tema gerador: “Venha se ver e ser visto”, “Tudo de todos”, 
“Iguais na diferença” e “Tambores digitais”. Foram grandes momentos, 
incluindo intercâmbio entre Pontos de Cultura e centros culturais do 
Reino Unido.
Todo esse conjunto de ações proporcionou um amplo reconhecimento 
internacional, tornando o programa uma política pública em diversos 
países (Argentina, com 670 Pontos de Cultura, Peru, cidades de Medellín e
 Bogotá (Colômbia), Costa Rica, El Salvador, entre outros) e efetivando 
um movimento continental, a Cultura Viva Comunitária, presente em 
dezessete países e tendo realizado dois congressos latino-americanos, em
 La Paz (2013, com 1.200 participantes) e San Salvador (2015, com 
seiscentos participantes) – o próximo será em Quito (novembro de 2017). O
 paradoxo é que, enquanto crescia o reconhecimento internacional, a 
partir de 2011 houve no Brasil um sistemático processo de desconstrução 
do programa, feito exatamente pelo governo federal.
Os Pontos de Cultura e o programa Cultura Viva, a síntese da ousadia e
 dos novos paradigmas. A cultura que o povo faz, o desenvolvimento em 
rede, a autonomia, o protagonismo e o empoderamento das comunidades. As 
trocas simbólicas, a quebra da hierarquia na cultura e a construção das 
novas legitimidades. O povo pelo povo, na voz e na expressão do povo, as
 interações estéticas; os griôs e a cultura tradicional transmitida pela
 oralidade; os Pontinhos e a cultura infantil e lúdica; a Cultura e 
Saúde; os Agentes Jovens da Cultura Viva; a Cultura Digital, o software 
livre, o trabalho em rede, colaborativo, a generosidade intelectual; a 
economia viva e a economia solidária e criativa, as economias da vida, 
da dádiva e da colaboração; a mídia livre; as Asas e as Teias. O 
entrelaçamento de sujeitos, a criação, a poesia e a cultura do encontro.
O retrocesso
A partir de 2011, a bem da honestidade intelectual, é necessário 
reconhecer que houve um processo deliberado de desmonte e paralisia do 
Cultura Viva, mesmo com discurso favorável ao programa, uma vez que não 
havia argumentos teóricos, técnicos e filosóficos para combatê-lo.
Parecia um governo de oposição, e não de continuidade, praticando uma
 política de terra arrasada. Houve o desmonte do programa Cultura Viva, a
 perseguição burocrática e assédio moral, até a pura e simples 
criminalização dos milhares de Pontos de Cultura do Brasil. Igualmente 
foram canceladas as demais ações do programa, levando ao estrangulamento
 total na transferência de recursos para convênios em andamento. Para 
comparação: entre 2004 e 2009 foram assinados oitocentos convênios que 
possibilitaram a formação de 3,5 mil Pontos e Pontões de Cultura, além 
de mais duas dezenas de editais, beneficiando mais de 3 mil iniciativas.
 Entre 2011 e 2016 foram realizados apenas oito convênios (exatamente), 
permitindo a formação de aproximadamente trezentos Pontos de Cultura e 
alguns poucos editais. Também houve medidas de desconstrução com pouco 
efeito orçamentário, mas forte impacto político-simbólico, como a 
abrupta interrupção de pacotes de assinaturas de revistas alternativas 
às da mídia hegemônica, que eram distribuídas gratuitamente para 5 mil 
Pontos de Cultura e bibliotecas públicas do país, além do cancelamento 
de editais para mídia livre, rádios e TVs comunitárias. Do macro ao 
micro, foi um desmonte completo e deliberado. Isso começou em 2011, e o 
golpe de Estado apenas segue no mesmo curso.
Buscando compreender as razões e os motivos
1) Uma política pública como a Cultura Viva e os Pontos de Cultura só
 pôde surgir em um momento político muito determinado. Não em relação ao
 ponto de vista político-partidário, mas ao simbolismo da eleição do 
presidente Lula, em 2002, que abriu um novo ambiente para o protagonismo
 popular. A história de vida do presidente Lula se mistura com a própria
 história do povo e provocou uma simbiose que permitiu que as pessoas 
acreditassem mais em si mesmas, colocando-se em movimento. Foi esse 
caldo de cultura que arou um terreno fértil para a experimentação de 
políticas públicas participativas e inovadoras.
2) A inclusão social foi a marca do novo ciclo governamental iniciado
 em 2003 – os dados são incontestes. Todavia, apesar do forte componente
 inclusivo da Cultura Viva e dos Pontos de Cultura (“reconhecer e apoiar
 grupos sociais e culturais historicamente alijados”), o programa 
pretendia ir além, apresentando o componente emancipatório, alicerçado 
no tripé autonomia/protagonismo/empoderamento. E essa era uma 
contradição, pois o indicador de êxito do programa estaria na “perda do 
controle” por parte do Estado.
3) A lógica do Estado é a lógica da imposição e do controle. Porém, a
 lógica da Cultura Viva era outra: “do Estado que impõe para o Estado 
que dispõe”, “do Estado que controla para o Estado que está disposto a 
perder o controle”. A imposição e o controle do Estado são estabelecidos
 pela técnica (principalmente quando técnica se transforma em 
ideologia), que se traduz em burocracia, com suas normas, portarias, 
decretos e leis. E habitus burocrático, como uma maneira de ser
 do aparato de controle estatal. Aí reside a contradição entre a lógica 
de um governo reformista e com proposta de inclusão social, mas 
subordinado à lógica de controle de Estado e de manutenção do equilíbrio
 de poder que o sustenta. Como a Cultura Viva se propunha ir além da 
inclusão, houve o embate e o programa travou.
4) Na primeira fase do governo Lula, sobretudo no Ministério da 
Cultura, havia algum espaço para a experimentação de políticas públicas 
inovadoras, principalmente pela carga simbólica representada por um 
deslocamento de classes no exercício de governo. Foi nessa brecha que a 
Cultura Viva surgiu, como se tivesse entrado por uma pequena fresta de 
porta que logo mais se fecharia. Enquanto houve vontade política 
combinada com a baixa institucionalidade no Ministério da Cultura, foi 
possível avançar. Depois, tudo se tornou mais difícil.
5) No governo Dilma, essas poucas frestas simbólicas foram ainda mais
 fechadas, e o império da técnica e da gestão se sobrepôs ao mundo do 
encantamento e das utopias. Não que tenha sido uma intenção perversa e 
premeditada, buscando conter inovações para além das formas 
tradicionais, mas foi da própria lógica do sistema do Estado, que 
precisa se autopreservar. Cultura Viva diz respeito à pluralidade da 
vida, de suas expressões e desejos, mas o mundo da técnica transforma 
tudo em coisa, até mesmo a gratuidade da vida. Com isso, Oficinas de 
Conhecimentos Livres tiveram de ceder lugar à Economia Criativa 
(submetendo a cultura à lógica da economia, e não o oposto, como deveria
 ser), e processos formativos horizontais (em que um ponto contribuía 
com outro via afecções e as ideias se disseminavam de forma virótica) 
passaram a ser substituídos por formações verticais. Tudo amparado no 
discurso da qualificação técnica, em que os agentes do Estado são os 
qualificadores, e os representantes da sociedade, os desqualificados, os
 despreparados.
Esses cinco fatores nos levam a entender como aconteceu o ciclo de “encantamento/expansão/contenção/declínio” da Cultura Viva.
Isso significa que a Cultura Viva morreu? De maneira alguma. Ela 
segue viva como sempre seguiu e, inclusive, em um novo e mais poderoso 
patamar. Vários Pontos de Cultura se empoderaram nesse processo, se 
equipararam, avançaram na consciência política, saindo do estágio do “em
 si” para o “para si”. Houve o exercício do movimento coletivo, 
desencadeado pelas Teias, Teias estaduais, comissões representativas, 
que continuam. Também houve o exercício da ação reflexiva, com diversos 
seminários e publicações, como as dezenas de teses e dissertações de 
mestrado, e os livros. Parte das entidades, talvez aquelas mais 
artificiais, com menos vínculos comunitários e mais assemelhadas ao 
funcionamento de ONGs tradicionais, já nem faz parte do movimento dos 
Pontos de Cultura; mas outro tanto (em 2016 foram mais de 2 mil que se 
autodeclararam Ponto de Cultura, mesmo sem receber nenhum recurso do 
Estado) se mantém, inegavelmente, em outro patamar de protagonismo na 
formulação e defesa de políticas públicas avançadas, inclusive ocupando 
espaços institucionais, no Brasil e na América Latina. Hoje, a Cultura 
Viva Comunitária, como definimos no ambiente latino-americano, é um 
movimento social pautado no eixo “Cultura, descolonização e bem viver”. 
Tudo isso fornece um ambiente propício à retomada e ao avanço da Cultura
 Viva, muito além da própria ação do governo do Brasil.
Assim, os Pontos de Cultura seguem vivos, em uma cultura sem fim, com
 ciclos de vida, morte e ressurreição, em que o grande desafio será se 
unirem a um povo que ainda vai brotar como nunca se viu!
*Célio Turino é historiador, escritor e gestor de políticas 
públicas. Autor de diversos livros e ensaios, entre eles Na trilha de 
Macunaíma: ócio e trabalho na cidade (Ed. Senac, 2006) e Ponto de 
Cultura: o Brasil de baixo para cima (Ed. Anita Garibaldi, 2009), 
traduzido em vários idiomas e editado em diversos países. Ocupou vários 
cargos públicos, tendo sido secretário da Cidadania Cultural no 
Ministério da Cultura (2004-2010), quando idealizou e desenvolveu o 
programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura. Desde 2011 dedica-se à 
difusão e organização de movimento e políticas públicas de cultura em 
mais de vinte países, tendo sido convidado pelo papa Francisco para a 
difusão da Cultura do Encontro e dos Agentes Jovens de Cultura Cidadã 
pelo mundo.
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