Abaixo, Juca Ferreira fala com exclusividade a FAROFAFÁ,
em entrevista na qual assume pré-candidatura à prefeitura de Salvador
(BA) pelo PT, anuncia veto ministerial ao patrocínio estatal de
biografia da cantora Claudia Leitte e afirma que Luiz Inácio Lula da Silva é candidato imbatível para a presidência da República em 2018.
O ministro da Cultura fala também do predomínio das “energias
cáusticas” sobre as “energias agregadoras” no atual contexto político
brasileiro e diz acreditar num ponto de mutação dessa equação a partir
do Carnaval que passou e da campanha de engajamento da população no
combate ao mosquito Aedes aegypti.
Pedro Alexandre Sanches: Aqui em São Paulo estamos
tristemente acostumados com incêndios em aparelhos culturais, geralmente
os do governo estadual. Agora aconteceu um nos domínios do governo
federal, no acervo da Cinemateca. O que afinal foi ou não destruído?
Juca Ferreira: Eu não tenho ainda, está sendo feita a investigação.
PAS: Está demorando, ministro.
JF: Não. É porque a imprensa, principalmente hoje em
dia, na era da internet, quer tudo em frame. O tempo reduziu bastante.
Uma investigação tem que ser feita. Há a possibilidade de ter sido uma
combustão espontânea, evidentemente sempre há a possibilidade de ter
sido erro humano, ou curto-circuito, ou até, a hipótese mais improvável,
um boicote, o que não acredito de maneira nenhuma. O material é muito
combustível.
PAS: Há um problema de fundo, que é a gestão da Cinemateca.
Jotabê Medeiros: É um problema histórico.
JF: É, na gestão da Cinemateca aconteceu o seguinte:
a Cinemateca era absolutamente precária quando assumimos o Ministério
da Cultura (MinC), em 2003. Nós tomamos a posição de investir muito
dinheiro. Investimos R$ 150 milhões, transformamos nossa Cinemateca na
quinta melhor cinemateca do mundo, assim considerada internacionalmente.
Quando da minha passagem para minha substituta (Ana de Hollanda, nomeada ministra da Cultura em 2011 pela presidenta Dilma Rousseff), houve uma tentativa de criminalização generalizada, uma tentativa de esvaziar o prestígio que adquirimos com a gestão de Gilberto Gil e
Juca Ferreira. Um dos alvos foi a Cinemateca. Montaram um processo, e
acho que os órgãos de controle comeram mosca, porque aceitaram,
questionando, tipo, “por que investiram R$ 150 milhões?, aqui tem
coisa”. Está lá no texto. Questionaram por que compramos a obra completa
de Glauber Rocha sem licitação,depois questionaram
por que a gente comprou o acervo do Canal 100 sem licitação. Montaram um
processo, criaram um auê. O processo teve trâmite, a nossa última
ministra (Marta Suplicy) tentou bater em Lula e Dilma usando esse processo.
PAS: Enquanto ministra?
JF: Não, enquanto estava saindo. E na verdade é
vazio, tanto é que os órgãos de controle estão chegando à conclusão de
que não se justificava o inquérito. Tem erros pequenos no uso do
dinheiro, pagaram não sei o quê com a rubrica que não podia. Mas é erro
técnico de processo administrativo normal. Os órgãos de controle
chegaram à conclusão de que todos os objetivos foram cumpridos. Na
verdade, a Marta – eu não queria nominar -, quando levantou o caso, não
atacou diretamente. Mas atingiu pessoas de alta idoneidade, como Luiz Carlos Bresser Pereira, o camarada que dirige a sociedade de amigos da Cinemateca (Ismail Xavier), o Carlos Augusto Calil (ex-secretário municipal de Cultura de São Paulo).
É gente íntegra, absolutamente comprometida com o cinema, de vida
pública ilibada. Foi a eles que ela acusou, aceitando um relatório cujo
autor ela me disse que era paranoico.
PAS: Quem era o autor?
JF: Eu prefiro não dizer, porque isso é água
passada. Eu me ofereci como testemunha para depor, prestei um depoimento
de uma hora e meia. Duas ou três vezes a pessoa que estava colhendo o
depoimento pediu para eu ser menos agressivo, porque eu disse: vocês
comeram mosca aceitando esse processo. Hoje em dia ninguém xinga
a mãe de ninguém na política, é só acusar de corrupto. Aí se abre um
processo, se passam dez anos, se atinge a imagem pública da pessoa,
depois, lá adiante, pouco importa o que vai acontecer. Tem que
ter mais cuidado de não aceitar, os tempos mudaram. Eu disse: vamos
pegar o caso Glauber Rocha. Como se podia fazer licitação de uma obra
singular? Você vai comparar com o quê? Talvez com os filmes da mãe de
quem denunciou? Possivelmente pode ser uma referência.
PAS: Estava agressivo mesmo…
JF: Estava.
JM: Isso foi no Tribunal de Contas da União (TCU)?
JF: Não, Polícia Federal. A investigação
irresponsável atinge o Estado quase tão gravemente quanto a corrupção. A
Cinemateca foi fragilizada por causa disso. Tem pessoas que
tiveram anorexia nervosa porque foram acusadas de coisas que nunca
fizeram. Criou-se um ambiente de suspeição absoluta dentro da
Cinemateca, que passou por uma obra gigantesca. Erguemos uma instituição
no Brasil e colocamos entre as cinco melhores do mundo. Qual é a
responsabilidade? No depoimento, peguei também o caso da acusação sobre o
Canal 100. Muitos não lembram, qualquer filme que você fosse assistir
no cinema era precedido de um jornal, que desenvolveu linguagem de
cobertura de futebol – até hoje não vi a televisão chegar perto do que
eles construíram como narrativa do esporte mais popular do Brasil.
Resultado: prestei um depoimento, ajudei um pouco eles a descobrirem que
tinham comprado um mico, estão encerrando agora o processo. Mas a
instituição ficou muito fragilizada. Não podia receber dinheiro enquanto
não concluísse. Vamos reabrir plenamente a Cinemateca agora, ela vai
voltar a funcionar totalmente.
Qual é a finalidade da Cinemateca? Primeiro, preservar a memória do
cinema brasileiro. Quando nós optamos por investir R$ 150 milhões é
porque quando chegamos, em 2003, décadas inteiras do cinema brasileiro
tinham um filme, dois filmes. A própria obra completa de Glauber Rocha,
que a gente comprou, é um exemplo: um dos principais filmes, se não me
engano O Leão de Sete Cabeças (1970), não existia mais. Nós
fomos descobrir uma cópia numa coleção de um aristocrata italiano que
gostava do cinema brasileiro. Emprestou, nós copiamos e devolvemos a
cópia dele. Não adianta fazer filme e investir o que a gente investe no
audiovisual se for pra ir pro ralo. Outra função da instituição é apoiar
tecnicamente o desenvolvimento do cinema brasileiro. A Cinemateca tem
os melhores equipamentos de telecinagem, ou seja, de passagem da
película para digital e vice-versa. E a terceira função, que acho que
não atingiu a plenitude, é a divulgação do acervo. Acho que a Cinemateca
tem que deixar de ser paulistana, ela tem uma responsabilidade de
divulgação do cinema brasileiro no Brasil inteiro. Tem que ter algo tipo
vídeo por demanda, tipo Netflix, e organizar programações itinerantes,
como organiza aqui na sede, para que o Brasil todo desfrute desse
patrimônio.
PAS: O que o senhor está descrevendo é um processo
clássico de fogo amigo: setores do PT, de um mesmo governo – o senhor,
Ana de Hollanda, Marta Suplicy -, trocam acusações que terminam com os
filmes pegando fogo.
JF: É, não tao amigo… Essas pessoas que apresentaram o nome de Ana de Hollanda desde o início da gestão Gilberto Gil conspiraram contra Gil.
Depois, acharam inaceitável eu ter substituído Gil. Eles na verdade não
tinham proposta, tanto é que se esvaziou completamente. Quando Ana
assume se vê que era um nome, melhor dizendo um sobrenome, sem um
projeto para a cultura brasileira, e com muito problema com o que estava
sendo construído, com o prestígio daquilo que vinha sendo construído
desde 2003. Foi constante, uma questão que tivemos que enfrentar
permanentemente. E quando chegou o final do governo Lula eles se
movimentaram para que Dilma não me renomeasse e apresentaram um nome
aparentemente insuspeito, um sobrenome muito forte.
JM: Essas pessoas já estavam dentro do ministério?
JF: Dentro, fora. Estavam no Rio de Janeiro.
JM: Era difícil identificar quem eram?
JF: Não, eu sabia de todos. São pessoas que nunca aceitaram uma política republicana impessoal.
A gente tem uma política de audiovisual bem-sucedida. O nosso sucesso
maior não são os Pontos de Cultura, é a política brasileira de
audiovisual. Quando chegamos ao ministério, eram seis filmes por ano.
Hoje são quase 150, ganhando prêmio em tudo que é festival
internacional. Evidentemente é criação dos diretores, roteiristas,
produtores, mas tudo isso é fruto de uma política de Estado, sem a qual
não haveria cinema brasileiro neste patamar. Nessa construção nós
tivemos que enfrentar muitos debates e discussão. Tivemos que nos
enfrentar com uma parte dos cineastas constituídos, principalmente do
Rio, alguns de São Paulo.
PAS: Isso desde o caso polêmico Ancine/Ancinav, não é?
JF: Desde lá de trás. Essas pessoas achavam que
investir numa cinematografia nacional era dispersão de dinheiro. A tese
era de que a indústria tem que concentrar. Para nós não, a diversidade
cultural brasileira tem que ocupar as telas e a gente tem que estimular a
produção do audiovisual brasileiro em todo o Brasil. Hoje em todas as
capitais há muitas empresas de produção de cinema e audiovisual. Nas
cidades de médio porte estão se instalando também. Hoje essa produção é
do Ceará, de Pernambuco, da Bahia, de Brasília. É uma política
bem-sucedida que inicialmente teve que enfrentar certo
corporativismo. Outro aspecto é a lei que rege a TV a cabo e por
assinatura, que hoje rende R$ 1,2 bilhão para produção cinematográfica,
fora o que o governo bota de orçamento. Hoje posso dizer com
tranquilidade que a política cinematográfica brasileira é a política de
Estado para audiovisual mais robusta do mundo.
JM: Corre um risco de retrocesso agora, com o caso da Condecine.
JF: Eu sei, o risco é pequeno, mas corre. É frágil a
argumentação deles. Essa lei foi vista ou com indiferença ou com
oposição. Ou seja, no Brasil sair da inércia e produzir processos de modificação da realidade sempre é muito custoso.
Isso gera conspiração, reação, nota, artigo na imprensa, todo tipo de
movimentação. Foi isso que a gente foi enfrentando, e construímos uma
trajetória ultrabem-sucedida. Hoje o cinema brasileiro está rendendo
mais do que é investido pelo governo, o que é muito bom. Agora, está
satisfeito? Não, o ministro não está satisfeito. A gente tem que
conquistar uma fatia de público muito maior que a que já conquistou. Os
cineastas têm que se colocar na responsabilidade de conquistar público,
para dar sustentabilidade inclusive política, para que não haja
retrocesso no investimento que o Estado brasileiro faz. O audiovisual em
geral não é artesanato, ele custa, e é dinheiro público, e portanto tem
que ter como contrapartida a possibilidade de diálogo e aceitação do
público.
PAS: Podemos dizer que filmes nunca deveriam ser queimados dentro de um aparelho público, sob sua responsabilidade?
JF: Evidente que não. A gente está investigando pra
saber se é tragédia, acidente, erro humano, infraestrutura insuficiente.
A sorte é que praticamente tudo já tinha cópia. A gente está
digitalizando todo o acerto. Mas é evidente que a queima de original é
uma perda, mesmo tendo cópia.
JM: A Lei Rouanet está num momento crucial, pelo menos um novo debate público foi instaurado agora. O que se pode fazer a partir da recomendação do Tribunal de Contas da União, que pode causar problemas para o ministério?
JF: É mais que uma recomendação, é uma decisão.
JM: O MinC já recebeu a decisão?
JF: Já. Tem um lado bom e um lado ruim. O lado pior é
que os órgãos de controle deveriam evitar ao máximo intervir nos
processos executivos sem consultar e assimilar a expertise que quem está
com a mão na massa tem. Eles ouviram, eu liguei para protestar, para
conversar com o presidente do tribunal. Falei com o vice-presidente e
com o relator, eles ouviram. Isso vem da época de Ana de Hollanda, o
processo foi instalado em 2011, quando o Rock in Rio captou patrocínio
via Lei Rouanet. Não vejo isso com bons olhos, você vai judicializando e
criando regras que só fazem complicar. Vai transformando uma lei que já
é muito complicada e negativa em um Frankenstein. Fica difícil.
Diz ali que o MinC não deve financiar iniciativas lucrativas. Na
verdade, a Lei Rouanet foi feita para criar o capitalismo cultural, para
criar uma economia cultural e financiar quem está buscando lucro. Ali
já se choca com a lógica da lei. A lei não tem restrição desse tipo,
quando você cria essa restrição você cria um problema e uma
possibilidade de gestão subjetiva, que é o pior que pode haver numa
gestão pública. É quando você não tem parâmetros objetivos
predeterminados e legitimados.
JM: Cria-se o fantasma do dirigismo.
JF: É, aí sim. Eu posso dizer “esse aqui é, esse
aqui não é”, quando na verdade, desde as pequenas produções às grandes
produções, o lucro é parte inerente da cultura, queiramos ou não. Eu sei
que muitas atividades não são lucrativas, algumas porque nunca serão,
porque têm outra natureza de expressão, de segmentos da sociedade. Mas
mesmo essas muitas vezes vão evoluindo no sentido de adquirir valor e
portanto se transformar em mercadoria. Mas grande parte da produção é
mercadoria, seja do pequeno, do médio ou do grande. Então isso sugere
que os grandes é que são os vilões.
Se você quer fazer frente à presença avassaladora das
empresas norte-americanas e da colonização que existe a partir do
cinema, da música e de outras manifestações norte-americanas, você tem
que ter grandes empresas brasileiras, empresas de médio porte e pequenas
empresas e estruturas culturais sem fim lucrativo. Você não
pode demonizar as grandes empresas culturais. Numa estrutura de um país
de 200 milhões de habitantes inevitavelmente tem que ter grandes
produtoras, e não é negativo em princípio. Naquela prerrogativa, quem
tem potencial de lucro e quem tem potencial de captar? Para determinar
isso eu vou ter que montar um instituto de investigação e pesquisa. Só
pra vocês verem, de cada cem filmes norte-americanos, com uma indústria
com um grau quase científico de previsão, dez ou 15 dão certo em termos
de bilheteria, e os outros passam desapercebidos. Mesmo no maior centro
de produção cinematográfica do mundo, a previsão é deficitária. Como é
que nós vamos fazer, a partir do MinC? A Lei Rouanet já absorve o maior
contingente de funcionários dentro do ministério, agora vou montar um
instituto só para isso? Se eu quiser ser justo e coerente com a
determinação, eu tenho que ter uma capacidade de previsibilidade do que
vai acontecer com cada obra e projeto apresentado que não corresponde à
capacidade instalada do ministério.
PAS: E qual é o lado bom da decisão do TCU?
JF: O lado bom é que o TCU se mostrou sensível às
distorções da Lei Rouanet. Se você pegar os números da Lei Rouanet, é
inquestionável que ela precisa ser superada. A lei apareceu no governo Fernando Collor,
no momento máximo das teses neoliberais, de que o Estado deveria
encolher, não deveria se meter em prestar serviços sociais,
principalmente na cultura. Segundo essa teoria, o Estado seria o vilão, o
lobo mau da história. Sempre que encostasse em Chapeuzinho Vermelho
seria com más intenções, de dirigismo, censura etc. e tal. Aí nasceu a
Lei Rouanet, que tinha como meta criar um capitalismo de Estado, ou seja
o Estado transferindo recursos in natura, com pouca avaliação, para um
setor da economia cultural, das empresas, para que elas pudessem ir se
desenvolvendo. Não gerou esse desenvolvimento. Gerou uma camada de
intermediários que se apropriam. E as empresas deixaram de investir o
que investiam na época. Hoje investem menos do seu próprio dinheiro e
estão montadas na renúncia fiscal de 100% da Lei Rouanet. Em vez de
prestar um bom serviço prestou um desserviço, porque diminuiu o
dinheiro. A Lei Rouanet corresponde a 80% do dinheiro que o MinC tem
para aplicar, e sai dessa forma, sem critério, patrocinando. Tem coisas
boas, mas tem coisas ruins, e o gestor não tem o livre arbítrio de dizer
o que é bom e o que não é, senão aí cairíamos no dirigismo.
Só para ter uma ideia, os produtores de Rio e São Paulo
captaram no ano de 2014 mais do que todos os estados do Norte e Nordeste
captaram em toda a história da Lei Rouanet, desde 1992. Só
esse dado já é suficiente. O Nordeste chega a 5% da captação por causa
de Pernambuco e Bahia, o resto é insignificante. 90% desses recursos
ficam nos estados do Sudeste, e para alguns, porque a grande maioria até
do Rio e de São Paulo não tem acesso. 80% ficam entre as cidades do Rio
e de São Paulo. É uma distorção absoluta, dinheiro público sendo posto à disposição para reforçar marca de empresa.
Tem agora o caso da Claudia Leitte. Quem aprova é a CNIC (Comissão Nacional de Incentivo à Cultura),
um conselho, uma representação da sociedade, onde participam empresas,
produtores, artistas. Não é o ministério que aprova. Eu tenho o poder do
ad referendum, mas não posso usar isso toda hora, é uma
excepcionalidade.
JM: Mas agora vai ter que usar, não?
JF: Na Claudia Leitte vou usar.
JM: Vai vetar?
JF: Vou vetar.
JM: Mas é projeto dela mesmo? Não é uma produtora qualquer?
JF: Não importa. Claudia Leitte tem condições de
captar, é uma das artistas mais bem-sucedidas economicamente, se
enquadra perfeitamente dentro do que o TCU recomenda. Possivelmente
estarei vetando amanhã (19 de fevereiro), a área jurídica está preparando o ad referendum.
JM: Isso vai desencadear um monte de vetos, o senhor vai ter que vetar muita coisa.
JF: Vou ter que vetar muita coisa. Esse é um lado bom, o TCU precipitou a necessidade da passagem da Lei Rouanet para o ProCultura.
PAS: O senhor fala há anos sobre mudar a Lei Rouanet, mas isso nunca se concretiza…
JF: O ano de 2015 foi tumultuado. Se eu botasse pra
votar no Congresso seria uma temeridade, num momento no qual tudo
ganhava uma conotação contra ou a favor. Tenho que administrar isso
também, tenho que ser responsável com tudo que faço. Mas o ProCultura
foi aprovado na Câmara, está aprovado, com algumas modificações
negativas que o Senado está disposto a corrigir. Já tem meio caminho
andado, está andando bem. Tenho ido ao Congresso com certa frequência, e
a maioria dos representantes dos partidos da base e da oposição,
principalmente dos estados que não são contemplados, está disposta a
modificar a lei.
JM: O senhor usou pouco esse poder de veto?
JF: Usei duas ou três vezes o ad referendum.
PAS: Usa quando saem denúncias na imprensa?
JF: Não, teve uma inclusive que a imprensa se
interessou a partir do meu ad referendum. É quando ultrapassa o limite
da permissividade já presente na lei. Teve uma exposição de fotografia
que ia cobrar R$ 20 milhões. Não me lembro exatamente, foram poucas
vezes. Eu evito, porque a CNIC é um conselho de participação da
sociedade. É melhor investir na evolução conjunta que numa intervenção
unilateral do ministro.
JM: Se assumir o caso da Claudia Leitte vai ter um debate, então também não pode fulano, sicrano e beltrano.
JF: O debate já está instalado, o TCU botou esse debate na rua.
JM: Isso vai ocupar seu tempo…
JF: Meu tempo já é ocupado, não só o meu como o do
ministério. Lei Rouanet é a atividade que mais demanda funcionários,
mais gasta dinheiro.
JM: Quantos funcionários?
JF: São em torno de 300.
PAS: O ministro acata ou contesta a decisão do TCU? O que vai acontecer com a Lei Rouanet?
JF: Não vou contestar. Acato, e nas dúvidas, para
evitar gestão subjetiva, vou devolver para eles e perguntar: esse se
enquadra ou não se enquadra?
JM: Institutos culturais são muito questionados. O banco Itaú, que teve o maior lucro da história no ano passado, de R$ 23 milhões, mantém um instituto que é muito procurado pela comunidade artística….
JF: E tem atividades positivas sob o ponto de vista cultural.
JM: …Mas não é um instituto que deveria ser bancado por uma empresa que tem esse lucro?
JF: Você quer a minha opinião? Eu acho que sim. Mas
o Itaú está tentando se adaptar aos novos tempos, sabe que é inevitável a
mudança da Lei Rouanet, já está progressivamente diminuindo a
percentagem de atividades do instituto patrocinadas pela Lei Rouanet.
Ainda é muito, mas está diminuindo. Eu acho que os institutos de banco e
as empresas deveriam bancar os patrocínios por eles próprios. O que a
gente investe aí a gente deixa de investir em outros lugares. Não tem
dinheiro suficiente para financiar o teatro brasileiro, os centros
culturais públicos. Soube que no banheiro feminino de um centro cultural
de um instituto empresarial tem três tipos de absorvente feminino. Em
centro cultural público, às vezes você encontra um arame torcido em
formato de anzol com várias páginas de jornal porque não tem dinheiro
para botar papel higiênico. É irracional, está incorreto, é uma
distorção. É uma lógica de pegar dinheiro público para reforçar imagem
de empresa.
As empresas, quando se associam à Lei Rouanet, querem financiar
atividade que dá reforço para sua imagem. Então a seleção é muito cruel.
O MinC aprova uma grande quantidade de projetos, as pessoas ficam
contentes e esperançosas com o certificado na mão, e só um delta xis,
pouco menos de 20%, consegue efetivamente captar o dinheiro. E se você
for ver o perfil de quem não consegue, é uma exclusão que eu diria que é
inconstitucional. Meu questionamento é que a Lei Rouanet é
inconstitucional, é inconstitucional usar dinheiro público para fazer
esse tipo de exclusão. Ela não passa por um exame detalhado, com lupa,
de um bom jurista.
PAS: No entanto ela está viva desde 1992.
JF: Está, e sem gerar grandes dividendos. Muitos já
disseram que não era dinheiro público, e foi um grande trabalho provar
que é dinheiro público. É dinheiro público. É um dinheiro que não caiu
ainda na conta, mas que é devido pela legislação tributária. Ele já é
dinheiro público. Pergunta a Neymar se ele não está
aprendendo uma lição importante nessa área. Pergunta a outros aí.
Sonegação é exatamente o dinheiro público que não pinga na conta porque o
cara encontrou um mecanismo de não pingar. É dinheiro público, e quem
decide o uso dele em última instância são as empresas, dentro de
critérios que não são os critérios públicos.
JM: Esse diagnóstico já é antigo também.
JF: Da minha parte é antigo, mas de parte da área
cultural não. Tem uns que ganham, em geral os que têm mais visibilidade,
e não querem mudar. Tem uns que pensam que um dia vão ganhar e também
não querem mudar porque são iludidos. E tem uns a quem politicamente
interessa desgastar o governo em vez de investir na evolução cultural do
país. Mas a grande maioria da área cultural hoje quer a mudança. Aqui
em São Paulo, no Rio, em Minas Gerais – e no resto do Brasil nem se
fala, porque não veem a cor do dinheiro.
JM: Não é bom o fato de o TCU ter examinado o espírito da lei,
ter dito que ela tem que ser decidida pelo Estado, e essa decisão cair
na mão do MinC num momento como o atual?
JF: É bom, mas estabelece um conflito. Eu chamo
o objetivo da Lei Rouanet de inconstitucional porque vai contra o
princípio da gestão pública. E o TCU tende a restaurar o princípio
público, dentro desse ordenamento que a Lei Rouanet gera. Então os dois
não batem, uma coisa não bate com a outra. Outra coisa: tem ali uma
pitada de demonização da economia da cultura. É um debate que em algum
momento a gente vai travar. Eu nunca abri a boca para falar mal de
grandes empresas culturais, nem médias, nem pequenas, nem da economia
cultural, nem de artista consagrado, que só merece elogios. O
problema não são as empresas, os artistas consagrados. O problema é a
lei. A lei é que é o erro. E precisa ser modificada, e eu vou conseguir
isso, porque hoje a maioria do povo brasileiro sabe que essa lei não é
correta.
JM: Qual vai ser o impacto da nova configuração?
JF: O impacto é que vai dar um nó, porque o espírito
da lei vai numa direção e a resolução do TCU vai em outra. E eu não vou
exercitar a gestão subjetiva, que é o maior erro que o gestor público
pode ter. Entre a lei e a resolução do TCU, a lei é superior. A
resolução, em termos técnicos, é infralegal. Então está dado o nó. Mas está perto de mudar, vamos viver poucos meses esse nó.
PAS: Ministro, o fato político mais vistoso da sua gestão foi produzido pelo TCU?
JF: Não.
PAS: É errada minha impressão de que o MinC está apagado nesta sua segunda gestão?
JF: Vou fazer um preâmbulo antes de responder sua
pergunta. Quando cheguei do exílio, em 1980, eu morava na Suécia fazia
oito anos. A Suécia é um país que tende à introspecção. São oito meses
de inverno rigoroso. Vivi 35 graus negativos num determinado inverno. E o
Brasil é um país muito expansivo, para fora. Encontrei agora algumas
necessidades de reflexão que anotei no choque da volta para o Brasil.
Estava lá escrito, primeiro, a necessidade do silêncio. No Brasil o
silêncio não existe, ó paí, estou dando entrevista e o barulho está
estabelecido (refere-se a uma picareta que não parou de trabalhar desde o início da conversa). A segunda coisa que estava escrita era refletir sobre a necessidade da introspecção. Você
não pode viver só para fora, com externalidades, exibição,
confraternização. Se não houver o momento da introspecção você não ouve
as vozes interiores. Se não ouve as vozes interiores, você não
amadurece. Ali era um ex-exilado voltando a seu país e
procurando refletir. Eu diria que o Ministério da Cultura também não
pode viver só da externalização. É preciso ter o processo pra dentro,
senão não há amadurecimento institucional, evolução gerencial e
administrativa, formulações mais profundas.
Encontrei um ministério inferior ao que deixei. Ninguém queria
assinar nada. Foi criado lá um grupo de trabalho com pessoas que não são
funcionários públicos, que estão avaliando as prestações de contas
atrasadas da Lei Rouanet de muitos anos. Como eles têm medo, tudo estão
pedindo a devolução do dinheiro. Têm medo de ser cúmplices de alguma
falta, e muitas vezes não há falta nenhuma. Encontrei um desastre,
pessoas absolutamente idôneas, artistas que realizaram todas as metas, e
por um ou outro ponto burocrático estão pedindo o dinheiro de volta,
com juros, correção. Isso é só um pequeno sintoma de uma falta de
confiança do funcionário público, pela conjuntura do Brasil. Tudo está
em suspeição, é ruim isso. E também por essa coisa específica, de uma
criminalização proposital de várias atividades do ministério que eram
legítimas, de que falei no início.
Só isso já exigira de mim um trabalho profundo de restabelecer a
confiança, padrões éticos objetivos, procedimentos. Mas, além disso, não
vim para fazer a mesma coisa que fazia antes. Quando a presidenta me
chamou, nós conversamos no avião, e ela me disse: “Olha, eu não quero
que você faça a mesma coisa que fazia. Quero que você restabeleça o
nível de grandeza que a política cultural tinha, mas os tempos são
outros, o momento é outro, você tem que ir para frente”. Isso está sendo
construído. Digo com a maior tranquilidade que hoje já temos um
ministério pós-crise. Não tem crise ética dentro do ministério, não tem
suspeição, os procedimentos são absolutamente transparentes, temos uma
administração mais eficiente que antes. Por exemplo, encontrei os
cineastas reclamando da burocratização na Ancine. Perguntei para o
cineasta que fez mais oposição à firmação de toda essa política: existe
malandragem na Ancine. Ele disse que não, não existe apaniguamento, o
problema é que é muito burocrático, não respeita os tempos reais da
produção audiovisual, as respostas são sempre atrasadas. Então estamos
com um programa de desburocratização da Ancine e em outras áreas também.
Ou seja, eu tive que me voltar para dentro. Agora, pela primeira
vez, vamos botar na rua políticas de economia da cultura de forma
sistemática. Por exemplo, o que fizemos no audiovisual vai ser feito
agora com a música, um investimento do Estado para que a música supere a
desestruturação da indústria fonográfica e a gente consiga estruturar
de novo uma grande economia da música.
Vamos entrar agora com uma lei de direito autoral na internet,
uma coisa que somos pioneiros no mundo, acompanhados por Alemanha e
França, com apoio explícito de toda a América Latina, do Caribe, da
Unesco, que vai colocar a discussão lá dentro, a partir das nossas
proposições. As grandes corporações que não podemos chamar de
multinacionais, porque operam na nuvem, são uma outra modalidade e por
isso não querem pagar direito autoral aos artistas. Músicos, cineastas,
empresas que têm direitos conexos precisam receber pagamento pelas obras
brasileiras, e só com uma legislação será possível. Sei que não é
suficiente ter uma legislação nacional, por isso estamos operando no
nível da Unesco, das Nações Unidas, da Organização Mundial do Comércio
(OMC). É uma operação de alto risco, precisamos ter uma base técnica
muito sólida para propor, porque é uma coisa nova. Muitos países
desenvolvidos estão tateando nessa área. Isso já está bem constituído,
se precisasse botar a legislação hoje a gente botaria, porque já está
pronta. E foi construído dentro do nosso modelo, com muita discussão com
os diretamente interessados.
Estamos saindo agora com o VOD, vídeo por demanda, uma espécie de Netflix brasileira.
Estamos fazendo isso junto com os cineastas e com o Conselho Nacional
de Cinema e Audiovisual. E restabelecemos a dinâmica dos Pontos de
Cultura, tiramos da criminalização.
PAS: Os Pontos de Cultura estavam criminalizados?
JF: Estavam, total. A mesma coisa que fizeram com a
Cinemateca fizeram com os Pontos de Cultura. Resultado: os órgãos de
controle caíram também nessa cilada e criminalizaram um setor amplo,
diverso e importante da cultura brasileira. Passou a emperrar tudo. Foi
uma ação premeditada. Estamos limpando a área, dando curso de prestação
de contas. Modificamos o mecanismo de prestação de contas. A prestação
de contas para uma pequena organização popular não pode ser a mesma que
se exige de uma grande empresa.
Vamos fazer agora a primeira Teia dessa gestão. Avançamos muito nos
Pontos de Cultura Indígena. Estamos dando apoio cultural aos povos
indígenas, que estão passando por um momento difícil de isolamento,
sendo molestados, massacrados por uma série de setores – garimpeiros,
agronegócio, fazendeiros, mineradores.
Estamos nos preparando para fazer o primeiro Congresso da Língua
Portuguesa, mas não do pessoal da normatização, e sim de quem se
expressa na língua portuguesa.
JM: Com a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP)?
JF: Com a CPLP, mas essa é nossa. A gente acha que o
acordo ortográfico foi uma excelente ideia, mas está dando problemas
porque foi sem discussão. Os normatizadores friamente determinaram qual
seria a ortografia. É preciso que os que se expressam na língua reflitam
sobre a língua, e a partir dessa reflexão é que os normatizadores devem
agir. A gente está tentando corrigir e consertar o avião voando, e
criar uma grande comunidade de língua portuguesa, o que vai ser base
para criar um mercado cultural. A gente tem essa ambição, no sentido de criar um mercado latino-americano, ibero-americano e de língua portuguesa. O Brasil não pode viver só de exportação de commodity agrícola e mineral.
PAS: Qual seria o fato político mais importante dentro disso tudo, se não o TCU?
JF: [Suspira.] Eu vou andar com umas laranjas na minha bolsa pra quando encontrar vocês [faz gestos de malabarismo com as mãos].
Na verdade essa é a parte secundária, agora vai acontecer muita coisa.
Vamos botar o direito autoral na internet para votação no Senado.
JM: É tipo um creative commons?
JF: Não, não precisa ser isso. É direito mesmo,
pagar o direito das pessoas. O Senado vai discutir, vai passar pelas
comissões. Tem apoio de praticamente todos os músicos. Fui me reunir com
eles, a reunião tinha, entre presentes e representantes, 200 dos mais
bem-sucedidos da música brasileira. Pense um, estava lá. Todos eles
estão envolvidos. Eu disse: “Antes de discutir a economia da música na
internet vamos discutir as outras”. Marisa Monte disse:
“Ministro, não vamos perder tempo. Se você quiser lhe dou todos os meus
CDs de presente. Hoje CD é só cartão de visita. Só existem duas
economias, uma grande e uma pequena. A grande é a internet, a pequena é
show. Então vamos logo direto à internet”.
JM: Aqui em São Paulo estamos vivendo uma
pulverização de pequenas casas de shows. As grandes casas estão falindo,
fechando. O MinC teria um diagnóstico para reacender esse setor?
JF: A gente tem uma proposta de uma ação em vários
níveis para reativar a economia da música no Brasil, e isso passa por
aí. A música são várias músicas, que se realizam para públicos
diferentes em ambientes diferentes em momentos diferentes. Levaram Igor Kannário,
o cara mais popular hoje dos emergentes da Bahia, para um bloco de
classe média e ele foi vaiado o tempo inteiro, porque era um público que
não era o dele. Quando morreu aquele sertanejo (Cristiano Araújo),
os jornalistas não sabiam nem quem era, e o cara tinha um público
infernal. Tem um novo Brasil emergindo que não é visível a olho nu. É
preciso um pouco de cuidado para se perceber a complexidade, inclusive
porque o sistema antigo das gravadoras e dos que veiculam não funciona
mais.
PAS: Esta pergunta é perigosa porque vai parecer
causa própria, mas o jornalismo vive exatamente esse mesmo processo de
falência que a indústria fonográfica viveu. Em vários momentos Gil e o
senhor expressaram interesse por essa área, mas há a questão de se é
cultura ou não, se é comunicação…
JF: É, em termos de divisão dos ministérios não é
nossa área, mas em termo de significado é nossa. É uma dimensão
importante da cultura. Comunicação e cultura são irmãs, duas áreas muito
próximas, como são cultura e educação. A gente está acompanhando,
estamos reconstituindo as políticas de cultura digital, que deve ir até
aí. Não sou favorável apenas a trabalhar com os miúdos, alternativos, os
contra-hegemônicos – inclusive porque os contra-hegemônicos vêm me
entrevistar e fazem as mesmas perguntas dos hegemônicos.
PAS: Em qual caso está FAROFAFÁ? Estamos fazendo as mesmas perguntas dos hegemônicos?
JF: Não, não estão.
JM: O senhor falou com O Globo anteontem?
JF: Falei, sobre censura e dirigismo. Poucos dias depois de terem censurado Vila Isabel, engraçado isso.
PAS: De qual censura O Globo queria falar?
JF: Foi uma entrevista conceitual. Mas certamente a minha expectativa não é das melhores, não [risos]…
JM: O senhor falou de pós-crise…
JF: Sim, é isso. O ministério está preparado para
quando o Brasil passar essa onda negativa e for repensar um Estado
eficiente, eficaz.
PAS: E se não passar essa onda?
JF: Aí a gente fecha e vai para a praia. O país não
resiste muito a essa crise. Está se estendendo demais. Boa parte dos
problemas é subjetiva: falta de confiança, falta de investimento nas
soluções, independente de erros e acertos. Tanto é que o PSDB fez uma
pesquisa agora e o resultado foi que a população está rejeitando o
negativismo.
JM: Mudaram inclusive a abordagem.
JF: Estão mudando, por causa disso, por causa dessa pesquisa.
E os empresários já estão manifestando abertamente que precisamos
voltar a mover a economia e que esse clima de golpe e instabilidade não é
bom para o país nem para a economia do país. Acho que está havendo já o
esgotamento dessa crise, que em parte é artificial.
JM: Mais ou menos, há coisas concretas. Por exemplo, o presidente da Câmara dos Deputados é alvo de várias acusações.
JF: Sim, mas já podiam ter tirado. Se houvesse investimento
na solução ele já estava fora. Mas pelo contrário, a manutenção dele é
parte dos instrumentos de manutenção da crise, de instabilidade. Mas agora está mudando um pouco, o PMDB já elegeu o Leonardo Picciani,
que investe no diálogo e na solução da crise. Tem essa do PSDB, que não
conseguiu manter mais a postura negativista. Acho que o Brasil está
começando a tomar consciência de que precisa investir.
PAS: Como um ano inteiro de crise política, mais até que econômica, refletiu no dia a dia do MinC?
JF: Reflete de vária maneiras. Primeiro, o clima
subjetivo no país é de desagregação. As energias cáusticas estão
predominando sobre as energias agregadoras. Isso gera desconfiança
generalizada, falta de respeito. As pessoas pela internet chamam o outro
de canalha com uma facilidade imensa, desconfiam de tudo. Qualquer
coisa que não entendam completamente já creditam a uma manobra corrupta.
Então tem um clima subjetivo muito ruim, que reflete nas artes e na
cultura. Segundo, acho que refletiu em corte de orçamento. O corte foi
brutal. Eu particularmente acho um erro, porque os caraminguás que tiram
da cultura e nada, para a república, é a mesma coisa. Mas para a gente é
vital, porque para prestar os serviços que o MinC tem a obrigação de
prestar precisa um mínimo de dinheiro. Hoje, depois de todo esse
trabalho de revitalização do ministério, nosso principal problema é o
orçamento, que é pequeno, e contingenciado, e não libera. A crise afeta a
área cultural também, menos demanda, patrocínio, show, público.
JM: A mudança de Joaquim Levy para Nelson Barbosa no Ministério da Fazenda melhorou a situação?
JF: Na verdade não foi a mudança do Levy para o
Barbosa. As mudanças que o governo fez melhoraram. Primeiro, o governo
está mais presente na disputa política no Congresso. Isso foi muito bom
para o governo. Parte era um certo inercial no enfrentamento do
conflito, um lado trabalhando para derrubar o governo e o outro lado
perplexo. Aí quem estava trabalhando para derrubar o governo estava
avançando de forma avassaladora. Agora tem uma disputa constituída, e
está cada dia mais avançando no sentido da discussão de um programa para
enfrentar a crise. O PSDB vai ter que vir também, porque senão vai
ficar mal com o país.
Vou dar um exemplo: essa campanha contra o Aedes aegypti e a
zika é necessária e rara aqui no país. Em países europeus e nos Estados
Unidos volta e meia a população é convocada pra massivamente participar e
fazer frente a um problema. O mosquito se domesticou, hoje a maior
presença dele como área de reprodução é dentro de casa ou no quintal. É
uma área da responsabilidade das pessoas, se elas ficam esperando
passivamente que o poder público resolva não tem avanço. Então
essa mobilização social é importante, e a curto prazo é importante que
as prefeituras se engajem também para limpar as cidades e evitar os
acúmulos de lixo. E, a médio e longo prazo, investimento em saneamento
básico. De início, houve setores políticos que pensaram em
boicotar e caracterizar como demagogia, mas a aceitação da população foi
tão grande que já estão mudando, se incorporando. Já está havendo um
clima, de fato, de mobilização nacional.
PAS: Isso é uma troca de agenda pessimista por proativa?
JF: É, de negativa para positiva, de enfrentamento. Acho
que a ideia de boicotar a Olimpíada já está indo para o ralo também. Se
não conseguiram a Copa do Mundo… A Olimpíada é o maior evento do mundo.
São 3 bilhões de pessoas que assistem, o Brasil foi premiado por isso, e
já fez todo o dever de casa. Desta vez as obras estão saindo em tempo, o
Rio de Janeiro é um grande canteiro de obras. A população está na
expectativa de uma boa Olimpíada. A própria vida está se impondo. Acho que o Carnaval também foi essencial.
PAS: O senhor acompanhou a confusão que causou em São Paulo no Carnaval?
JF: Confusão positiva, né? A única crítica que ouvi foi do José Serra.
Fiquei contente que lembraram que fui eu que descriminalizei o carnaval
de rua de São Paulo. Mas isso está acontecendo também em Minas Gerais….
PAS: José Serra está errado?
JF: Completamente errado. Eu nem sei se é bom para
ele dar uma declaração daquela, contra as bicicletas na avenida Paulista
e contra o carnaval.
PAS: Ele está falando essas coisas para despistar, né ministro? O que ele quer é entregar o pré-sal brasileiro para os gringos.
JF: É? Ele está tentando puxar a conversa para outra coisa?
JM: Acho que é do temperamento dele mesmo. Ele é
ruim mesmo. Mas é interessante essa história de o Carnaval ter feito um
turning point…
JF: É, criou um sentimento de pertencimento, confiança, solidariedade, afeto, alegria.
JM: Não houve grandes conflitos, tragédias.
JF: Não teve conflito em lugar nenhum, muito pelo contrário,
uma exacerbação de alegria. As escolas de samba do Rio de Janeiro
recuperaram sua vitalidade, inclusive se manifestando contra a
intolerância religiosa. Os orixás estiveram presentes em praticamente
todas as escolas. A que ganhou, Mangueira, em que inclusive desfilei, não sei se vocês sabiam.
JM: Eu sabia.
PAS: Eu não.
JF: A Globo não registrou, um ministro na pista, um grande sambista…
PAS: Estava de fantasia?
JF: Não, de paletó rosa e calça verde.
JM: Mas estava lá o Cauã Reymond, a Dilma queria ver o Cauã.
JF: Mas eu não estava na ala dele, estava na abertura da escola, no abre-alas.
JM: A TV cortou.
JF: É, cortaram.
PAS: A Globo cortou o senhor? Por que, ministro?
JF: Eu não quero levantar isso para não dizer que
estou advogando em causa própria, mas um ministro na pista, talvez tenha
sido o primeiro.
PAS: Não é uma notícia?
JF: Não é? Super-notícia, mas não apareci na TV.
Fiquei frustrado, porque minha família estava lá mobilizada para me ver.
Mas houve o carnaval, que é um fato cultural e econômico importante.
Aqui em São Paulo o prefeito Fernando Haddad deu os números. Sob todos os pontos de vista o carnaval foi importante, também como ponto de mutação.
PAS: Mas o Brasil já é naturalmente carnavalesco, São Paulo é que vive uma transformação, que foi puxada pelo senhor na secretaria municipal de Cultura.
JF: Minas Gerais também. No ano passado um amigo meu
ligou a câmara na rua no carnaval de Belo Horizonte e disse: “Juca, eu
estou no maior carnaval no Brasil”. “Onde? Rio? Bahia?” “Não, Belo
Horizonte.” “Me diga aí qual é a droga que você andou tomando?” Mas na
verdade ele tinha razão, o carnaval de Belo Horizonte bombou, e o de São
Paulo vai ser o maior carnaval de rua do Brasil, ó o que estou dizendo.
Maior e melhor.
PAS: Culpa sua.
JF: Culpa minha.
PAS: É a primeira vez que um ministro assume uma culpa [risos].
JF: Sem pestanejar.
JM: O Serra vai gostar de saber.
JF: Aí, vai virar meu inimigo. Ele até é simpático comigo quando encontro.
PAS: Cuidado, ministro, vampiro é perigoso.
JF: É, eu sei. Quando eu era secretário aqui em São
Paulo, fizemos dois seminários com carnavalescos do Brasil inteiro.
Vimos como a Bahia, Pernambuco e o Rio organizam o carnaval deles e
tiramos nossas próprias conclusões. Eu já conhecia, porque lidei já com o
carnaval sob o ponto de vista de política pública. Aí a equipe
redigiu o que virou lei, e eu, a lápis, à mão, complementei: “Proibido
qualquer tipo de privatização do espaço público, incluindo cordas que
separem o público dos foliões”. Tenho orgulho de ter feito isso, porque
estou tentando na Bahia, mas na Bahia a corda está muito enraizada e
isso está gerando uma certa decadência do carnaval baiano.
JM: Nisso tem a questão da cerveja também.
JF: É, na Bahia foi terrível isso. Pegavam lata
vazia da cerveja oficial e botavam outra dentro para poder não ser
molestado na rua pela polícia. Invadiram supermercados.
JM: Não podia vender outra cerveja senão a patrocinada.
JF: Inacreditável. Mas é do DNA, né?
PAS: DNA brasileiro ou baiano?
JF: DNA do Antonio Carlos Magalhães Neto.
JM: O senhor é pré-candidato à sucessão dele na prefeitura de Salvador?
JF: Sou.
PAS: Ai, ai, ai, ministro. Quem vai continuar tudo que o senhor está dizendo que ainda vai fazer no ministério?
JF: Hoje tem um ministério sólido.
PAS: Vão botar José Sarney no seu lugar?
JM: Sarney Filho.
JF: Não, eu só vou se houver um acordo, se eu tiver certeza de que o ministério vai ter continuidade.
Eu fui procurado por dirigentes do PT da Bahia, dizendo que nas
pesquisas detectaram que meu nome era viável. Aí pediram para
publicizar, e eu lembrei a eles que quando me filiei ao PT, em
2012, na fala eu disse: não é sangria desatada, mas lembrem-se que a
única vontade que tenho na política é ser prefeito da Bahia, de Salvador. E aí eles lembraram, botaram, está sendo bem recebido.
PAS: Então sua filiação ao PT finalmente se explica agora?
JF: Não, não se explica, não foi para isso. Foi
porque eu sou um animal político, e animal político não é andorinha…
Aliás, é andorinha sim, andorinha sabe que não pode fazer verão sozinha.
Eu gosto da ideia, contanto que o ministério fique assegurado e não
haja novos retrocessos.
JM: Qual é o empecilho? Walter Pinheiro?
JF: Não, não tem empecilho. O PT tem um processo de
consulta interna das tendências, dos diretórios, governador,
ex-governador. É uma complexidade, mas o processo está convergindo para
dois nomes, e um deles é o meu. Acho bom isso. Eu fui no Bonfim, sempre
vou no Bonfim e na festa de Iemanjá no 2 de fevereiro.
PAS: O senhor estava fazendo campanha no carnaval?
JF: Não, eu…
PAS: Bonito isso, ministro…
JF: Eu me filiei ao PT no dia da festa de Iemanjá.
Eu tinha uma tradição de mais de 15 anos, um cortejo chamado Cortejo
Verde, que só podia botar flores para Iemanjá. Eu que organizei, tinha
uma charanga que vinha lá da Mariquita.
JM: Essa tradição é do Antonio Carlos Magalhães, não?
JF: Não, qualquer cara, público ou não, está nas maiores
festas da Bahia, no Bonfim, Rio Vermelho, Carnaval e 2 de julho, a data
da independência. Nessas você vai encontrar todo mundo, de todos os
segmentos. E eu fui muito bem recebido pela população. Um cara gritou
para mim: “Juca, nós emprestamos você ao Brasil, mas está na hora de
voltar”. O sentimento lá é diferente. No resto do Brasil há um certo
medo de que desestruture de novo, que é um medo real, e eu só irei se
tiver segurança.
PAS: Mas, ministro, falando sério. À impressão que
pode ser errada, de um ministério mais encolhido e tímido, se soma a
notícia de que logo mais o ministro vai sair para se candidatar a
prefeito…
JF: Mas tem tanta notícia positiva, some as outras também.
PAS: Sim, somamos. Mas minha pergunta é: o senhor
não está focado em disputar uma prefeitura e já deixando seu cargo atual
para segundo plano?
JF: Não, eu aceitei a proposta que me foi feita e
gosto da ideia. Como eu disse ao interlocutor que veio me propor, essa
vontade não é nenhum tesão de mijo – os homens sabem o que é isso. É uma
coisa permanente, uma vontade minha, mas aceito o desafio de meu nome
ser posto. A receptividade é boa, então está criado um problema. Eu só irei se tiver garantia de que esse passo não é uma desestruturação do que nós construímos e estamos construindo.
PAS: Na eventualidade de o senhor perder, volta para o ministério?
JF: Você aí já está muito longe.
JM: O governador Ruy Costa (PT) é simpático à sua candidatura?
JF: Ele é simpático. Mas até agora não existe nenhum
compromisso por parte dele ou do PT de que vá ser eu, pelo contrário.
Os processos são complexos. Mas os próprios jornais da Bahia têm dito
que o nome mais forte no momento é o meu. O outro é o do senador Walter
Pinheiro, são dois nomes.
JM: Lá o senhor já foi vereador.
JF: Fui vereador duas vezes e meia, e fui secretário do Meio Ambiente.
JM: Qual é o principal nó da política da cidade da Bahia, como o senhor diz?
JF: As grandes cidades brasileiras incharam da
década de 1960 para cá, e o poder público municipal foi perdendo
presença nas cidades, de capacidade de planejamento, regulação. Muitos
se associaram ao capital imobiliário. Na Bahia, quem manda no território
de Salvador é o capital imobiliário, junto com o capital do transporte
público e do lixo. É preciso restabelecer o espírito público, capacitar a
prefeitura a recuperar a capacidade de planejamento, investir em todas
as áreas de responsabilidade da prefeitura. Por exemplo, o governo
federal abriu as universidades. Hoje tem mais preto nas
universidades que em toda a história do Brasil. Tem filho de guardador
de carro de rua, lavadeira e empregada doméstica se formando. Aquele filme Que Horas Ela Volta? aborda isso. Mas se não tiver uma escola primária que dê a base sólida, isso vira um processo frágil.
JM: É preciso fortalecer o ensino público?
JF: É, principalmente o primeiro grau, que é o que
dá a base para você viajar o resto do desafio da formação. É preciso
investir em saneamento básico. Salvador é uma cidade muito violenta,
muito.
PAS: O senhor fala do índice de felicidade, como anda esse índice lá?
JF: O índice de felicidade lá é sempre alto. É uma
população que tem uma tradição de alegria e confraternização, mesmo nos
momentos de máxima dificuldade. Às vezes, até, esse índice de felicidade
é enganador, porque se você se encantar com ela e deixar de olhar o
outro lado. Em outras palavras, a prefeitura tem que cuidar do avesso. Toda
a parte interna da cidade é maltratadíssima. Os investimentos públicos
são quase todos para a beira do mar, que é onde mora a classe média. Não
há um projeto de integração da cidade. O centro está esvaziado. O
investimento no Pelourinho foi positivo, mas criaram uma cidade
cenográfica, sem moradores e sem uma economia estabelecida. Em certos
dias é um deserto ali. É preciso reestruturar tudo, e isso
precisa ser feito democraticamente. Acho que posso representar isso, é a
mesma coisa que faço no ministério, tudo é precedido de grandes
consultas, discussão pública. Não digo que boto a cara para
bater porque não faço isso, gosto de delicadeza, dengo, carinho, mas vir
a público discutir o que vai ser feito, e não proibir, fazer
arbitrariamente.
JM: Salvador sofreu intervenções maciças, as barracas foram todas tiradas da orla. O senhor está de acordo?
JF: É, isso no Brasil inteiro. Isso já está feito. O
prefeito atual está fazendo uma intervenção, mas ela tem defeitos. É
autoritária, ele não discute com as comunidades. O autoritarismo
no processo de intervenção é o primeiro problema. O segundo, parece que
quem foi escolhido pelo prefeito para fazer tem Miami como padrão.
Salvador é uma cidade barroca, histórica, que precisa ser preservada.
Todas as cidades históricas do mundo fazem do limão uma limonada,
transformam a dificuldade em preservar numa economia, numa atratividade. Se
olhar o ladrilho que botaram em torno da igrejinha do Rio Vermelho,
você pensa que é armação de shopping center para comemorar o Natal.
Quebra totalmente o padrão estético da cidade, é um desrespeito total.
Tem cortado muita árvore na cidade também, isso é outro problema. Minha
imagem é forte na cidade como cara que plantou árvores, como secretário
de Meio Ambiente. O homem parece que gosta da motosserra.
PAS: Jotabê estava comentando antes, a mídia nacional de modo geral parece estar evitando mencionar sua disposição de disputar.
JF: Saiu na Folha. É porque é pré, pode não
dar certo, posso não ser o candidato. Nem estou fazendo muito esforço,
tenho evitado até dar entrevistas sobre isso. Tem uma quantidade enorme
de pedidos, estou retardando. Só quero mexer se disserem: “É você.
Quer?”. Quero, bora. Aí venho discutir com a área cultural do país, com a
presidenta, com minha família. Meu filho de 16 anos é contra. Minha
filha é contra também. O medo dela é de eu ir para a linha de frente do
conflito, que hoje é muito deselegante no Brasil.
PAS: Medo de o pai parar na cadeia? Do jeito que as coisas vão…
JF: Não, pelo contrário, não vou parar na cadeia
porque não devo nada. Mas de ser xingado, molestado. A gente é mais
delicado, gosta de dengo. Esse frontline é barra pesada.
PAS: Dilma e Lula que o digam.
JF: E o de 16 anos é porque Brasília é a
cidade-referência dele. Chegou a Madri e disse: “Meu pai, a cidade é
estranha, não parece com Brasília”. Eu disse: “Meu filho, Brasília é que
é estranha. Todas as cidades se parecem com Madri, só Brasília não
parece”. Ele está em campanha familiar contra. Minha família parece um
partido político, no jantar tem aferição de voto etc.
PAS: Tem fogo amigo?
JF: Fogo amigo não.
JM: Numa campanha eleitoral o PT vai ser defensável?
JF: Vai. O PT cometeu erros. Eu nem era do PT, então falo com mais facilidade ainda, e sempre defendi uma integridade absoluta. Mas o
PT foi o grande avalista do avanço das relações sociais no Brasil, da
redução da desigualdade. Se o PT perde força e presença na vida política
do país, a gente vai viver um retrocesso tenebroso. Foi por isso,
inclusive, que eu me filiei. Me filiei atraído pelos acertos,
não pelos erros. Os erros podem ser resumidos numa mimetização da
política tradicional, do que os outros partidos fazem e o PT não fazia
antes.
O erro da Operação Lava-Jato é que trata a questão da
corrupção como se fosse o problema de uma família política, quando na
verdade é o modus operandi da política brasileira. Qualquer pessoa
minimamente inteligente percebe que o custo da política no Brasil, o
custo para eleger e reproduzir mandatos é incompatível, e nenhum
empresário vai dar nenhum tostão de graça, quanto mais R$ 200 milhões,
R$ 100 milhões. É estrutural, é uma captura de uma classe social de toda a representação política no Brasil. Tudo
isso que está sendo revelado na verdade são os mecanismos que uma
família política faz, mas aprendeu com as outras. Inclusive os
operadores são os mesmos que as outras utilizaram, todos eles. Você vê
que coincidência, os vínculos anteriores eram com o PSDB, com o DEM.
PAS: Esse fato de investirem contra uma família política só vai acabar com essa família ou vai iluminar o processo todo?
JF: Iluminar não ilumina, porque a gente já viveu uns quatro carnavais éticos
no Brasil. Os anões do orçamento, o Collor… A gente sempre pensa que
vai acabar, mas é sempre circunscrito a um determinado grupo político. Enquanto
não tratar republicanamente… Até agora é o uso político da corrupção.
Enquanto não for tratado como um saneamento da política, enquanto não
horizontalizar para todos os grupos… Por exemplo, ninguém duvida que a corrupção na Pretrobras começou no governo Fernando Henrique Cardoso.
Todo mundo sabe disso. A compra de votos dentro do Congresso, também
ficou explícito na época da afirmação da reeleição no governo tucano de
FHC. A promiscuidade entre políticos, partidos e empresas é
histórica. Vem da ditadura, inclusive. Muitos militares enriqueceram
também com isso. Agora se fala mais, está mais explícito, há um
ativismo maior do Ministério Público. Mas o erro é a distorção de uso
político para enfraquecer uma família política e não colocar essas ações
a serviço de limpar a República. E esse erro não é de pequena monta,
ele tira a possibilidade do acerto.
JM: Um efeito colateral é o tratamento que se dá
hoje a questões pessoais. Hoje o escândalo é FHC com uma ex-namorada. A
vida pessoal foi muito invadida.
JF: É isso. Habeas corpus não funciona mais.
Não há mais a necessidade de comprovar o delito. A gente está montando
uma estrutura jurídica e uma institucionalidade que é típica de
ambientes autoritários, não de democracia.
PAS: O que estão fazendo com Lula e, agora, com FHC, esculhamba a própria instituição da presidência da República, não?
JF: Com José Dirceu também. Você
não pode condenar e prender na base da suspeição. É preciso esforço
investigatório, de comprovação. A gente está caminhando para uma
situação de espetáculo, mais que de justiça. Caminhando não, a gente já
está vivendo um período assim. A falta de respeito e a produção
midiática da culpa são impressionantes. E como os grandes órgãos de
comunicação são todos de oposição ao PT, a Lula e a Dilma, há uma
construção que é quase um círculo fechado. O Lava-Jato cumpre
um papel, a mídia cumpre outro, parte dos tribunais cumpre outro, e você
fecha um círculo de cerco e aniquilamento, quando a gente deveria estar
construindo um saneamento da democracia brasileira. Mas por
trás de tudo isso é o incômodo e a necessidade de retrocesso nas
relações sociais que foram constituídas ultimamente. Em todo lugar do
Brasil que vou olho com esta pergunta na cabeça: será que este povo aqui
quer retroceder? Eu não vejo nenhum sintoma disso, nem eticamente.
PAS: Não vê?
JF: Nenhuma. No carnaval, então, menos ainda. Mas não só no carnaval. Eu
olho as pessoas, elas querem seguir adiante, querem mais direito, mais
justiça, mais igualdade, mais liberdade, mais transparência. E veio à
tona, eu digo que saiu do lodo que foi revolvido na sociedade,
homofobia, sentimento contra as mulheres e seus direitos, racismo nunca
foi tão explícito no Brasil, paranoia social. Estão discutindo
redução da maioridade penal para 12 anos. Aquele outro propôs aborto
para prevenção contra futuros criminosos. Quer dizer, o cara já está
condenado antes de nascer. Acho que o grande problema, que não
está sendo discutido na imprensa, é que o PSDB, pelo desejo de negar o
resultado eleitoral, se associou aos setores mais retrógrados. O PSDB
sempre foi um partido de centro, às vezes centro-esquerda, às vezes
centro-direita, mas sempre foi um partido estabilizador da democracia,
um partido fiador da democracia.
PAS: Deixou de ser, na sua opinião?
JF: Deixou de ser, investiu no golpe, investiu na lama social, na lama programática. E o que emergiu assustou a população. Acho que eles cometeram dois erros nesse afã do golpe. Um foi ter Eduardo Cunha como principal porta-voz. São pés de barro.
PAS: Qual sua opinião sobre Cunha?
JF: É a pior possível. Não é a minha opinião, é a ficha corrida do rapaz. E o
segundo erro foi ter explicitado o programa social da base que estavam
construindo, de desrespeito absoluto aos ritos democráticos, o desejo de
não ter mais de conviver com os pobres nos aviões e ambientes em geral,
a vontade de retroceder na diminuição da desigualdade social. Um deles, acho que foi Aécio Neves,
disse que o salário mínimo está muito alto. Ou seja, houve uma
exacerbação reacionária que assustou e criou uma fissura. As pessoas
estão irritadas, desapontadas, críticas pelos erros do PT, mas querem
continuar. Estão criticando o fiador que lhes deu conquistas sociais,
não querem voltar a um passado tenebroso. Isso cria uma possibilidade de
a gente restabelecer normas e padrões de convivência social e política
melhor.
PAS: O senhor pertence a essa família partidária que é a que está no foco.
JF: Sou um cristão-novo.
PAS: Eu, como cidadão eleitor de Dilma, me ressenti
durante o ano passado inteiro de que essa família partidária parecia não
defender a presidenta e o governo da presidenta, aí incluído o senhor.
JF: Essa é a parte mais difícil de eu falar em
entrevista, porque sou parte do governo, tenho dever de lealdade. Mas é
evidente que eu tenho uma visão crítica. Eu faço parte da fração mais à
esquerda do governo. O governo, até para sobreviver e resistir à
ofensiva golpista, teve que dar os anéis, e eu tenho a impressão de que
pode ter perdido alguns dedos aí, ao dar os anéis. Esses sinais trocados que você está detectando na verdade são uma certa necessidade de sustentação para evitar o golpe. Mas
não vejo, tirando o PT e o PCdoB, outra agremiação que em sua essência
seja comprometida com esse avanço social e político que nós vivemos.
Tem pessoas nas várias agremiações, até no PSDB, mas as outras
agremiações ou não têm uma posição clara sobre o Brasil ou são
conservadoras.
PAS: O senhor falou antes de uma atmosfera social de
suspeição e desconfiança. Não é sua pessoa particularmente, mas às
vezes olho para setores do governo e do MinC e me pergunto: será que
esse pessoal não está torcendo para Dilma cair?
JF: Não. Pelo contrário. O maior amigo não é aquele
que você vai andando para a beira do precipício, “que lindo, genial”, e a
pessoa, pluft!, cai lá embaixo. O melhor amigo é o que diz: “Não vá por
aí”. Eu tenho feito observações e defendido políticas que ainda não são
incorporadas pelo governo. Mas sou leal ao governo e acho que,
primeiro, o respeito à voz das urnas é fundamental. Ela foi eleita com
maioria de votos e está legitimada para exercer o mandato. Essa
estratégia do PSDB está sendo rejeitada pelo povo brasileiro, as
pesquisas que eles mesmos fizeram indicam isso. E estamos
vivendo uma crise econômica, da qual nem todos os aspectos são internos.
Os Estados Unidos tiveram uma queda, a Europa não consegue sair do
mesmo lugar, a China, que é o principal ativador do último ciclo
econômico, está com problemas e há expectativas negativas. Há um
ambiente que é preciso repensar, pré-1929. Internamente se esgotou um
ciclo político que começou com a eleição do presidente Lula. Mesmo que
todas as intenções não tenham se realizado, é preciso repensar um novo
ciclo. Nós queremos fazer parte desse novo ciclo, e a gente tem lado, sabe o lado em que está, longe de torcer contra. Você jamais vai me ver atirar para dentro do quartel. Gosto de ser leal até com os adversários, e principalmente com os aliados.
O ministério está trabalhando para dignificar o governo. Ali não tem
crise. Os artistas e as áreas culturais têm uma excelente relação com a
gente mesmo nesse momento. Você vê que são poucos que estão fermentando o
golpe, pelo contrário, a maioria está se manifestando favorável. Teve
uma manifestação emocionante do Augusto de Campos, e
muitos outros artistas e líderes culturais têm se manifestado
favoráveis, não só à manutenção dela. Agora, a crítica é um exercício
normal da democracia, eu mesmo me critico quando deito de noite, um lado
do cérebro está achando que errei aqui e ali.
PAS: Uma questão que diz respeito à cultura: esta presidenta é tratada com misoginia neste processo crítico?
JF: Tem um pouco disso. Não é o aspecto principal.
Não é porque ela é mulher, o problema é político. A crise que o PT vive
por ter cometido erros e ter perdido parte da hegemonia política que
tinha contribui para esse clima de desencanto, de perda de rumo e
confiança. Acho que o esgotamento do ciclo sem que tivessem se adiantado
os responsáveis e definido um novo programa e medidas de longo, curto e
médio prazo também dificulta. E a ofensiva golpista sempre tem efeito. Me
parece que não aceitaram o resultado da última eleição e têm medo de
concorrer com Lula, por isso precisam destruí-lo, para criar um ambiente
onde tenham um mínimo de chance, o que é absolutamente antidemocrático.
Que ganhem nas urnas, que venham disputar, apresentem suas propostas.
JM: O senhor acha que Lula está aniquilado?
JF: Pelo contrário. Na última pesquisa, de anteontem, ele ainda é a principal possibilidade eleitoral.
PAS: Lula 2018 é uma aposta do senhor?
JF: Não sei se ele vai ser candidato, mas se for, até onde
minha vista alcança, ele é imbatível. Inclusive porque a oposição não
tem projeto, não tem proposta, os candidatos têm dificuldade de se
viabilizar como líder da nação.
PAS: Isso justificaria o processo de linchamento de Lula?
JF: É por isso. Isso não é democrático. Ele e Getúlio Vargas são
os dois presidentes mais importantes da história do Brasil. Credito a
Lula mais importância ainda, porque Getúlio era autoritário, flertou com
o nazismo – mas foi o grande avalista de conquistas sociais e culturais
importantes, atualizou o Brasil na época em que viveu. Lula fez mais
ainda. Essa tentativa de criminalizá-lo Eric Nepomuceno definiu bem: já definiram o criminoso e estão buscando o crime.
É mais ou menos essa a lógica do Lava-Jato, uma postura que acho
execrável. Isso não é democrático nem aqui, nem no Japão, nem na China.
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