fonte: https://www.soescola.com/2017/06/e-na-escola-publica-que-se-ganha-ou-se-perde-um-pais.html
Desde 1994, o português António da Nóvoa, 62, visita o Brasil pelo menos
uma vez ao ano. Requisitado para palestras e aulas, este educador e
ex-reitor da Universidade de Lisboa é, assim, um espectador privilegiado
dos avanços e descompassos do sistema educacional brasileiro. Vê, por
aqui, mudanças significativas, como a ampliação do orçamento dedicado à
educação. “Mas a escola pública brasileira ainda é, de forma geral, um
escândalo”, diz. “E é na escola pública que se ganha ou se perde um
país”.
Em 2006, Nóvoa liderou o processo de fusão da Universidade de Lisboa e
da Escola Técnica de Portugal, abrindo a universidade ao país. A
popularidade que alcançou na defesa pelo direito ao ensino público de
qualidade fez dele o representante da esquerda portuguesa nas eleições
presidenciais do início deste ano. Derrotado pelo candidato conservador,
Nóvoa segue sua agenda de “ativista da educação”, como já foi batizado
pela imprensa portuguesa. Dos exemplos bem-sucedidos de ensino que já
conheceu pelo mundo, destaca os da Suécia e Finlândia. “São modelos
fortes porque estamos falando de três ou quatro séculos de
responsabilidade e compromisso com a escola. Não três ou quatro
décadas”. Nesta entrevista à Muito, Nóvoa fala sobre inovação no ensino, elite brasileira e escola com partido.
O senhor costuma dizer que o problema da educação brasileira não está na escola. Onde está?
Há dois problemas centrais. O primeiro é uma falta de compromisso social
e político com a educação de qualidade para todos. Os brasileiros já
incorporaram a ideia de que a escola é importante e de que é preciso que
as crianças a frequentem. Mas ainda não há um verdadeiro compromisso
com essa ideia. Não falo apenas numa escola onde todas as crianças
estejam, mas onde todas as crianças aprendam. Esse ainda é um
compromisso frágil por parte das famílias, da sociedade e dos políticos.
E há o segundo problema, a formação dos professores. No Brasil, os
professores são formados com muita coisa teórica, muita coisa
desconectada, e pouquíssimo foco no trabalho docente, na formação do
professor como um profissional que terá uma atuação diária dentro de uma
escola. Isso tem levado a professores com muitos compromissos –
políticos, sociais, com o bem-estar social da criança -, mas com pouco
compromisso com a aprendizagem, que deveria ser o foco.
Nossos
resultados médios são ruins, mas há muitos municípios com resultados
bárbaros. Por que não conseguimos replicar essas estratégias?
Em regra geral, quando uma escola funciona é a existência de um grupo de
professores que conseguiu mobilizar o município em torno de um projeto.
Portanto, é chave ter professores empenhados e mobilizados. Deveria ser
bem mais fácil, a partir de exemplos que funcionam, criar um contágio
positivo para outras escolas. Mas isso não acontece porque a mobilização
dos professores é escassa. Há um descompromisso, que tem raiz na
formação, nos salários fracos. Há uma coisa no Brasil, por exemplo, que é
terrível e que não tem precedentes em outros países: professores que
trabalham em várias escolas. Isso torna o dia a dia do professor um
inferno. Como ele pode se concentrar numa escola, num projeto, se ele só
passa metade do dia ali?
Essa fragmentação não acontece em outros países?
Nunca encontrei um exemplo semelhante. Na Europa não existe, nos Estados
Unidos também não. E em todos os países que visitei na África e Ásia
essa não é uma prática. Essa fragmentação do tempo do professor é uma
particularidade do Brasil.
Inovação,
na educação, parece sempre atrelada a inserção da tecnologia na sala de
aula. Por que a escola tem tanta dificuldade em repensar a forma com
que os conteúdos são trabalhados?
Os profissionais da educação têm, de forma geral, uma atitude defensiva.
O cientista está sempre trabalhando no desequilíbrio, no risco, no
desconhecido. O professor está sempre numa fronteira conservadora, do
‘não risco’. Isso sempre foi assim. E é dramático. Os professores
precisam perceber o que está acontecendo no mundo e, mais precisamente,
perceber o que está acontecendo com as crianças. As crianças, hoje,
pensam e ascendem ao conhecimento de forma diferente de nós. Pela
primeira vez na história do mundo, as mudanças na escola não vão
aparecer por conta de teorias pedagógicas, programas educativos ou leis.
As mudanças vão aparecer porque as crianças estão exigindo dos
professores que eles se adaptem a um mundo novo. Isso é totalmente
revolucionário. A primeira revolução foi a invenção da escrita. A
segunda, a invenção do livro. A terceira grande revolução está em curso.
Em todas elas, o que mudou foi a forma de ascendermos ao conhecimento,
de usarmos o cérebro e de aprendermos. Nós estamos num momento de virada
na forma como se aprende. As novas gerações utilizam outras partes do
cérebro, não fazem uma aprendizagem linear – às vezes, partem do mais
complexo para depois alcançar o mais simples.
Como
promover essa inovação no Brasil, onde, segundo dados do Ministério da
Educação, 22% dos alunos de 8 anos não sabem ler adequadamente e 35% não
sabem escrever?
A questão da aprendizagem é, antes de qualquer coisa, um problema de
sentido. Ou seja, quando estamos aprendendo algo nos perguntamos se
aquilo tem algum sentido para a vida. Se eu pedir a uma criança para
fazer, durante cinco horas por dia, uma atividade em que ela não
encontre nenhum sentido, ela não fará essa atividade – se fizer, fará de
forma mecânica e não apreenderá. Quando falamos em escola do futuro
falamos de uma escola que se baseia no sentido do aprendizado. Há, hoje,
no Brasil, muitas crianças de 8 anos que não sabem ler nem escrever,
mas essas mesmas crianças são utilizadoras do WhatsApp e muitas delas
escrevem e leem no WhatsApp. Claro, podem escrever e ler mal, mas ainda
assim o fazem. No momento em que elas têm uma necessidade de se
comunicar, elas vão querer aprender a escrever. Como transformar essa
escrita em algo que atenda ao cânone da língua é um desafio. Mas a
educação brasileira pode dar um salto e sair de uma situação complicada
para uma situação favorável. Isso passa, necessariamente, por resolver o
problema do sentido da aprendizagem.
Quais competências o professor deve ter para trazer esse sentido?
No lugar de competências, gosto de falar em disposições. A primeira é
uma disposição para trabalhar coletivamente. É preciso que o professor
perceba que o seu trabalho não é individual e aquela ideia do ‘eu
professor, com meus meninos, na minha sala de aula’ já não existe mais. A
ideia, agora, é ‘nós professores, com todas as crianças da escola,
vamos organizar o trabalho pedagógico’. Além dessa disposição ao
coletivo, há uma disposição em trabalhar no espaço social. O conceito de
que a escola é uma espécie de ‘bunker’, no meio de um bairro, de uma
cidade, está ruindo. A escola vai andar pela cidade. Quem educa uma
criança é toda a cidade. A ideia de que a escola vai educar a criança é
uma ideia do século passado. Os educadores foram colando tudo dentro da
escola – a matemática, a história, a educação ambiental, a educação
sexual, a luta contra a violência e contra as drogas – e a escola está
inchada, prestes a ver suas estruturas arrebentadas.
Segundo
a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, as
instituições públicas brasileiras gastam quatro vezes mais com alunos no
ensino superior do que com alunos na educação básica. Há uma inversão
de prioridade?
Sim. O Brasil tem uma elite muito forte. Talvez seja um dos países com a
elite mais forte e dotada de grande poder. E, quando falo em elite,
falo da econômica, mas também das elites intelectuais e de esquerda. Por
isso, inclusive, há um abismo entre os professores da educação básica e
do ensino superior. Abismo salarial e de condições de trabalho. A elite
brasileira conseguiu criar uma série de direitos que são muito
diferentes dos direitos de quem está embaixo. E isso se traduz na ideia
de um financiamento canalizado para as próprias elites. É natural que o
ensino superior custe mais caro do que o ensino básico. Mas que seja 20%
mais caro, não quatro vezes mais.
Numa
entrevista recente, o professor e ex-ministro da educação Renato Janine
Ribeiro disse que há muita resistência no Brasil em apoiar a educação
básica. Uma resistência, inclusive, dentro do corpo de professores
universitários…
Há uma resistência grande a certas mudanças e uma incapacidade de
perceber que as mudanças têm que acontecer a favor de quem está na
educação básica. Quem está na universidade arranja todos os argumentos
para que isso não aconteça. Para mim, é muito doloroso ver que o Brasil
tem, hoje, uma educação universitária pública de qualidade, mas essa
qualidade se faz à custa de uma coisa: 20% dos alunos estão na
universidade pública e 80% estão nas universidades privadas. Isso quer
dizer que a qualidade desses 20% se faz à custa de que 80% dos alunos
foram mandados para as instituições privadas, para pagar taxas elevadas
e, muitas vezes, com ensino de péssima qualidade. Quando o Brasil
reserva apenas 20% das vagas para a educação pública e empurra os outros
para fora, consegue uma qualidade nos 20%.
Qual
é sua opinião sobre o programa de financiamento estudantil, Fies, que
teve seu orçamento expandido e, agora, enfrenta desgaste?
Esse programa tem uma grande vantagem e uma grande desvantagem. A
vantagem é permitir que alunos que não tenham acesso a uma universidade
pública possam continuar seus estudos. Nesse sentido, é um programa de
democratização das oportunidades. Agora, há uma imensa desvantagem, que é
o Estado financiar instituições de péssima qualidade. Não é o caso de
todas as instituições, mas é o caso de muitas. Seria preferível que
esses recursos fossem canalizados para expandir a universidade pública,
alargando sua capacidade de acolhimento e oferta de vagas.
O senhor é a favor de que famílias mais ricas paguem mensalidade nas universidades públicas?
Este não é o melhor caminho. Embora seja um pensamento que vem sendo
questionado em muitos lugares do mundo, ainda acredito no direito
universal à saúde, educação e justiça. E se todos têm direito, isso vale
tanto para o rico quanto para o pobre. Essa é minha concepção de
justiça social. Então, onde é que se faz o equilíbrio social para que
tanto o rico quanto o pobre, quando cheguem ao hospital, sejam bem
atendidos? Nos impostos. O rico deveria pagar muito mais impostos do que
o pobre. O equilíbrio social não deve ser feito na prestação do
serviço. A universidade pública deve ser capaz de atender o conjunto da
sociedade. Mas a gravidade dessa questão, no caso do Brasil, é que a
universidade pública está disponível para apenas 20% dos estudantes.
Está claro que precisa haver uma maior equidade. E, se para alcançar
essa equidade for necessário, em algum momento histórico, introduzir
algum tipo de pagamento, não vejo mal nisso. Mas esse pagamento deveria
ser, também, pensando de forma universal, com todos os alunos pagando
pequenas taxas mensais ou anuais – e aqueles que não pudessem pagar
comprovariam essa incapacidade e ficariam isentos dessas taxas. Esse
pagamento iria permitir que o Estado expandisse a rede pública e não
permanecesse custeando quase a totalidade do orçamento de universidades
que não conseguem atender à demanda de alunos.
Hoje,
no Brasil, há diversos projetos nas casas legislativas estaduais e no
Congresso que reivindicam uma “escola sem partido”, na qual não haveria
espaço para “doutrinação ideológica”. O que pensa sobre isso?
Esse debate é um absurdo, porque, obviamente, não há nenhum conhecimento
que não seja fruto de um debate ideológico. Uma escola sem partido é,
portanto, uma escola que não existe. Esses movimentos são, normalmente,
autoritários. A escola sem partido, então, pode ser encarada como a
escola de um único partido, em que o diálogo e a discussão não
proliferam e não há compreensão das diferenças. Já assisti a muitos
movimentos parecidos e nenhum deles vingou. Por outro lado, é preciso
recusar a ideia de uma escola doutrinária. A escola não serve para a
apresentação de uma versão, mas para expor o mundo. Serve para dizer à
criança que há muitas maneiras de pensar e de viver. Que há pretos e
brancos, católicos e pagãos. A escola, na verdade, é o lugar para muitos
partidos.
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Fonte: Atarde.Uol
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