Silêncio nas ruas. Pouco movimento. O Natal chegaria em seis
dias. Depois, as festas de Réveillon, os planos de viagem. Muitos estariam em
férias. Muitos, em sono profundo. Alguns, leve. Era uma quarta-feira de começo
de verão. O calor ainda não era castigo. Não chovia, nem nada. Mas o choque
silencioso de nuvens no céu preparava a cidade de São Paulo para o grande
protesto. No ar, ansiedade pelos novos tempos, o das mudanças radicais.
Fazem-se planos, contas. Euforia
da vitória para uns, apesar da indiferença de uma grande parte, e frustração da
derrota para outra parte, com medo da perseguição que se iniciará, num momento
em que o ódio e a vingança viraram discurso de vitória, pronunciamento oficial,
política governamental, em que ameaças foram feitas a grupos minoritários, por
uma gente que a maioria desconhece.
Numa aposta no escuro, ou num
blefe, numa guinada inesperada, uma meia-volta, ou giro de estibordo a
bombordo, o povo deu all in. Muitos em euforia viciante, não pararam de festejar
e atacar. Muitos se fecharam numa depressão inédita. Muitos, num pânico.
Muitos, em tristeza profunda. Alguns pediram um help: ninguém larga a mão de
ninguém. Quem terá de se esconder? Quem partirá? Como proceder? Como reagrupar?
Como resistir? O que pronunciar? O que postar? A quem recorrer? Estarei sem
nada no começo do próximo ano? Estarei vivo? Estaremos vivos? Como me defender
de ataques? Quem pode me apoiar?
Outros diziam: vai ser bom, vai
melhorar, olha como estava ruim, olha o atoleiro em que estávamos metidos, olha
o esgoto que escoava de dutos. Um ódio imoral é o lema para a alternância
legítima, o vento que soprou a nave à deriva. Vizinhos agora se odeiam.
Familiares agora se odeiam. Parentes não se encontrarão mais. Amizades foram
pro espaço. Para alguns, anunciou-se o big-bang divino. Para outros, somos
sugados para um buraco negro. Deus veio nos salvar? Ou o anticristo
ressuscitou?
Dia 19 de dezembro de 2018. Os
relógios bateram 2h em ponto. Um clarão inédito. Uma luz a 300 mil km/s
atravessou o vazio entre casas, prédios, árvores, ruas, esquinas e praças,
entrou por frestas, janelas fechadas, lacradas por cortinas em blecaute. E veio
o estrondo. Mas nem chovia? Uma explosão, um meteoro, uma bomba atômica? O
coração acelerou. O que vem, a destruição total? Meus filhos! Os dois
acordaram. Choraram. Fui acudi-los. Nos abraçamos os três, nos preparando para
o pior. Os prédios tremeram, as janelas pareciam que iam se soltar, o chão
tremeu: foi o maior clarão e barulho que ouvi na vida. Alarmes dispararam,
cachorros entraram em transe, passaram a latir. Fui à varanda. Vi luzes de
vizinhos se acenderem. Vi vizinhos entrando nas varandas. Vi as ruas desertas.
Vi o posto de gasolina ainda aberto, vazio. Vi um farol mudar do verde para
amarelo e vermelho. Vi que tudo continuava como antes. Nada da onda de choque.
O que terá acontecido?
Na manhã, um comentário no
elevador, outro na padaria, na feira. Um amigo no trabalho. “Você ouviu o
trovão?”. Muitos ouviram o trovão às 2h em ponto. À tarde, manchete em sites de
notícia: Moradores de São Paulo Relataram Forte Clarão e Trovão. Moradores das
zonas oeste e norte relataram que pensaram se tratar de uma explosão, que tudo
tremeu, o espelho de um lavabo caiu e quebrou, o portão automático de um prédio
queimou. Os depoimentos apontavam a Vila Romana como alvo do raio. Exatamente
num vale circundado pelas montanhas da Cerro Corá, Alto da Lapa, Sumaré,
Perdizes, Pompeia. Ecoou no Pico do Jaraguá?
Os moradores da aldeia guarani
Tekoá Pyau devem ter lendas a respeito. Talvez o pajé entenda os sinais dos
céus. Na tarde anterior, 900 raios atingiram a cidade. São quase mil guaranis
que vivem em mais de 500 hectares, parentes de índios da zona sul, São Vicente
e Boraceia (Silveiras), Litoral Norte. Raros sobreviventes de um massacre que
começou há 500 anos. Aldeia de 2015 que o governo liberal do Estado de São
Paulo de Geraldo Alckmin não reconheceu e ameaçou despejar em 2017, para ceder
como parque à iniciativa privada, com a ajuda do então novo governo Temer e seu
ministro da Justiça Torquato Jardim, que cancelou a portaria que aprovou a
reserva. A liderança guarani de 23 anos, Thiago Karai Jekupe, sob fogo cruzado
de homens brancos de vermelho contra os de amarelo, desabafou: “O que o governo
Temer fez foi desmarcar o que tinha de um território tradicional, uma coisa
inédita no Brasil. Isso é um crime muito grande. O homem branco não tem
palavra”.
Fora o ministro da Justiça de
Dilma, José Eduardo Cardozo, que em maio de 2015 aumentou a extensão da área
guarani de três para 532 hectares, reunindo três aldeias em torno do pico, a
Tekoa Pyau, Tekoa Ytu, Itakupe, Ita Wera e Ita Endy. Ainda assim, formam a
menor aldeia por habitante demarcada do País.
A ciência explicou o trovão.
Segundo o professor do Instituto de Ciências Atmosféricas da USP, Carlos
Morales, pelos relatos do estrondo, o raio caiu entre as ruas Cayowaá, Paracuê,
Aimberê, Apinajés, Caiubi, Tucuna, Caraíbas, Votupoca, Jaricuna, Gurupá,
Paumari, Ipacaraí, Iperoig, Guaçu, Natingui e a Praça Araçariguama: “A intensidade
do raio não é identificada pelo barulho, mas pela corrente elétrica que pode
variar até 100 mil amperes”. Mas pajés sabem. Tupã, o deus do trovão, está
irado. “Lista parcial de terras indígenas sob ataque neste momento no Brasil:
Awá-Guajá (madeireiros, no MA), Karipuna (madeireiros, RO), Arara (madeireiros
e grileiros, PA), Apyterewa (madeireiros e grileiros, PA), Uru-eu-Wau-Wau
(grileiros, RO) e Yanomami (garimpeiros, RR)”, tuitou em 17 de janeiro o
jornalista Rubens Valente, autor de Os Fuzis e as Flechas. Tupã protesta.
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