“A noite chegou. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tampouco os rumores
que outrora me perturbavam”
(Carlos Drummond de Andrade, “A noite dissolve os homens”,
poema dedicado a Cândido Portinari, do livro “Sentimento do Mundo”, 1940).
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tampouco os rumores
que outrora me perturbavam”
(Carlos Drummond de Andrade, “A noite dissolve os homens”,
poema dedicado a Cândido Portinari, do livro “Sentimento do Mundo”, 1940).
1. A extrema direita no poder
Bolsonaro
 é sintoma da crise terminal da Nova República. Matias Spektor 
reconheceu que, durante 30 anos, ela “teve a virtude de prover 
estabilidade política a um país que, antes dela, ignorava o significado 
do sufrágio universal e dos direitos básicos de uma democracia” (FSP, 
11/10/2018). Matias revela também o defeito congênito do regime que se 
esfacela: “trata-se de um acordo negociado entre as lideranças da 
abertura e os representantes civis da antiga elite autoritária. O 
resultado é um pacto que, nessas três décadas de vida, se criou 
estabilidade, também demandou doses cavalares de patronagem, 
clientelismo e corrupção”. O velho-novo Estado brasileiro sempre foi 
submisso ao rentismo, ao mercado do voto e à falta de controle popular 
sobre as instituições.
A Lava Jato, com suas seletividades e 
personalismos, ampliou um generalizado ódio à política e um nefasto 
“redentorismo justiceiro”. Mas, por outro lado, começou a investigar e 
publicizar o que nós já denunciávamos: a promiscuidade público-privada, o
 controle de governos e mandatos parlamentares por grandes corporações 
empresariais. Com quase tudo revelado, deu-se a liquefação dos partidos 
grandes e médios, e o declínio eleitoral dos seus caciques. A crise 
econômica – com o desinvestimento e o elevadíssimo desemprego, a 
precariedade crescente das políticas sociais e a violência e a 
insegurança crescentes – selou a sorte desse modelo (ou melhor, seu 
“azar”) nas urnas.
O problema é que quem conseguiu surfar na onda 
do descontentamento popular contra o sistema foi um até então obscuro e 
isolado membro do… sistema: Jair Bolsonaro. Tão do sistema que nele 
entrou como “capitania hereditária”, domínio familiar consanguíneo e uma
 espécie de sublegenda partidária: todos os filhos aptos ocupam cadeiras
 nos parlamentos e seguem fielmente o patriarca tacanho.
O “núcleo
 duro” do mecanismo de poder bem que procurou um candidato continuísta 
com perfil menos belicoso e virulento, um “Macron” à brasileira. Mas não
 conseguiu, apesar da máquina poderosa em torno de Geraldo Alckmin. Como
 Bolsonaro junta, no discurso de agora (unívoco, sem o democrático 
questionamento dos debates), seu ultraconservadorismo autoritário com o 
liberalismo econômico do privatismo total, vocalizado pelo seu guru 
econômico Paulo Guedes, importantes setores do Capital – financeiro, 
agrário, industrial, midiático – já o assimilaram.
Ainda assim, 
Bolsonaro presidente da República (algo que nem ele próprio imaginou, 
exceto mais recentemente) é um erro do sistema, é sua radicalização, é o
 acirramento da luta de classes. Resulta de falta de alternativas mais 
palatáveis para a própria elite, dentro do nosso capitalismo de 
compadrio e do presidencialismo de coalizão, agora em vias de muita 
colisão.
Bolsonaro chega ungido com o voto popular nessa 
democracia cada vez mais virtual, regida pela internet e por esquemas 
ainda subterrâneos de massificação dos whatsapps. A versão dos fatos, 
manipulada, passou a ter muito mais peso do que os fatos reais. Empresas
 montam redes de contato com imenso poder de comunicação. O jornalismo 
profissional agoniza, a propagação de mentiras é avassaladora, 
predominantemente no campo sexual – afetivo, homofóbico e misógino. A 
pauta “moral” retrógrada tem adesão popular. A democracia e o respeito à
 diversidade estão sendo hackeadas!
Bolsonaro vira fenômeno 
eleitoral também pela fidelização da massa de fiéis através das igrejas 
neopentecostais (estima-se que elas arrebanhem cerca de 30% d@s 
147.302.354 eleitor@s do país). Seu tripé “Deus, Pátria e Família” é o 
mesmo dos integralistas de Plínio Salgado, e lembra a ultradireitista 
“Tradição, Família e Propriedade”. Sua retórica anticomunista é a da 
Guerra Fria. Dialogou com o pensamento médio conservador da sociedade 
brasileira, extremando-o, criando “demônios” e “bodes expiatórios”. Se 
Jânio Quadros era “a UDN de porre”, Bolsonaro é a Nova República de 
pistola na mão, pronto para matá-la de vez.
2. Fusão de descontentamentos
“A noite desceu. Nas casas
nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
a noite espalhou o medo
e a total incompreensão”
(op.cit.)
nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
a noite espalhou o medo
e a total incompreensão”
(op.cit.)
Bolsonaro
 e seu grupo, paradoxalmente, são beneficiários da descrença na política
 como solução para os problemas da população. Vendeu (investiga-se a que
 preço e por financiamento de que empresas), com êxito, a imagem do 
“líder” solitário, voluntarista, de “mão firme”, messiânico, 
desvinculado de partidos (o seu nanico PSL surpreendeu nas urnas, com um
 crescimento jamais visto na história do país). Apartado também de 
chefes políticos tradicionais – embora tenha sempre convivido muito bem 
com eles, como parlamentar do chamado “baixo clero”.
Bolsonaro 
conquistou um voto “reativo”: de vingança contra o PT, moldado pela 
mídia grande no imaginário popular (a partir da base real de suas 
contradições e deteriorações) como o “grande mal” a ser evitado. No 
sentimento de parte importante do povo, pelas esperanças que criou e não
 realizou, ou as concretizou de forma insuficiente. Bolsonaro é, à sua 
tosca maneira, herdeiro da cultura da personalização da política em 
torno de um personagem carismático, cujos “dons” pessoais 
“salvacionistas” são valorizados – acima de projetos, partidos, causas 
comuns.
Não por acaso, seus seguidores o chamam de “mito”. Aquele 
que traz a “solução final”, com respostas simples para problemas 
complexos. O tucano histórico Xico Graziano, convertido ao bolsonarismo,
 formula a “tríade conceitual” vitoriosa: “ Bolsonaro é de direita, é 
direito e é direto”. Exceto a primeira afirmação, que merecia ser 
acrescentada de um “extrema”, as demais são falaciosas e mistificadoras.
 Quem convive por 20 anos no PP, partido mais investigado na Lava Jato, e
 classifica Paulo Maluf – em quem votou na volta das diretas, em 1989 – 
como “um grande brasileiro”, quem apoia e elogia Cunha e orienta seu 
filho a votar, na ALERJ, em Picciani, Paulo Melo e Brazão, não pode ser 
glorificado como “direito”. Quem foge de debates e vive de frases 
feitas, impactantes, além de terceirizar responsabilidades o tempo todo,
 não é nada “direto”. Os “3D” são outros: ditatorial, degradado e 
dissimulado. Não para a maioria dos votantes brasileiros, lembre-se…
A
 insegurança galopante e o medo da terrível violência cotidiana também 
induziram parte expressiva do eleitorado a buscar a pseudossolução do 
“pulso forte”, da autoridade – até com autoritarismo. Bolsonaro reitera 
essa imagem, ao elogiar a polícia que mata como merecedora de 
condecoração, e não de investigação, quando suspeita da tão comum 
eliminação sumária de indefesos. Um membro da poderosa família Krupp, na
 Alemanha dos anos 30, disse que o nazismo crescera em função da 
“omissão e do medo” deles. No Brasil de 2018, parte significativa da 
classe média e do povo pobre votou por medo: da insegurança nas ruas, da
 redução do seu padrão de consumo, do desemprego. Nesse pânico, aceita 
até saídas autoritárias e falsas.
Bolsonaro conquistou parte do 
eleitorado petista por razões diversas e bem definidas. Em reportagem de
 O Globo de 21/10/18 (“Os ex-lulistas que escolheram Bolsonaro”), alguns
 depoimentos são exemplares: Juliana Ananias, carioca de 35 anos, pais 
de origem pobre, que completou o curso superior de jornalismo, revela o 
do interesse ideológico e material: “votei no Lula porque acreditei que o
 pobre teria vez, inclusive eu. Mas cadê esse pobre que melhorou de 
vida? Que passou a ter plano de saúde, que pode levar o filho para os 
Estados Unidos? Sou capitalista: gosto de dinheiro, de viajar, de comer 
bem, de comprar joias. Não vou dizer que sou comunista”. Já Ricardo da 
Costa, 38, dono de um pequeno restaurante na Zona Oeste do Rio, é a 
expressão do desencanto que caminha pro “tô nem aí”: “Bolsonaro tem 
independência política. Não vai botar médico no Ministério das Artes nem
 fazer coligação com partidos. Ele fala muita merda, mas é da boca pra 
fora. Estou dando um voto de confiança. Ou ele vai fazer coisa boa ou 
acabar com o Brasil”.
O ex-PM Valter Miranda, 51, de Sobradinho, 
no Distrito Federal, é uma espécie de “desiludido movediço”: “votei no 
Lula porque ele era mais para o lado do trabalhador. Mas não cumpriu o 
que prometeu. O PT é o culpado pelo desemprego, pelas badernas nas 
manifestações e essa porcaria toda de legislação LGBT. Simpatizo com 
Bolsonaro porque ninguém entende mais de povo que um militar. Minha 
intenção é ir nele. Mas vou pesquisar esse outro, esse Haddad. Não dá 
pra acreditar na boca do povo”. Já jovem Asaph Hiroto, 22, filho de 
imigrantes japoneses, da classe média alta de São Paulo, que votou em 
Haddad para a prefeitura de SP, revela certa sofisticação na busca de 
definição: “não sabia o que era direita e esquerda, tinha pouca idade e 
pouco interesse pela política. Aí passei a ler autores conservadores e 
me identifiquei. Analisando a realidade dos países da Europa, o 
conservadorismo de direita sempre foi melhor para as nações. 
Distanciei-me do PT pelo apoio dele a ditaduras como Venezuela e Cuba. 
Mas sou flexível. É que essa eleição é diferente, há muita polarização”.
3. A cultura do individualismo e o neofascismo ou protofascismo
“A noite caiu. Tremenda,
sem esperança…
Os suspiros acusam a presença sombria
que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho na noite”
(op.cit.)
sem esperança…
Os suspiros acusam a presença sombria
que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho na noite”
(op.cit.)
Bolsonaro
 é também a resultante da exacerbação do individualismo na sociedade 
brasileira. Ele vem acompanhado da descrença em qualquer instância 
pública e nas instituições de representação direta de grupos e classes, 
como associações de vizinhos, sindicatos, grêmios e centros estudantis, 
movimentos dos sem terra e sem teto. “Vamos acabar com os ativismos!”, 
bradam, raivosos, os entusiastas do presidente eleito. O próprio afã do 
“cada cidadão uma arma” se inscreve nessa cultura desesperançada: “que 
cada um, ao menos, tenha o direito de se defender, já que o Estado não o
 faz”.
Mangabeira Unger menciona o que vislumbra como “valores” da
 chamada “classe C”, “esse pessoal que estuda à noite, luta para abrir 
um negócio, quer ser profissional independente”: a cultura da autoajuda e
 da iniciativa empreendedora do “self made man”, da competitividade, da 
ascensão material via meritocracia. Avessa a qualquer espírito 
solidário, ainda que invocando sempre a “proteção divina”.
Reconheçamos:
 as ideias de ascensão social individual e bem estar exclusivamente 
familiar – bem capitalistas – estão introjetadas na subjetividade da 
maioria do povo, muito mais do que a da consciência de classe e da luta 
coletiva para a superação da exploração e da miséria.
O voto em 
Bolsonaro não é um voto “fascista”. Não há, nem de longe, 57,7 milhões 
de brasileir@s com essa concepção. Ele deriva também, aí sim, de uma 
mística hegemônica do capitalismo contemporâneo, que atribui aos pobres 
sua própria situação de pobreza, à sua falta de “empreendedorismo”. A 
defesa coletiva de direitos deve ser abandonada, e a escolha está posta:
 ou eles, os direitos, ou o emprego. Tempo do cada um por si, e um chefe
 nacional do “murro na mesa”, que ponha “ordem” na casa. Nada de 
“privilégios”, cotas, favorecimento do “coitadismo”: que cada um se 
vire, por seus próprios méritos.
A eleição de Bolsonaro é uma 
vitória, ainda que por pequena margem, das ideias da nova direita, que 
tem como seu formulador maior, desde o fim dos anos 90, o filósofo Olavo
 de Carvalho. Nova direita que Bolsonaro traduz com seu velho discurso 
tacanho tecido com traços racistas, misógenos e de apologia à tortura e à
 ditadura. Essas ideias ganharam enraizamento popular quando começaram a
 se fundir com as pregações neopentecostais de pastores carismáticos, 
com grande poder de influência das periferias das grandes cidades, 
capilarizando-se crescentemente em todo o país. Abre-se uma nova igreja 
com facilidade, onde os fiéis buscam as curas de seus muitos males. O 
físico alia-se ao “metafísico”: as prédicas, de viés muito conservador 
nos costumes e centrando na salvação individual, desde que se aceite a 
verdade divina única, estão nas TVs e rádios durante 24 horas. Só o 
resgate da autoridade, do “respeito” e a destruição dos “pecados do 
mundo” evitarão o caos.
Ainda a propósito da categoria “fascista” –
 que merece cuidado teórico em sua utilização, pois banalizá-la 
significa esvaziá-la – é preciso distinguir Bolsonaro e seu entorno mais
 “orgânico”. É necessário também diferenciar o fascismo historicamente 
realizado, na primeira metade do século passado, de tendências 
contemporâneas que têm pontos de contato com aquela experiência. Que foi
 de estado totalitário, controlador geral da sociedade, mobilização de 
grupos paramilitares, ultranacionalismo belicoso, colonialista e 
expansionista, culto à disciplina imposta pelo chefe supremo, desprezo e
 perseguição a opositores e às minorias.
Paulo Sérgio Pinheiro, 
professor aposentado de ciências sociais na USP, destaca que “não 
adianta pegar a forma do fascismo italiano e tentar ver se Bolsonaro se 
encaixa nela ou não. Fascista não é apenas Mussolini. Falta a Bolsonaro o
 ultranacionalismo que marcou o fascismo clássico, assim como o apoio da
 Igreja Católica. Mas ele tem várias das características de um 
extremista: a mitificação do passado, o culto à hierarquia, o 
anti-intelectualismo, o desprezo pelas regras democráticas” (FSP, 
21/10/2018).
Francisco Martinho, especialista da USP em história 
da direita, relativiza ainda mais a caracterização de Bolsonaro como 
fascista: “é tão intelectualmente despreparado que não posso chamá-lo de
 fascista. Aposto que nunca leu um texto fascista, é muito primário. 
Acho que no fascismo italiano seria um militante de base, nunca alguém 
de destaque” (op. cit.)
Uma coisa é certa: Bolsonaro pratica e 
estimula o desapreço pelos valores democráticos, fortalecendo um 
fenômeno mundial que a ascensão da extrema direita cria: a “democracia 
de fachada”, de encenação. O conceito é explicado pelo professor Emilio 
Gentile, da Universidade de Roma-La Sapienza, especialista em fascismo: 
“Uma democracia pode ser racista, porque, com a a maioria, pode-se negar
 o direito à minoria. Na melhor tradição ocidental, a democracia não é o
 governo que garanta a maioria, mas o que consente à minoria se tornar 
maioria. O equívoco é acreditar que, na democracia, o povo é sempre 
soberano. (…) Quando se aceita a linguagem da violência como uma 
linguagem da democracia, não há mais freio para comportamentos 
violentos” (entrevista à FSP, 21/10/18)
Bolsonaro não tem pudor de
 proclamar como herói e exemplo o terrível chefe da tortura estatal no 
Brasil da ditadura civil-militar de 1964, Brilhante Ustra. Bolsonaro é 
expressão da direita virulenta. Aplaudiu milícias e grupos de extermínio
 e estimulará, mesmo que nada diga, a organização e a ação de grupos 
paramilitares para combater todos os que lutam por terra, teto, 
demarcação de áreas indígenas e quilombolas. Por mais que alguns apostem
 em “controles constitucionais” para limitar o novo governante, ásperos e
 ensanguentados tempos se avizinham!
4. Quadra de retrocessos
“A noite é mortal,
completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias
(…) A noite anoiteceu tudo…
O mundo não tem remédio,
os suicidas tinham razão”
(op.cit.)
completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias
(…) A noite anoiteceu tudo…
O mundo não tem remédio,
os suicidas tinham razão”
(op.cit.)
Há
 algumas hipóteses sobre a linha que o governo Bolsonaro vai seguir. Que
 será um governo ultraconservador não há dúvidas. Implementará 
incessantemente ataques às políticas públicas, notadamente de educação e
 saúde, aos direitos d@s trabalhador@s e dos povos indígenas e 
quilombolas, aos LGBT e demais minorias.
Atacará, de forma jamais 
vista, o meio ambiente, considerado “entrave” ao desenvolvimento 
(anuncia-se que o Ministério do Meio Ambiente será extinto, criando-se 
uma secretaria vinculada ao Ministério da Agricultura, vale dizer, do 
agronegócio. “Um sinal verde para o aumento dos desmatamentos e da 
poluição do ar, dos rios, dos oceanos”, denuncia o climatologista Carlos
 Nobre). Será autorizada a exploração econômica de terras indígenas e 
haverá a liberação da caça (indo além da de animais exóticos), que 
Bolsonaro considera “um esporte saudável”. Anuncia, a la Trump (seu 
modelo inspirador), a saída do Brasil do Acordo de Paris.
Na 
Educação, o ataque à liberdade de cátedra e a pedagogia crítica e 
emancipatória está em curso, com os projetos – em legislativos 
municipais, estaduais e no Congresso Nacional – do obscurantista e 
amordaçador “Escola sem partido”.
O novo-velhíssimo governo 
desprezará totalmente a Cultura, considerada “aparelho ideológico 
esquerdista”: a Lei Rouanet e todos os incentivos estão seriamente 
ameaçados. Difícil esperar algo diferente de um governante que assume 
não ter lido nenhum romance na vida, cujo gosto musical ou 
cinematográfico é desconhecido – se existente – e que tem como livro de 
cabeceira “A verdade sufocada”, do coronel Brilhante Ustra, o “Dr. 
Tibiriçá” do Doi-Codi, aparato superior da tortura e da morte no Brasil 
da ditadura civil-militar.
Será o governo da desregulação e 
privatização máxima, e de máximo autoritarismo. Não sem intensos 
conflitos internos, dada a natureza de “mandonismo” de muitos dos seus 
ministros e a inconsistência programática de seu “projeto”. Este, de 
registro superficial até aqui, se configurará como mistura improvisada 
de visão simpática a um certo estatismo, tradição do estamento militar, 
com os interesses dos defensores do mercado total. A influência militar 
será forte, quase tutelar.
A propalada negociação “deputado a 
deputado”, “senador a senador” no Congresso, desconsiderando as bancadas
 partidárias, não se sustentará. O balcão de negócios ficará ainda mais 
caro. Como formará sua base de sustentação, em um Congresso com 30 
partidos, que tem cerca de 150 militares, policiais e evangélicos 
neopentecostais – seu suposto “núcleo duro”? Oriundo do “baixo clero”, e
 de convívio amistoso com as práticas fisiológicas tradicionais, 
Bolsonaro tende a se adequar ao esquema do “toma lá dá cá” de sempre, 
com seu viés corrompido.
Rejeitando isso, terá que se apoiar na 
mobilização da massa que o elegeu para pressionar o Parlamento em torno 
de suas propostas supressoras de direitos e de retro-utopia, o que não é
 costume da direita que, desde 2013, foi às ruas. Isso abrirá muitos 
pontos de tensão, cenário não desejável nem por ele nem por seus grandes
 fiadores, o mercado e a cúpula das FFAA.
Resta saber se romperá 
os limites constitucionais, como alguns de seus próceres vocalizam, ou 
se vai se cingir ao ordenamento jurídico-político vigente, tentando 
alterá-lo por via congressual. Intervirá nas Universidades, destituindo 
reitores do campo progressista? Tentará fechar sindicatos? Abrirá 
processos contra entidades que questionam suas políticas regressistas, 
como o MST, o MTST, o Cimi, entre outras? Buscará, de imediato, 
fechá-las?
Com o enorme e generalizado descrédito nas instituições, tentará avançar nos retrocessos, desprezando a lei? Abrirá uma intensa perseguição, com prisões e condenações referendadas pelo setor mais conservador do Judiciário, contra todos os movimentos sociais, implantando uma espécie de “neomacarthismo”?
Com o enorme e generalizado descrédito nas instituições, tentará avançar nos retrocessos, desprezando a lei? Abrirá uma intensa perseguição, com prisões e condenações referendadas pelo setor mais conservador do Judiciário, contra todos os movimentos sociais, implantando uma espécie de “neomacarthismo”?
À moda nazifascista, 
grupos paramilitares se sentirão empoderados, e desenvolverão ações de 
intimidação, agressões e depredação – como já se vislumbrou na campanha.
 O mais é incerteza, pântano, conflito.
5. A onda que eleva é a mesma que afoga
“Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartirárs com todos os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna”
(op.cit.)
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartirárs com todos os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna”
(op.cit.)
A
 História não tem o ritmo das nossas angústias mas sua roda não para de 
girar. A verdade é que o eleitorado, no Brasil, tem se mostrado volátil e
 extremamente mutante. Por isso, esteve disponível para uma proposta de 
extrema direita. É sabido que quem elegeu Bolsonaro para a presidência 
da República votou, em boa parte, em Lula ou Dilma nos pleitos 
anteriores. O brasileiro médio é conservador mas não está extremado, 
exceto sazonalmente.
O “antipetismo” foi se alastrando e ganhou 
dimensão coletiva “doentia”, irracional. Diante disso, toda ideia de 
“conciliação”, de “negociação” perdeu força. Agora é o conflito aberto, 
mas pouco explicitado no plano do debate político civilizado, entre 
visões de mundo, de nação e de relação com a vida bem distintas.
Não
 há, porém, uma consciência politizada e organizada na extrema direita. O
 MBL é um esboço dessa organização. O PSL tenta se estruturar como 
partido agora forte, com grande base parlamentar. O que formou o arco 
vitorioso foi mais o veto do que o voto: veto ao retorno do PT ao poder.
 Pelo tanto que errou, sim, mas também, na ótica do conservadorismo mais
 retrógrado, pelo que fez de bom, pela aceitação de uma diversidade que 
os autoritários negam.
As novas forças politicamente dominantes 
terão imensas dificuldades para encontrar um ponto comum quanto ao papel
 do Estado, que alguns deles veem como mero entrave ao mercado, além de 
“antro de corruptos”. Seu acúmulo sobre diretrizes econômicas e 
políticas públicas de educação, saúde, moradia, saneamento e ambiente é 
nulo, pois centraram sua tática eleitoral e arremetidas verbais em torno
 da chamada “pauta moral”, que divide o mundo entre “decentes” e 
“indecentes”, “salvos” e “perdidos”, “subversivos vermelhos” e “pessoas 
de bem”. O insuspeito Reinaldo Azevedo, tentando caracterizar Bolsonaro 
(“que de ‘novo’ não tem nada”), afirma que “essa barbárie retórica não 
tem nada a ver com liberalismo” (FSP, 21/10/18).
Há quem acredite 
que o governo Bolsonaro não sobreviverá às suas próprias contradições. 
E, com o correr dos meses e das desavenças palacianas, com a seiva 
contaminada da mediocridade intelectual e da inexperiência 
administrativa, mergulhará no profundo caos. Os setores dominantes do 
Capital que o apoiaram o abandonarão, e até um novo processo de 
impeachment poderá ocorrer. Ou mesmo o “autogolpe”, prenunciado por 
ninguém menos que seu vice, o reacionaríssimo general Mourão.
Preservado
 o calendário eleitoral, não é impossível que a mesma “onda” que elegeu 
Bolsonaro se erga na direção contrária, elegendo uma força progressista,
 de esquerda. Como disse o camponês do documentário “Cabra marcado para 
morrer”, do saudoso Eduardo Coutinho, “nada como um dia depois do outro,
 com uma noite no meio e Deus em cima”…
6. Paciência histórica: encontro de causas, autocrítica e trabalho de base
“O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda não se modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza da tua vinda.
(…)
teus dedos frios, que ainda não se modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza da tua vinda.
(…)
Na
 reta final do 1º turno das eleições de 2018, a candidatura Boulos/Sônia
 Guajajara (PSOL/PCB) realizou, no Rio de Janeiro, um ato público muito 
interessante: foi o “Encontro de Causas”. Ali desfilaram, com suas 
propostas, diversos movimentos sociais. Dos que lutam pelo direito à 
moradia, à terra, aos territórios indígenas e quilombolas. Dos que 
defendem os direitos das mulheres, dos LGBT, dos negros, dos 
deficientes, da juventude. Dos que realizam uma educação crítica e 
libertadora. Dos que advogam o cuidado ambiental. Dos que querem 
orçamentos participativos. Dos que praticam a agroecologia saudável, e 
formam cadeias de distribuição sem intermediação exploradora. Dos que 
lutam por uma reforma política com participação popular. Dos que 
batalham pela democratização dos meios de comunicação.
Esse 
“Encontro de Causas” precisa se articular permanentemente, apoiado pelas
 Frentes Povo Sem Medo e Brasil Popular, na quadra que agora se abre: a 
da resistência. De imediato, é urgente organizar a autodefesa de nossas 
lideranças e entidades, porque hordas brutalizadas e vingativas 
fascistoides poderão promover atos de terrorismo e vandalismo, com a 
tolerância – e até mesmo com a participação – de autoridades policiais. 
Essa aberração antidemocrática sentir-se-á com o aval da cúpula da 
República para agir, em situação inédita para as novas gerações. Afinal,
 o presidente já disse, na tribuna da Câmara dos Deputados, que “os 
grupos de extermínio são muito bem-vindos”.
No plano partidário, é
 preciso tecer, o quanto antes, a Frente Democrática de Resistência, com
 todos os partidos do campo progressista reunidos em lutas comuns, na 
sociedade e nos Parlamentos. Todas as conquistas inscritas na 
Constituição de 1988 estão ameaçadas. É preciso criar, desde já, uma 
plataforma básica para a atuação conjunta. Já há um alentador embrião 
disso, inclusive em Manifesto elaborado pelas Fundações de Estudos do 
PSOL, PDT, PT e PC do B, lançado em fevereiro deste ano (“Unidade para 
reconstruir o Brasil”).
Isso pressupõe resgatar uma prática 
analítica que a esquerda, notadamente o PT, abandonou: a autocrítica. E,
 para ser eficaz, ela tem que ser profunda e sincera, não meramente 
declaratória e formal, na base superficial de um simples “erramos”. É 
imperativo examinar o porquê do adaptacionismo a um sistema que todos 
sabíamos estruturalmente corrompido. É urgente verificar o que levou, no
 dizer de Jaques Wagner, senador eleito pelo PT da Bahia, o maior 
partido de esquerda do país a “se lambuzar”. É premente rediscutir o 
conceito e a prática de governabilidade, e se ela implica 
necessariamente em desmobilizar as forças sociais de mudança, atrelá-las
 ao aparato de Estado, domesticá-las, esterilizar, pelo oficialismo, sua
 agudeza crítica e questionadora.
É imperativo também retomar o 
trabalho de base, pedagógico, cotidiano, consistente, ajudando a elevar a
 consciência política e organizativa do nosso povo. Abandonar ou não se 
importar com esse trabalho, descuidando também da comunicação popular, 
mesmo na década em que teve instrumentos até institucionais para isso, 
foi um imenso erro da esquerda. A própria Teologia da Libertação cedeu 
espaço à Teologia da Prosperidade, reforçando a perspectiva da salvação 
individual e da realização meramente pessoal na existência terrena. 
Nessa conjuntura, perdemos a disputa de ideias na sociedade.
A 
dimensão utópica, sem a qual não se transforma nenhuma sociedade, perdeu
 terreno para o pragmatismo, para a ascensão individual, para o conforto
 da bolha familiar, para a negação da vida gregária, em sociedade.
Sempre
 há saídas e há braços, momentaneamente fragilizados pela larga derrota.
 Coloquemo-nos de pé, e de mãos dadas. Somos pelo menos 47 milhões.
“Havemos de amanhecer. O mundo se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora”
(opiei.).
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora”
(opiei.).

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