150 mil fragmentos de cultura guardada e compartilhada


por Vitor Nuzzi publicado 22/02/2014 09:38, última modificação 24/02/2014 18:23
foto e reproduções Jailton Garcia/rba
para todos
Assis: “A nossa ideia é sair daqui, ter um espaço próprio” 

Ao entrar na casa de Assis Ângelo, na região central de São Paulo, percebe-se que ali fica um reduto de cultura popular. Quadros com desenhos, pinturas, fotografias, imagens de artesanato, ilustrações, discos, livros, tudo remete ao assunto. No toca-discos, um antigo bolachão toca Preto e Branco, com o grupo Quatro Ases e um Coringa, com ironias sobre a democracia racial brasileira. É apenas um dos 150 mil itens do acervo do jornalista e pesquisador, que em 2011 criou o Instituto Memória Brasil, com o objetivo declarado de preservar a cultura do país.
Estão com ele pessoas como o compositor Theo de Barros (coautor, com Geraldo Vandré, da clássica Disparada), Roberto Marino (filho de Alberto Marino Júnior, autor da letra da valsa Rapaziada do Brás), o escritor Roniwalter Jatobá (“Acabou de ganhar o Jabuti, está todo feliz”, conta Assis, referindo-se ao prêmio recebido em 2013), o percussionista Papete, os músicos Oswaldinho do Acordeon e Osvaldinho da Cuíca, o violonista Jorge Ribbas, entre tanta gente que se reúne esporadicamente no apartamento do jornalista, no bairro de Santa Cecília, para confraternizar. E o arquivo está todo ali, disponível aos interessados. “A nossa ideia é sair daqui, ter um espaço próprio’, diz Assis, que aguarda parcerias para cuidar do acervo.
Tranquilo na fala, Assis Ângelo se exalta ao falar do que ele considera ser o tratamento dado à cultura no Brasil. “A música brasileira está se acabando, está em processo de destruição. Não existe mais a canção. Acabaram com o baião, o xaxado, a marchinha junina, a marcha de carnaval. Acabaram com o maxixe, o lundu. Quer mais prova? Ligue o rádio”, afirma, ressaltando não ser um nacionalista “no sentido lamentável do termo, que leva à xenofobia”. A lista tem ainda a moda de viola e o cateretê. “Acabou, principalmente aos olhos e ouvidos do grande público.” E acrescenta: “Também estão acabando com os pesquisadores. Ainda somos uma nação de vira-latas”.
Como exemplo, cita Luís da Câmara Cascudo (1898-1986): “Pesquisador independente, deixou uma obra de 180 volumes, e você não vê os livros dele por aí. Frequentei bastante a casa dele, que disse: ‘Pode anotar. Quando eu morrer, vou virar uma notinha de dinheiro’”. E virou mesmo: uma nota de 50 mil cruzeiros, no início dos anos 1990.
A Virada Cultural paulistana não o convence. “Gasta-se muito em 24 horas e no resto do ano... A Inezita Barroso não é chamada, o Oswaldinho do Acordeon há muito tempo não é chamado para nada. Aí morre o Dominguinhos, há uma comoção, mas passa uma semana e se esquece. É como se os nossos governos, os nossos políticos, não acreditassem no Brasil e na sua gente.”
Paraibano, Assis chegou a São Paulo em 22 de agosto de 1976 – Dia Internacional do Folclore, lembra o jornalista, com passagens pela TV Cultura e pelos jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e Diário Popular, entre outros. “Encontrei aqui o terreno firme para minhas experiências nesta vida movediça.”
E as andanças incluíram, claro, o garimpo de raridades. “Quando viajo, procuro sebos. Adoro os alfarrábios”, diz. Em Paris, achou um disco made in France dos Demônios da Garoa – Assis é autor de biografia sobre o grupo, Pascalingundum!, lançada em 2009 e atualmente fora de catálogo, além de obras sobre Luiz Gonzaga e Inezita Barroso. Algumas obras já levam o selo do IMB, casos do CD O Samba do Rei do Baião e do livro Lua Estrela Baião, a História de um Rei.
Entre os discos 78 RPM, estão gravações de Cornélio Pires, Almirante, um discurso do Barão do Rio Branco, o maestro Pattápio Silva, duplas, trios, quartetos, quintetos, sextetos, além de um estojo com 20 discos, lançado em 1932, para coletar recursos para a Revolução Constitucionalista. O acervo inclui LPs de 10 e 12 polegadas (um deles, por exemplo, tem canções de Dorival Caymmi gravadas em hebraico), compactos simples e duplos. “Por baixo, 20 mil fotos de artistas de todas as épocas”, acrescenta Assis, que registra ainda mais de 10 mil partituras. E mais de mil horas de entrevistas gravadas, mais DVDs, fitas em VHS, videocassetes, revistas (Fon-Fon, Cigarra, Ilustração Brasileira, Revista de Teatro, Radiolândia, entre outras) e cordéis – o mais antigo, impresso em Lisboa, é de 1917 (A Encomenda do Gallêgo, do português Ávila Fernandes).
Literatura de cordel está na raiz da educação artística do paraibano, que completará 62 anos em 2014. “O cantador e o cordelista eu acompanhava nas feiras livres. Faz parte da minha cultura popular, que é a digital de um povo. A educação passa pela cultura.” Eventualmente, Assis recebe doações. Caso de algumas mandadas recentemente pelo produtor Braz Baccarin, da extinta gravadora Continental – por exemplo, um livro italiano sobre as origens da música brasileira até 1921. Ao falar sobre isso, o jornalista lembra que Baccarin, de certa forma, foi o responsável pelo clássico paulistano Trem das Onze, de Adoniran Barbosa.
“O Arnaldo Rosa (um dos fundadores do Demônios da Garoa) estava sem gravadora e procurou o Braz Baccarin, que disse: tudo bem, desde que tivesse uma inédita do Adoniran”, lembra Assis. Mas a relação entre o grupo e o compositor era conflituosa, e eles estavam brigados. Foi quando Rosa lembrou de uma letra esquecida por anos em uma gaveta. “Mas a letra era enorme. Numa madrugada, eles resumiram e gravaram.” Eram meados de 1964. A história do filho único que não pode perder o trem foi o único samba de São Paulo a ganhar prêmio no carnaval do Rio de Janeiro, e justamente no 4º Centenário da cidade, em 1965.

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