O DEUS DOS PODEROSOS
Neste ano, especialmente durante o período eleitoral, assistimos a
muitas invocações do nome de Deus. Muitos políticos usaram o nome de
Deus e a religião cristã para se beneficiar. Eles sabiam que o
brasileiro é, de modo geral, religiosamente conservador, e passaram a
defender, verbalmente, os valores da tradição cristã.
Eles sabiam
também que este mesmo brasileiro, de tipo conservador, geralmente não
faz nenhuma ligação entre fé e vida. Ao mesmo tempo em que defende os
valores tradicionais, com ênfase nos valores da família, este tipo de
brasileiro viola as leis e os valores que verbalmente defende.
A
defesa verbal dos valores tradicionais não é sinônimo de integridade
moral. Muitos mentirosos defendem a verdade para esconder suas mentiras;
muitos ladrões defendem o combate à corrupção para esconder seus furtos
e roubos; muitos adúlteros e estupradores defendem a moral e os bons
costumes para esconder adultérios e estupros; entre outros absurdos.
O mesmo ocorre com a invocação do nome de Deus: na maioria dos casos se
trata de transgressão do segundo mandamento do Decálogo. Invoca-se o
nome de Deus em vão para criar na cabeça das pessoas a imagem de uma
religiosidade e piedade aparentes. Deus e religião são duas realidades
diferentes. Por isso, é possível que uma pessoa seja religiosa e não
creia em Deus. É o que assistimos nestas falsas invocações do nome de
Deus.
Um crente fiel não invoca a Deus para enganar as pessoas.
Transformar Deus em um instrumento de manipulação é um pecado
gravíssimo. Isto não é cristianismo, mas falsa religiosidade. Deus é
incompatível com o discurso de ódio e com a proliferação das fake news
(notícias falsas) veiculadas nas eleições deste ano.
Quem se
utiliza da mentira de forma sistemática para enganar as pessoas e, desse
modo, alcançar o poder político, não crê em Deus. Este tipo de prática é
incompatível com a fé cristã. Deus não é o responsável pela vitória do
presidente eleito do Brasil. Deus não enviou o presidente eleito para
governar o Brasil. Isso é falso messianismo e hipocrisia religiosa. Deus
não tem parte com a mentira nem com a cultura da eliminação do outro,
práticas defendidas nas eleições deste ano.
Deus é Amor e
Liberdade. Quem semeia o ódio e a perseguição a pessoas e grupos sociais
não tem parte com Deus. O autoritarismo e as promessas de cortes dos
direitos fundamentais e garantias dos cidadãos são práticas que não
podem ser toleradas nem praticadas por autênticos cristãos.
O
cristianismo não nasceu com a pretensão de colaborar com o sistema de
opressão dos povos. Quando isto ocorre, estamos diante de um gravíssimo
desvio. A mensagem de Jesus está pautada na fraternidade, na
solidariedade, na justiça, no amor, na cultura do encontro e da
tolerância, na fé e no respeito à diversidade da cultura, das crenças e
dos modos de ser. O cristianismo só é verdadeiro somente quando trilha o
caminho do amor, da justiça e da liberdade, tal como concebido por
Jesus.
Precisamos aprender com o que aconteceu em 2018. O saldo
total deste ano jogou o País no precipício. Para não sermos totalmente
engolidos pelos males que se avizinham, as pessoas precisam manter viva a
esperança ativa, que é aquela que nos coloca no caminho da resistência.
Para trilhar este caminho é necessário acreditar na construção de outro
mundo possível, e arregaçar as mangas para lutar com ternura,
inteligência, estratégia, união e perseverança. Estas são minhas
considerações finais para este ano que aos poucos termina.
Tiago de França
Outras reflexões em http://tiagodefranca.blogspot.com
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Capitalismo e cristianismo: uma combinação ‘Made in America’
Tudo o que move é sagrado
mural do curso de verão 2003 - Ceseep/PUC-SP.
"Toda arte que nos move a buscar a vida em plenitude é sagrada".
"Mesmo que o poeta seja ateu, um bom poema sempre nos aproxima de Deus".
Fonte: http://www.overmundo.com.br/overblog/tudo-o-que-move-e-sagrado-1
Zezito de Oliveira (*)
Uma das coisas mais interessantes que confirmei no estudo sobre o Salmos — um livro poético/espiritual do primeiro testamento, — realizado com o monge beneditino Marcelo Barros(1), no ano de 2003, é que todos os escritos da Bíblia sobre o Deus-Amor são verdadeiramente palavra/vontade de Deus.
Aqueles que apresentam um Deus machista, preconceituoso, autoritário, ciumento e violento expressam o sentimento humano. Como exemplo podemos lembrar do mandamento “amar a Deus sobre todas as coisas”, complementado por Jesus Cristo, “e ao próximo como a si mesmo”.
Portanto, o que está escrito na Bíblia, que nega ou contradiz isso, deve ser compreendido, buscando entender suas limitações no tempo (história), a injunção da política (relações de poder) e o contexto cultural.
O escritor russo Tolstoi também afirmou a mesma coisa quando disse que “onde existir o amor, Deus aí está”.
Buscando apresentar de que forma este amor de Deus pode se tornar exemplo vivo a partir da prática do cotidiano, em Mateus vemos escrito: “Tive fome e me deste de comer, estive nu e me vestiste, estive preso e me visitaste”.
Neste sentido, um povo que se diz cristão e não consegue resolver o problema da fome, da injustiça e da violência, especialmente contra os mais indefesos e vulneráveis, não pode ser reconhecido por Jesus Cristo como irmãos e filhos do mesmo Pai. “Não é aquele que diz Senhor, Senhor que entrará no Reino dos Céus”.
Não é à toa que ouvimos algumas vezes a expressão: “De bem intencionados (ou de ‘cristãos’) o inferno está cheio”.
Quem leu o texto, ou assistiu à peça ou ao filme “O Auto da Compadecida” pode entender muito bem o que isso significa.
No caso do Brasil, o combate à fome tornou-se prioridade por parte da sociedade civil, a partir das iniciativas de Betinho, que liderou um movimento social de grande envergadura nos idos da década de 90, em consonância com o mandamento evangélico “Dá-lhes vós mesmos de comer”, e da parte, do governo, a partir de 2002, com a eleição do Presidente Lula, que criou o Programa Fome Zero, atualmente bastante limitado à distribuição do Bolsa Família, embora concebido para ir muito além.
Quando Frei Betto(2) apresentou o programa Fome Zero para a sociedade civil em Sergipe, no ano de 2003, eu disse naquela ocasião — reforçando o pensamento dele, — que embora seja um imperativo moral e ético combater a fome orgânica, a fome do corpo, o Evangelho nos lembra que “nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus”.
Essa palavra que não se expressa somente através do signo verbal, pode se revelar também através da música, da dança, da pintura, do cinema e de várias outras manifestações artísticas, mesmo quando músicos, poetas, dançarinos, pintores, cineastas e escritores não falam ou não acreditam em Deus.
Porque nosso Deus é o Deus da Vida: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância”, e toda obra de arte que denuncia a injustiça e/ou promove a vida é sagrada.
Um exemplo dentre tantos é a obra de Chico Buarque(3). Quando ele canta “Mulheres de Atenas”, recorda-me o Jesus que entendia e sabia dialogar tão bem com a alma feminina, como no exemplo de Madalena. “João e Maria” me recordam o Jesus menino ouvindo as histórias e as cantigas de ninar que certamente Maria contou e cantou para seu filho. “Cálice” me lembra o Jesus torturado que sofreu tanto que até suspirou “pai, afasta de mim...”. “Assentamento” me recorda o Jesus sem-terra e sem-teto, que antes de nascer do ventre de Maria, já fugia do poder cruel e opressor que ainda hoje persegue milhares de famílias cujos filhos nascem embaixo das lonas dos acampamentos dos sem-terra ou debaixo das marquises e dos viadutos.(4)
Daí as possibilidades da criação artística como fonte para buscarmos saciar a fome de justiça e de beleza(5), e na perspectiva de neutralizarmos a força das idéias ou expressões estéticas que além de nos empobrecer culturalmente, insistem em querer nos afastar permanentemente do contato com a realidade, reforçando o individualismo, desvalorizando tudo aquilo que se refere aos cuidados com a coisa pública, a preservação dos bens naturais e o legado cultural que herdamos dos nossos ancestrais. (6)
Tudo isso lamentavelmente disseminado também através de linguagens artísticas, principalmente da música e de pregações (discursos) que abusam de elementos cênicos/teatrais.
Artigo originalmente publicado no jornal Cinform em fevereiro de 2005 com o titulo: Arte na cesta básica de todos.
NOTAS:
(1) Marcelo Barros é monge beneditino e um dos mais fecundos intelectuais gerados no seio da igreja católica, numa época (anos 70) em que a instituição buscava se abrir e dialogar com o mundo, ao contrário dos tempos atuais em que os conflitos com os setores progressistas da política, da ciência e do mundo das artes tem sido a tônica. A despeito disso, Marcelo Barros tem buscado abrir pontes e até “viadutos” para o diálogo com outras crenças, como as de matriz africana, orientais e com os grupos religiosos contemporâneos, além de cientistas e setores políticos vinculados ao altermundismo. É também um brilhante escritor e em muitos de seus artigos e das suas obras literárias, o tema do diálogo inter-religioso e intercultural é tratado com muito esmero, carinho e profundidade. O monge Marcelo Barros é herdeiro espiritual de um grande poeta, místico e amante das artes e da luta pela justiça, Dom Hélder Câmara, bispo nordestino cujo exemplo de cristão e de pastor inspira os ideais e comportamento de milhares de pessoas no mundo inteiro, dentre as quais me incluo.
(2) Frei Betto é frade dominicano e muitas das palavras aplicadas a Marcelo Barros se aplicam a ele também, evidentemente salvas algumas distinções próprias, porém, como este é mais conhecido, recomendo o seguinte link, para a busca de mais informações sobre ele. Logo após Lula assumir o governo, Frei Betto foi convidado para coordenar o setor de mobilização social do Fome Zero, e foi nesta condição que ele esteve em Sergipe, sendo que quase dois anos depois solicitava afastamento do governo em função de não se avançar no combate às causas estruturais da fome. Recentemente, em artigo na revista Caros Amigos, para a qual escreve mensalmente, Frei Betto afirma: “Concebeu-se o Fome Zero como um leque de políticas capaz de alterar a arcaica estrutura social brasileira e permitir aos beneficiários vir a produzir a própria renda. Assim, a reforma agrária se impunha como prioridade. Não se pretendia saciar apenas a fome de pão, mas também a de beleza, ou seja, aprimorar culturalmente os beneficiários e torná-los protagonistas do aperfeiçoamento de nossa democracia. O controle do programa cabia à sociedade civil através dos Comitês Gestores.(...) Em 2005, os Comitês Gestores foram cancelados e o governo federal repassou às prefeituras a responsabilidade de controle dos recursos destinados aos beneficiários. Decisão que, segundo o Tribunal de Contas da União, fez aumentar os indícios de corrupção nas administrações municipais.”
(3) Lembro no início dos anos 80, ainda morando no Rio de Janeiro e em uma reunião do grupos de jovens, ter utilizado uma música de Chico Buarque: “O casamento dos pequenos burgueses” como mote para levantar a discussão sobre o tema do casamento.
Também no final dessa década, a Pastoral de Jovens do Meio Popular, ligada a Arquidiocese de Olinda e Recife, na época sob os cuidados de Dom Hélder, publicou um pequeno livro com letras de músicas da "MPB" e com roteiro de perguntas apropriado para fomentar o debate sobre temas sociais nos grupos de jovens e comunidades de base.
(4) - O argumento defendido aqui, não se restringe somente as músicas que contém letras, sejam elas "engajadas ou não" mas incorpora a obra de Bach, Beethovem, Mozart, Villa-Lobos, Egberto Gismonti, Pink Floyd, Genesis, Enya e etc.
(5) Um artista que consegue realizar o Ideal da síntese que defendemos aqui, em termos estéticos e éticos, é o poeta, cantor, compositor, arte-educador popular e missionário Zé Vicente, que foi gestado no ventre das comunidades eclesiais de base, na década de 70, no Ceará, e que já gravou mais de uma dezena de CD’s e que será motivo de uma apresentação para os leitores do Overmundo dentro de alguns dias. Na opinião do bispo católico, Dom Dulcênio, atualmente responsável pela Diocese de Palmeira dos Indios (AL) a qualidade da produção artística do Zé Vicente para a música cristã pode ser equiparada a de Luiz Gonzaga para a música popular brasileira.
Neste post trazemos para o deleite de vocês a composição Utopia e quem quiser ouvir mais composições de autoria do Zé Vicente pode clicar aqui.
(6) Como aspecto positivo, atualmente temos a incorporação de músicas do cancioneiro popular por parte do Padre Fábio de Melo, que tem se utilizado de obras de artistas como Fábio Junior, Lulu Santos, Renato Russo, dentre outros, em seus programas transmitidos pela TV Canção Nova e em shows por esse Brasil afora, tendo inclusive gravado um CD somente de músicas de compositores “laicos” brasileiros. Importante ressaltar que a pregação do Fábio de Melo difere em alguns aspectos do discurso da maioria dos padres recém ordenados, embasados por uma teologia que reforça o individualismo quando apresenta a solução dos problemas humanos, tão somente pela via do recurso à oração individual, deixando de considerar também a interdependência que muitos desses problemas mantêm com as questões sócio-políticas estruturais. Quanto a Fábio de Melo, nas oportunidades em que o vi falar, percebi que tem um olhar menos restrito e um pouco mais amplo, chegando próximo do chamado modelo do pensamento “sistêmico”, quando comenta os dramas pessoais que se constituem na matéria prima de seu programa de televisão.
(*) Escrito em 13 de dezembro de 2008
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