domingo, 4 de novembro de 2018

"Período de trevas" de Chico Alencar.



“A noite chegou. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tampouco os rumores
que outrora me perturbavam”
(Carlos Drummond de Andrade, “A noite dissolve os homens”,
poema dedicado a Cândido Portinari, do livro “Sentimento do Mundo”, 1940).

1. A extrema direita no poder

Bolsonaro é sintoma da crise terminal da Nova República. Matias Spektor reconheceu que, durante 30 anos, ela “teve a virtude de prover estabilidade política a um país que, antes dela, ignorava o significado do sufrágio universal e dos direitos básicos de uma democracia” (FSP, 11/10/2018). Matias revela também o defeito congênito do regime que se esfacela: “trata-se de um acordo negociado entre as lideranças da abertura e os representantes civis da antiga elite autoritária. O resultado é um pacto que, nessas três décadas de vida, se criou estabilidade, também demandou doses cavalares de patronagem, clientelismo e corrupção”. O velho-novo Estado brasileiro sempre foi submisso ao rentismo, ao mercado do voto e à falta de controle popular sobre as instituições.
A Lava Jato, com suas seletividades e personalismos, ampliou um generalizado ódio à política e um nefasto “redentorismo justiceiro”. Mas, por outro lado, começou a investigar e publicizar o que nós já denunciávamos: a promiscuidade público-privada, o controle de governos e mandatos parlamentares por grandes corporações empresariais. Com quase tudo revelado, deu-se a liquefação dos partidos grandes e médios, e o declínio eleitoral dos seus caciques. A crise econômica – com o desinvestimento e o elevadíssimo desemprego, a precariedade crescente das políticas sociais e a violência e a insegurança crescentes – selou a sorte desse modelo (ou melhor, seu “azar”) nas urnas.
O problema é que quem conseguiu surfar na onda do descontentamento popular contra o sistema foi um até então obscuro e isolado membro do… sistema: Jair Bolsonaro. Tão do sistema que nele entrou como “capitania hereditária”, domínio familiar consanguíneo e uma espécie de sublegenda partidária: todos os filhos aptos ocupam cadeiras nos parlamentos e seguem fielmente o patriarca tacanho.
O “núcleo duro” do mecanismo de poder bem que procurou um candidato continuísta com perfil menos belicoso e virulento, um “Macron” à brasileira. Mas não conseguiu, apesar da máquina poderosa em torno de Geraldo Alckmin. Como Bolsonaro junta, no discurso de agora (unívoco, sem o democrático questionamento dos debates), seu ultraconservadorismo autoritário com o liberalismo econômico do privatismo total, vocalizado pelo seu guru econômico Paulo Guedes, importantes setores do Capital – financeiro, agrário, industrial, midiático – já o assimilaram.
Ainda assim, Bolsonaro presidente da República (algo que nem ele próprio imaginou, exceto mais recentemente) é um erro do sistema, é sua radicalização, é o acirramento da luta de classes. Resulta de falta de alternativas mais palatáveis para a própria elite, dentro do nosso capitalismo de compadrio e do presidencialismo de coalizão, agora em vias de muita colisão.
Bolsonaro chega ungido com o voto popular nessa democracia cada vez mais virtual, regida pela internet e por esquemas ainda subterrâneos de massificação dos whatsapps. A versão dos fatos, manipulada, passou a ter muito mais peso do que os fatos reais. Empresas montam redes de contato com imenso poder de comunicação. O jornalismo profissional agoniza, a propagação de mentiras é avassaladora, predominantemente no campo sexual – afetivo, homofóbico e misógino. A pauta “moral” retrógrada tem adesão popular. A democracia e o respeito à diversidade estão sendo hackeadas!
Bolsonaro vira fenômeno eleitoral também pela fidelização da massa de fiéis através das igrejas neopentecostais (estima-se que elas arrebanhem cerca de 30% d@s 147.302.354 eleitor@s do país). Seu tripé “Deus, Pátria e Família” é o mesmo dos integralistas de Plínio Salgado, e lembra a ultradireitista “Tradição, Família e Propriedade”. Sua retórica anticomunista é a da Guerra Fria. Dialogou com o pensamento médio conservador da sociedade brasileira, extremando-o, criando “demônios” e “bodes expiatórios”. Se Jânio Quadros era “a UDN de porre”, Bolsonaro é a Nova República de pistola na mão, pronto para matá-la de vez.

2. Fusão de descontentamentos

“A noite desceu. Nas casas
nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
a noite espalhou o medo
e a total incompreensão”
(op.cit.)
Bolsonaro e seu grupo, paradoxalmente, são beneficiários da descrença na política como solução para os problemas da população. Vendeu (investiga-se a que preço e por financiamento de que empresas), com êxito, a imagem do “líder” solitário, voluntarista, de “mão firme”, messiânico, desvinculado de partidos (o seu nanico PSL surpreendeu nas urnas, com um crescimento jamais visto na história do país). Apartado também de chefes políticos tradicionais – embora tenha sempre convivido muito bem com eles, como parlamentar do chamado “baixo clero”.
Bolsonaro conquistou um voto “reativo”: de vingança contra o PT, moldado pela mídia grande no imaginário popular (a partir da base real de suas contradições e deteriorações) como o “grande mal” a ser evitado. No sentimento de parte importante do povo, pelas esperanças que criou e não realizou, ou as concretizou de forma insuficiente. Bolsonaro é, à sua tosca maneira, herdeiro da cultura da personalização da política em torno de um personagem carismático, cujos “dons” pessoais “salvacionistas” são valorizados – acima de projetos, partidos, causas comuns.
Não por acaso, seus seguidores o chamam de “mito”. Aquele que traz a “solução final”, com respostas simples para problemas complexos. O tucano histórico Xico Graziano, convertido ao bolsonarismo, formula a “tríade conceitual” vitoriosa: “ Bolsonaro é de direita, é direito e é direto”. Exceto a primeira afirmação, que merecia ser acrescentada de um “extrema”, as demais são falaciosas e mistificadoras. Quem convive por 20 anos no PP, partido mais investigado na Lava Jato, e classifica Paulo Maluf – em quem votou na volta das diretas, em 1989 – como “um grande brasileiro”, quem apoia e elogia Cunha e orienta seu filho a votar, na ALERJ, em Picciani, Paulo Melo e Brazão, não pode ser glorificado como “direito”. Quem foge de debates e vive de frases feitas, impactantes, além de terceirizar responsabilidades o tempo todo, não é nada “direto”. Os “3D” são outros: ditatorial, degradado e dissimulado. Não para a maioria dos votantes brasileiros, lembre-se…
A insegurança galopante e o medo da terrível violência cotidiana também induziram parte expressiva do eleitorado a buscar a pseudossolução do “pulso forte”, da autoridade – até com autoritarismo. Bolsonaro reitera essa imagem, ao elogiar a polícia que mata como merecedora de condecoração, e não de investigação, quando suspeita da tão comum eliminação sumária de indefesos. Um membro da poderosa família Krupp, na Alemanha dos anos 30, disse que o nazismo crescera em função da “omissão e do medo” deles. No Brasil de 2018, parte significativa da classe média e do povo pobre votou por medo: da insegurança nas ruas, da redução do seu padrão de consumo, do desemprego. Nesse pânico, aceita até saídas autoritárias e falsas.
Bolsonaro conquistou parte do eleitorado petista por razões diversas e bem definidas. Em reportagem de O Globo de 21/10/18 (“Os ex-lulistas que escolheram Bolsonaro”), alguns depoimentos são exemplares: Juliana Ananias, carioca de 35 anos, pais de origem pobre, que completou o curso superior de jornalismo, revela o do interesse ideológico e material: “votei no Lula porque acreditei que o pobre teria vez, inclusive eu. Mas cadê esse pobre que melhorou de vida? Que passou a ter plano de saúde, que pode levar o filho para os Estados Unidos? Sou capitalista: gosto de dinheiro, de viajar, de comer bem, de comprar joias. Não vou dizer que sou comunista”. Já Ricardo da Costa, 38, dono de um pequeno restaurante na Zona Oeste do Rio, é a expressão do desencanto que caminha pro “tô nem aí”: “Bolsonaro tem independência política. Não vai botar médico no Ministério das Artes nem fazer coligação com partidos. Ele fala muita merda, mas é da boca pra fora. Estou dando um voto de confiança. Ou ele vai fazer coisa boa ou acabar com o Brasil”.
O ex-PM Valter Miranda, 51, de Sobradinho, no Distrito Federal, é uma espécie de “desiludido movediço”: “votei no Lula porque ele era mais para o lado do trabalhador. Mas não cumpriu o que prometeu. O PT é o culpado pelo desemprego, pelas badernas nas manifestações e essa porcaria toda de legislação LGBT. Simpatizo com Bolsonaro porque ninguém entende mais de povo que um militar. Minha intenção é ir nele. Mas vou pesquisar esse outro, esse Haddad. Não dá pra acreditar na boca do povo”. Já jovem Asaph Hiroto, 22, filho de imigrantes japoneses, da classe média alta de São Paulo, que votou em Haddad para a prefeitura de SP, revela certa sofisticação na busca de definição: “não sabia o que era direita e esquerda, tinha pouca idade e pouco interesse pela política. Aí passei a ler autores conservadores e me identifiquei. Analisando a realidade dos países da Europa, o conservadorismo de direita sempre foi melhor para as nações. Distanciei-me do PT pelo apoio dele a ditaduras como Venezuela e Cuba. Mas sou flexível. É que essa eleição é diferente, há muita polarização”.

3. A cultura do individualismo e o neofascismo ou protofascismo

“A noite caiu. Tremenda,
sem esperança…
Os suspiros acusam a presença sombria
que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho na noite”
(op.cit.)
Bolsonaro é também a resultante da exacerbação do individualismo na sociedade brasileira. Ele vem acompanhado da descrença em qualquer instância pública e nas instituições de representação direta de grupos e classes, como associações de vizinhos, sindicatos, grêmios e centros estudantis, movimentos dos sem terra e sem teto. “Vamos acabar com os ativismos!”, bradam, raivosos, os entusiastas do presidente eleito. O próprio afã do “cada cidadão uma arma” se inscreve nessa cultura desesperançada: “que cada um, ao menos, tenha o direito de se defender, já que o Estado não o faz”.
Mangabeira Unger menciona o que vislumbra como “valores” da chamada “classe C”, “esse pessoal que estuda à noite, luta para abrir um negócio, quer ser profissional independente”: a cultura da autoajuda e da iniciativa empreendedora do “self made man”, da competitividade, da ascensão material via meritocracia. Avessa a qualquer espírito solidário, ainda que invocando sempre a “proteção divina”.
Reconheçamos: as ideias de ascensão social individual e bem estar exclusivamente familiar – bem capitalistas – estão introjetadas na subjetividade da maioria do povo, muito mais do que a da consciência de classe e da luta coletiva para a superação da exploração e da miséria.
O voto em Bolsonaro não é um voto “fascista”. Não há, nem de longe, 57,7 milhões de brasileir@s com essa concepção. Ele deriva também, aí sim, de uma mística hegemônica do capitalismo contemporâneo, que atribui aos pobres sua própria situação de pobreza, à sua falta de “empreendedorismo”. A defesa coletiva de direitos deve ser abandonada, e a escolha está posta: ou eles, os direitos, ou o emprego. Tempo do cada um por si, e um chefe nacional do “murro na mesa”, que ponha “ordem” na casa. Nada de “privilégios”, cotas, favorecimento do “coitadismo”: que cada um se vire, por seus próprios méritos.
A eleição de Bolsonaro é uma vitória, ainda que por pequena margem, das ideias da nova direita, que tem como seu formulador maior, desde o fim dos anos 90, o filósofo Olavo de Carvalho. Nova direita que Bolsonaro traduz com seu velho discurso tacanho tecido com traços racistas, misógenos e de apologia à tortura e à ditadura. Essas ideias ganharam enraizamento popular quando começaram a se fundir com as pregações neopentecostais de pastores carismáticos, com grande poder de influência das periferias das grandes cidades, capilarizando-se crescentemente em todo o país. Abre-se uma nova igreja com facilidade, onde os fiéis buscam as curas de seus muitos males. O físico alia-se ao “metafísico”: as prédicas, de viés muito conservador nos costumes e centrando na salvação individual, desde que se aceite a verdade divina única, estão nas TVs e rádios durante 24 horas. Só o resgate da autoridade, do “respeito” e a destruição dos “pecados do mundo” evitarão o caos.
Ainda a propósito da categoria “fascista” – que merece cuidado teórico em sua utilização, pois banalizá-la significa esvaziá-la – é preciso distinguir Bolsonaro e seu entorno mais “orgânico”. É necessário também diferenciar o fascismo historicamente realizado, na primeira metade do século passado, de tendências contemporâneas que têm pontos de contato com aquela experiência. Que foi de estado totalitário, controlador geral da sociedade, mobilização de grupos paramilitares, ultranacionalismo belicoso, colonialista e expansionista, culto à disciplina imposta pelo chefe supremo, desprezo e perseguição a opositores e às minorias.
Paulo Sérgio Pinheiro, professor aposentado de ciências sociais na USP, destaca que “não adianta pegar a forma do fascismo italiano e tentar ver se Bolsonaro se encaixa nela ou não. Fascista não é apenas Mussolini. Falta a Bolsonaro o ultranacionalismo que marcou o fascismo clássico, assim como o apoio da Igreja Católica. Mas ele tem várias das características de um extremista: a mitificação do passado, o culto à hierarquia, o anti-intelectualismo, o desprezo pelas regras democráticas” (FSP, 21/10/2018).
Francisco Martinho, especialista da USP em história da direita, relativiza ainda mais a caracterização de Bolsonaro como fascista: “é tão intelectualmente despreparado que não posso chamá-lo de fascista. Aposto que nunca leu um texto fascista, é muito primário. Acho que no fascismo italiano seria um militante de base, nunca alguém de destaque” (op. cit.)
Uma coisa é certa: Bolsonaro pratica e estimula o desapreço pelos valores democráticos, fortalecendo um fenômeno mundial que a ascensão da extrema direita cria: a “democracia de fachada”, de encenação. O conceito é explicado pelo professor Emilio Gentile, da Universidade de Roma-La Sapienza, especialista em fascismo: “Uma democracia pode ser racista, porque, com a a maioria, pode-se negar o direito à minoria. Na melhor tradição ocidental, a democracia não é o governo que garanta a maioria, mas o que consente à minoria se tornar maioria. O equívoco é acreditar que, na democracia, o povo é sempre soberano. (…) Quando se aceita a linguagem da violência como uma linguagem da democracia, não há mais freio para comportamentos violentos” (entrevista à FSP, 21/10/18)
Bolsonaro não tem pudor de proclamar como herói e exemplo o terrível chefe da tortura estatal no Brasil da ditadura civil-militar de 1964, Brilhante Ustra. Bolsonaro é expressão da direita virulenta. Aplaudiu milícias e grupos de extermínio e estimulará, mesmo que nada diga, a organização e a ação de grupos paramilitares para combater todos os que lutam por terra, teto, demarcação de áreas indígenas e quilombolas. Por mais que alguns apostem em “controles constitucionais” para limitar o novo governante, ásperos e ensanguentados tempos se avizinham!

4. Quadra de retrocessos

“A noite é mortal,
completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias
(…) A noite anoiteceu tudo…
O mundo não tem remédio,
os suicidas tinham razão”
(op.cit.)
Há algumas hipóteses sobre a linha que o governo Bolsonaro vai seguir. Que será um governo ultraconservador não há dúvidas. Implementará incessantemente ataques às políticas públicas, notadamente de educação e saúde, aos direitos d@s trabalhador@s e dos povos indígenas e quilombolas, aos LGBT e demais minorias.
Atacará, de forma jamais vista, o meio ambiente, considerado “entrave” ao desenvolvimento (anuncia-se que o Ministério do Meio Ambiente será extinto, criando-se uma secretaria vinculada ao Ministério da Agricultura, vale dizer, do agronegócio. “Um sinal verde para o aumento dos desmatamentos e da poluição do ar, dos rios, dos oceanos”, denuncia o climatologista Carlos Nobre). Será autorizada a exploração econômica de terras indígenas e haverá a liberação da caça (indo além da de animais exóticos), que Bolsonaro considera “um esporte saudável”. Anuncia, a la Trump (seu modelo inspirador), a saída do Brasil do Acordo de Paris.
Na Educação, o ataque à liberdade de cátedra e a pedagogia crítica e emancipatória está em curso, com os projetos – em legislativos municipais, estaduais e no Congresso Nacional – do obscurantista e amordaçador “Escola sem partido”.
O novo-velhíssimo governo desprezará totalmente a Cultura, considerada “aparelho ideológico esquerdista”: a Lei Rouanet e todos os incentivos estão seriamente ameaçados. Difícil esperar algo diferente de um governante que assume não ter lido nenhum romance na vida, cujo gosto musical ou cinematográfico é desconhecido – se existente – e que tem como livro de cabeceira “A verdade sufocada”, do coronel Brilhante Ustra, o “Dr. Tibiriçá” do Doi-Codi, aparato superior da tortura e da morte no Brasil da ditadura civil-militar.
Será o governo da desregulação e privatização máxima, e de máximo autoritarismo. Não sem intensos conflitos internos, dada a natureza de “mandonismo” de muitos dos seus ministros e a inconsistência programática de seu “projeto”. Este, de registro superficial até aqui, se configurará como mistura improvisada de visão simpática a um certo estatismo, tradição do estamento militar, com os interesses dos defensores do mercado total. A influência militar será forte, quase tutelar.
A propalada negociação “deputado a deputado”, “senador a senador” no Congresso, desconsiderando as bancadas partidárias, não se sustentará. O balcão de negócios ficará ainda mais caro. Como formará sua base de sustentação, em um Congresso com 30 partidos, que tem cerca de 150 militares, policiais e evangélicos neopentecostais – seu suposto “núcleo duro”? Oriundo do “baixo clero”, e de convívio amistoso com as práticas fisiológicas tradicionais, Bolsonaro tende a se adequar ao esquema do “toma lá dá cá” de sempre, com seu viés corrompido.
Rejeitando isso, terá que se apoiar na mobilização da massa que o elegeu para pressionar o Parlamento em torno de suas propostas supressoras de direitos e de retro-utopia, o que não é costume da direita que, desde 2013, foi às ruas. Isso abrirá muitos pontos de tensão, cenário não desejável nem por ele nem por seus grandes fiadores, o mercado e a cúpula das FFAA.
Resta saber se romperá os limites constitucionais, como alguns de seus próceres vocalizam, ou se vai se cingir ao ordenamento jurídico-político vigente, tentando alterá-lo por via congressual. Intervirá nas Universidades, destituindo reitores do campo progressista? Tentará fechar sindicatos? Abrirá processos contra entidades que questionam suas políticas regressistas, como o MST, o MTST, o Cimi, entre outras? Buscará, de imediato, fechá-las?
Com o enorme e generalizado descrédito nas instituições, tentará avançar nos retrocessos, desprezando a lei? Abrirá uma intensa perseguição, com prisões e condenações referendadas pelo setor mais conservador do Judiciário, contra todos os movimentos sociais, implantando uma espécie de “neomacarthismo”?
À moda nazifascista, grupos paramilitares se sentirão empoderados, e desenvolverão ações de intimidação, agressões e depredação – como já se vislumbrou na campanha. O mais é incerteza, pântano, conflito.

5. A onda que eleva é a mesma que afoga

“Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartirárs com todos os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna”
(op.cit.)
A História não tem o ritmo das nossas angústias mas sua roda não para de girar. A verdade é que o eleitorado, no Brasil, tem se mostrado volátil e extremamente mutante. Por isso, esteve disponível para uma proposta de extrema direita. É sabido que quem elegeu Bolsonaro para a presidência da República votou, em boa parte, em Lula ou Dilma nos pleitos anteriores. O brasileiro médio é conservador mas não está extremado, exceto sazonalmente.
O “antipetismo” foi se alastrando e ganhou dimensão coletiva “doentia”, irracional. Diante disso, toda ideia de “conciliação”, de “negociação” perdeu força. Agora é o conflito aberto, mas pouco explicitado no plano do debate político civilizado, entre visões de mundo, de nação e de relação com a vida bem distintas.
Não há, porém, uma consciência politizada e organizada na extrema direita. O MBL é um esboço dessa organização. O PSL tenta se estruturar como partido agora forte, com grande base parlamentar. O que formou o arco vitorioso foi mais o veto do que o voto: veto ao retorno do PT ao poder. Pelo tanto que errou, sim, mas também, na ótica do conservadorismo mais retrógrado, pelo que fez de bom, pela aceitação de uma diversidade que os autoritários negam.
As novas forças politicamente dominantes terão imensas dificuldades para encontrar um ponto comum quanto ao papel do Estado, que alguns deles veem como mero entrave ao mercado, além de “antro de corruptos”. Seu acúmulo sobre diretrizes econômicas e políticas públicas de educação, saúde, moradia, saneamento e ambiente é nulo, pois centraram sua tática eleitoral e arremetidas verbais em torno da chamada “pauta moral”, que divide o mundo entre “decentes” e “indecentes”, “salvos” e “perdidos”, “subversivos vermelhos” e “pessoas de bem”. O insuspeito Reinaldo Azevedo, tentando caracterizar Bolsonaro (“que de ‘novo’ não tem nada”), afirma que “essa barbárie retórica não tem nada a ver com liberalismo” (FSP, 21/10/18).
Há quem acredite que o governo Bolsonaro não sobreviverá às suas próprias contradições. E, com o correr dos meses e das desavenças palacianas, com a seiva contaminada da mediocridade intelectual e da inexperiência administrativa, mergulhará no profundo caos. Os setores dominantes do Capital que o apoiaram o abandonarão, e até um novo processo de impeachment poderá ocorrer. Ou mesmo o “autogolpe”, prenunciado por ninguém menos que seu vice, o reacionaríssimo general Mourão.
Preservado o calendário eleitoral, não é impossível que a mesma “onda” que elegeu Bolsonaro se erga na direção contrária, elegendo uma força progressista, de esquerda. Como disse o camponês do documentário “Cabra marcado para morrer”, do saudoso Eduardo Coutinho, “nada como um dia depois do outro, com uma noite no meio e Deus em cima”…

6. Paciência histórica: encontro de causas, autocrítica e trabalho de base

“O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda não se modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza da tua vinda.
(…)
Na reta final do 1º turno das eleições de 2018, a candidatura Boulos/Sônia Guajajara (PSOL/PCB) realizou, no Rio de Janeiro, um ato público muito interessante: foi o “Encontro de Causas”. Ali desfilaram, com suas propostas, diversos movimentos sociais. Dos que lutam pelo direito à moradia, à terra, aos territórios indígenas e quilombolas. Dos que defendem os direitos das mulheres, dos LGBT, dos negros, dos deficientes, da juventude. Dos que realizam uma educação crítica e libertadora. Dos que advogam o cuidado ambiental. Dos que querem orçamentos participativos. Dos que praticam a agroecologia saudável, e formam cadeias de distribuição sem intermediação exploradora. Dos que lutam por uma reforma política com participação popular. Dos que batalham pela democratização dos meios de comunicação.
Esse “Encontro de Causas” precisa se articular permanentemente, apoiado pelas Frentes Povo Sem Medo e Brasil Popular, na quadra que agora se abre: a da resistência. De imediato, é urgente organizar a autodefesa de nossas lideranças e entidades, porque hordas brutalizadas e vingativas fascistoides poderão promover atos de terrorismo e vandalismo, com a tolerância – e até mesmo com a participação – de autoridades policiais. Essa aberração antidemocrática sentir-se-á com o aval da cúpula da República para agir, em situação inédita para as novas gerações. Afinal, o presidente já disse, na tribuna da Câmara dos Deputados, que “os grupos de extermínio são muito bem-vindos”.
No plano partidário, é preciso tecer, o quanto antes, a Frente Democrática de Resistência, com todos os partidos do campo progressista reunidos em lutas comuns, na sociedade e nos Parlamentos. Todas as conquistas inscritas na Constituição de 1988 estão ameaçadas. É preciso criar, desde já, uma plataforma básica para a atuação conjunta. Já há um alentador embrião disso, inclusive em Manifesto elaborado pelas Fundações de Estudos do PSOL, PDT, PT e PC do B, lançado em fevereiro deste ano (“Unidade para reconstruir o Brasil”).
Isso pressupõe resgatar uma prática analítica que a esquerda, notadamente o PT, abandonou: a autocrítica. E, para ser eficaz, ela tem que ser profunda e sincera, não meramente declaratória e formal, na base superficial de um simples “erramos”. É imperativo examinar o porquê do adaptacionismo a um sistema que todos sabíamos estruturalmente corrompido. É urgente verificar o que levou, no dizer de Jaques Wagner, senador eleito pelo PT da Bahia, o maior partido de esquerda do país a “se lambuzar”. É premente rediscutir o conceito e a prática de governabilidade, e se ela implica necessariamente em desmobilizar as forças sociais de mudança, atrelá-las ao aparato de Estado, domesticá-las, esterilizar, pelo oficialismo, sua agudeza crítica e questionadora.
É imperativo também retomar o trabalho de base, pedagógico, cotidiano, consistente, ajudando a elevar a consciência política e organizativa do nosso povo. Abandonar ou não se importar com esse trabalho, descuidando também da comunicação popular, mesmo na década em que teve instrumentos até institucionais para isso, foi um imenso erro da esquerda. A própria Teologia da Libertação cedeu espaço à Teologia da Prosperidade, reforçando a perspectiva da salvação individual e da realização meramente pessoal na existência terrena. Nessa conjuntura, perdemos a disputa de ideias na sociedade.
A dimensão utópica, sem a qual não se transforma nenhuma sociedade, perdeu terreno para o pragmatismo, para a ascensão individual, para o conforto da bolha familiar, para a negação da vida gregária, em sociedade.
Sempre há saídas e há braços, momentaneamente fragilizados pela larga derrota. Coloquemo-nos de pé, e de mãos dadas. Somos pelo menos 47 milhões.
“Havemos de amanhecer. O mundo se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora”
(opiei.).

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