terça-feira, 12 de outubro de 2021

Psicologia empretiçada: o dia das crianças e o divino erê de Rebeca Andrade

Gegê Natalino

(publicado no mural do facebook)

Na postagem passada, publiquei uma reflexão em chave simbólica, intitulada "A preta velha interir de Simone Biles". Agora, ainda partilhando do meu imaginar sobre as olimpíadas de Tóquio, escrevo, no dia da criança (12/10/21), sobre "o divino erê de Rebeca Andrade". As imagens primordiais da "Preta velha" e do "Erê" (criança divina) produzidas, em especial, pelas umbandas nossas de cada dia , carregam consigo motivações psicológicas profundas que transpassam a psique pessoal e coletiva da brasilidade. Em linha junguiana, podemos pensar que, psicologicamente, "preta velha" e "erê" trazem dinâmicas psíquicas complementares: a "velha" e a "criança". A "preta velha", princípio ancestral de sabedoria, e "erê", princípio arquivelho de inventividade e insubmissão.



Na obra "A criança divina: uma introdução à essência da mitologia", escrevem Jung e Kerényi que " a 'criança' nasce do útero do inconsciente, gerada no fundamento da natureza humana... É uma personificação de forças vitais...". Em outros termos, a "criança" é força psicóloga!
A "criança" em nós e no mundo é a nossa porção leve, sutil e mágica; é aquilo que transgressoramente brinca no terreiro vivo da psique.
Dentro de minh'alma preta, Rebeca Andrade e Simone Biles, simbolicamente, foram captadas compondo dinâmicas complementares: onde Simone "parou" (dando um passo atrás), Rebeca avançou; e o fez na leveza de menina que brinca no dançar.
Fernando Pessoa no "Poema do menino Jesus" fala do Deus-menino, a "eterna criança", que ri e brinca. Diz o poeta: "Ele ri dos reis e dos que não são reis". A eterna criança, que existe desde o passado do mundo, zomba da seriedade burra dos que se tornaram demasiadamente sérios e se esqueceram, como lembra a psicanálise construída por Winiccott, que brincar é coisa muito séria.
Brincar é um trabalho altamente responsável da psique.
Cada vez que um erê baixa num terreiro enuncia essa verdade antiguíssima!
O brincar, campo próprio da criança, é condição para a vida saudável e criativa também do adulto e do idoso. Por que maltratamos tanto a criança em nós?
Só quem brinca sabe que o ser humano não vive somente de pão. A propósito, li certa vez que um ser privado de fantasia é tão carente como um ser privado de pão. Lembra a música: "a gente quer comida, diversão e arte".
Sobretudo, neste tempo de crudelíssima de pandemia, é necessário (e urgente)que cada humana criatura se reconcilie com a criança divina, com nossa porção esquecida de fantasia, imaginação e loucura. Esse é o melhor presente que podemos dar, neste dia da criança, à nossa alma emburrecidamente adulta.
Não sem razão, Jesus exigiu que assumíssemos o Reino como uma criança. "Delas é o Reino dos céus!".
Pergunta Pablo Neruda: "Onde está o menino que fui, segue dentro de mim ou se foi?".
A psiquiatra Nise da Silveira adverte:
"Não se curem amém da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda".
Que nossa "criança divina", nosso "erê interior", nos livre da seriedade burra e nos leve, na dureza de uma pandemia em curso, a fazer mil bailes dançantes na favela profunda de nossos corações!
"Baile de favela", baile de arte, baile de fantasia, baile de poesia, baile de imaginação, baile de brincar, baile de sonhar, baile de sorrir... Bailar para não adoecer, para não se curar em demasia, para não se tornar sério ou séria demais, chato ou chata em excesso, como advertiu Nise da Silveira.
Vale repetir as palavras da psiquiatra rebelde:
"Gente curada demais é gente chata". E confessa ainda Nise: "Felizmente, eu nunca convivi com pessoas muito ajuizadas".
Que Mãe Preta Aparecida, Mãe do Cristo Redentor e nossa, re-una, em nós e no mundo, o que a colonialidade separou: una a cabeça ao corpo, o dever ao prazer, o rezar ao fazer, o brincar ao viver, a "preta velha" ao "erê"!


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PSIQUE EMPRETIÇADA: A PRETA VELHA INTERIOR DE SIMONE BILES
Neste tempo dramático e traumático de pandemia, como saliente o psicanalista Joel Birman, na obra "O trauma na pandemia do coronavírus", urge ouvir arquétipos - modelos exemplares que, através de imagens e símbolos, enchem a psique pessoal e coletiva de força e brilho. Escreve o teólogo Leonardo Boff: "Os arquétipos em nós rememoram um passado histórico real que forceja por ser resgatado e por ganhar ainda vigência na vida atual".
Estre as imagens arquetípicas mais poderosas na brasilidade, destaco as imagens da preta velha ou do preto velho parida nas umbandas de nosso afro-Brasil. Para além de questões religiosas, no sentido estrito, a imagem da preta velha emerge do inconsciente ancestral da brasilidade simbolizando a porção sapiente da alma. É uma imagem poderosíssima para a psique. Uma imagem fala mais que mil palavras! E como atestou James Hilman, mais importante que interpretar uma imagem buscando decifrar o seu significado é dialogar com ele e buscar saber o que ela quer.
Em nossa reflexão, lançando mão da imaginação, faço uma leitura do "não" de Simone Biles como manifestação do diálogo da atleta como sua "preta velha interior" - a porção sapiente que toda criatura carrega na alma.
Chamo de "psicologia empretiçada" as potências psicológicas que buscarei catar em trajetórias da população negra. São saberes, fazeres e lógicas terapêuticas inscritas em corpos e ditas em vozes para além da clínica psicoterápica.
É uma forma de chamar a atenção para saberes e potências psíquicas que atravessaram o Atlântico em "memórias ancoradas em corpos negros", na feliz expressão da historiadora Maria Antonieta Antonacci. Esses saberes ancestrais de psique empretiçada se incorporam hoje em gestos, palavras, imagens e símbolos. E eles não cessam de se comunicar. Desejam,pois, o desenvolvimento e a maturação da personalidade humana.
Ensina a sabedoria ancestral de Amadou Hampatê BÂ: "'Esteja à escuta', dizia-se na velha África, 'tudo fala, tudo é palavra, tudo nos procura comunicar um conhecimento'".
Nas Olimpíadas de Tóquio do ano corrente de 2021, dentre tantos ensinamentos, sublinho agora o momento inesperado e desconcertante em que a badalada atleta Simone Biles abriu mão de competir nas finais individuais da ginástica artística.
Se viver, para toda e qualquer humana criatura é uma batalha, com muito mais força o é para a população negra. Saímos para a competição da vida sempre muito atrás. E isso é uma herança da escravidão e da mentira cívica da abolição. Ser vencedora ou vencedor, em qualquer campo da vida, exige da população negra disposições e persistências sobrenaturais. Por isso, entendemos facilmente o soteropolitano Gilberto Gil quando canta que "a felicidade do negro é uma felicidade guerreira".
Nessa batalha somos muitas vezes forçados a sempre dizer sim, a nunca parar... Dizem que desistir é coisa para gente fraca! Essa, a propósito, é a lógica do mundo branco da colonialidade capitalista, segundo o qual não podemos respirar e tão pouco parar. Tempo é dinheiro, dizem eles!
Como podemos nos dar o luxo de dar um passo atrás e respirar? Como frear e ir para o acostamento se tudo e todos nos mandam acelerar?Quer seja pela sobrevivência ou para conquistar lugares disputados na sociedade, sabemos que lutar é a lei. "Liberdade é uma luta constante", lembra Conceição Evaristo. E essa batalha travamos muitas vezes as custas de terríveis sofrimentos e adoecimentos físicos e psíquicos.
O racismo estrutural é adoecedor. Já nascemos sob pressão! E ela vem de todos os lados. Nem sempre a cabeça aguenta. Diz Biles: "você sente o peso do mundo".
E como se não bastasse também contamos com as pressões dos nossos iguais que nos tem como referência e sobre nós depositam suas expectativas e projeções. Há inclusive aqueles que, sob o pretexto do "ninguém larga a mão de ninguém", querem nos enlaçar em seus projetos de vida e luta. Também, as vezes, é preciso desagradar a esses, sem culpa ou remorso. "O lançar de mãos não pode ser algema", diz. Conceição Evaristo!
Por isso, considero a atitude de Simone Biles de grande valor psicológico.
Há momentos que, doa a quem doer, temos que olhar para dentro e respeitar nossos limites internos. É a hora do "freio emocional". Ou damos um passo atrás ou nos dilaceramos. Há momentos que temos que dizer: "agora não posso ultrapassar o limite interno; e isso não significa, necessariamente, abandonar a competição ou luta da vida. Há o momento da saída, de ir para arquibancada e torcer para que outras e outros avancem. As vezes é preciso sair de cena!
É bem verdade que dizer "não" para uma atleta que chegou onde Simone Biles chegou é muito mais "fácil", comparado a uma atleta iniciante. Entre nós são pouquíssimos os que podem ouvir a voz do coração e dizer "sim" ou "não".
Como minha mãe livremente poderia recusar uma trouxa de roupa tendo que sustentar suas filhas e seus filhos? Quantos "sins" teve que dizer com lágrimas nos olhos. Mas isso não significa dizer que não teve seus momentos de recuo e drible. O povo preto teve que aprender a dizer "não" e recuar de mil maneiras; hora no enfrentando direto, hora na ginga de um bom capoeira. O malandro diz "sim" e "não" na ginga insubmissa de seu corpo.
Mas, para a nossa reflexão vale a certeza de que dizer "não" quando todos esperam um "sim" é sempre psicologicamente desafiador.
Fica, pois, um potente ensinamento para toda humanidade neste tempo dramático de pandemia: a necessidade de, as vezes, se permitir dar um passo trás.
É possível pensar que, em alguns momentos, nossa alma só precisa desse passo (para trás) para poder se impusionar com mais potência para frente. Nossa alma preta sabe, como lembrou Bezerra da Silva, que nem sempre "apertar" significa "acender". Ensinou o mestre: "pra fazer a cabeça tem hora". E é exatamente isso que diz a Bíblia: "Para tudo há tempo debaixo do sol".
É,pois, preciso respeitar, quanto possível, quando a alma diz "não"! Há horas que a vida deseja falar "Da calma e do silêncio". É a partir desse tempo interior sublime que Conceição escreve: "Quando os meus pés abrandarem na marcha, por favor, não me forcem... Deixe-me quieta, na aparente inércia". Também lembra com ancestral sabedoria Conceição Evaristo que é preciso "cuidar dos passos assuntando as vias, ir se vigiando atento, que o buraco é fundo".
Quanta psicologia empretiçada não há nessas palavras, nesse recado ou nessa "visão" de Conceição?
Simone Biles percebeu que realmente o "buraco é fundo" e teve coragem de ser fraca e bancar o peso da decisão.
Nem sempre podemos corresponder as expectativas e projeções dos outros, nem mesmo daqueles e daquelas que tanto amamos; nem que entre esses estejam nossas mães ou nossos pais.
Há momentos que a avaliação é pessoal e intransferível e, por vezes, incomunicável. Não podemos viver a partir do número de curtidas na internet. As vezes para ouvir a alma precisamos perder seguidores!
O ego precisa aprender a suportar o peso da frustração e bancar a hora do "sim" e a hora do "não".
Desistir nem sempre é sinal de fraqueza!
Não somos deusas nem deuses; nem Cristo, nem Buda, Xiva, Alá ou Orixá. Não somos invulneráveis, tampouco imortais. Somos sim humanos; demasiadamente, humanos... E também não somos portadores da eterna juventude... Ao dizer "não" Simone Baile deu um passo gigantesco rumo à maturidade, que exige a acolhida do limite. O ideal infantilizado da "eterna ou do eterno jovem" faz do humano um eterno aventureiro desenraizado e sem condições de desenvolver a personalidade. É a eterna criança que não conhece limite e que não suporta o peso da frustração.
Biles ouviu a "preta velha interior" que lhe disse: "você não é mais nova como antes". E "macaco velho não põe a mão na combuca"... "Todo tempo tem seu tempo". E "quem não pode com o tempo não inventa moda".
A meu juízo, fruto da imaginação, desse diálogo interior da atleta com sua "velha" oculta nasceu uma Simone Biles maturada e capaz de dizer: "Temos que proteger nossas mentes e nossos corpos e não apenas sair e fazer o que o mundo quer que façamos... Somos pessoas e às vezes só se tem que dar um passo atrás".
Simone Biles nunca mais será a mesma: a "velha" fez nascer a NOVA!
Saravá, Simone Biles!!!
Pode ser uma imagem de 1 pessoa e texto que diz "Foto: Simone Biles (Reprodução/Instagram)"
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