Fonte: http://www.justificando.com/2018/12/20/uma-anti-ministra-para-um-anti-ministerio/
Imagem: arte de Daniel Caseiro. Foto original de Valter Campanato/Ag. Brasil.
Por Leo Nader
.
Desde
a derrocada do governo de Dilma Rousseff, usei deste espaço para traçar
um perfil das mandatárias da pasta de Direitos Humanos no governo de
Michel Temer. Frente ao desmonte da política e o viés de retrocesso que
impulsionou a queda do governo petista; era necessário desconstruir a
fachada respeitável provida por Luislinda Valois e Flávia Piovesan para
o que seria, de fato, o desmonte da política. Ambas vindas de
trajetória honrável, muito qualificadas e reconhecidas em seus
respectivos campos de atuação; a desconstrução da escolha política de
ambas as mandatárias necessitava um olhar crítico, técnico, que mesmo
oponentes contumazes precisavam empregar com parcimônia. Especialmente
no caso de Piovesan, uma das doutrinadoras mais citadas do país; tal
crítica precisou de coragem – e talvez um pouco de arrogância. Mesmo
hoje se destacando na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (após
campanha paga com recursos públicos pelo governo Temer) permanece a
mácula da mandatária ter emprestado seu bom nome para assistir, em
silêncio obsequioso, o desmonte das políticas de direitos humanos. Certa
ou errada, foi uma crítica politizada, com um olhar técnico que
respeita o notório saber de quem alveja.
Por
mais que tente, não consigo fazer o mesmo com a indicação de Damares
Alves para atuar como Ministra do governo Bolsonaro. Nem mesmo o mais
sagaz dos críticos consegue desconstruir qualificações inexistentes. Sua
trajetória, sua retórica e sua associação política lhe qualificam como
antagonista de toda forma de direitos humanos, especialmente se
definirmos ‘direitos humanos’ de acordo com os tratados internacionais, o
direito costumeiro e a interpretação dessas normas por cortes e órgãos
especializados dos sistemas ONU e OEA. Não há ‘fachada limpa’ para
vandalizar com meus rabiscos. A intenção está ali, escancarada: apertar o
botão “auto-destruição” dos direitos humanos enquanto política pública;
e implantar no lugar a uniformização dos ditames morais conservadores
de um segmento religioso minoritário.
É
importante não desqualificar Damares por seu passado pregresso como
pastora evangélica. Desmond Tutu e Martin Luther King também o eram.
Mesmo nas denominações atuantes no Brasil, há diversas vozes evangélicas
se manifestando pela inclusão, diversidade, estado laico e democracia. É
muito sofista tentar desqualifica-la com base em suas crenças
teológicas; ou caçoar de suas experiências, sejam espirituais, enquanto
mãe, ou enquanto sobrevivente de abusos na infância. A facilidade com
que alguns setores da esquerda lançam mão desses recursos para atacá-la
reverbera com a guinada histórica que vivemos nas eleições passadas.
A
nova ministra deve ser avaliada com base em suas qualificações,
história e propostas para o Ministério. E isso basta para formar um
prognóstico preocupante da direção que será tomada pelo governo
brasileiro nos próximos anos. Por exemplo, algumas de suas declarações
em relação ao papel da igreja no Estado, e em relação às religiões de
matriz africana, são preocupantes em uma mandatária servindo sob uma
constituição laica, responsável por desenvolver políticas de proteção à
liberdade de crença e religião, e que terá que responder a uma realidade
de ataques violentos e discriminação aos terreiros e religiosos de
matriz africana. O mesmo vale em relação à população LGBTI+ que, apesar
de declarações conciliatórias da mandatária, teme o passado de Damares
articulando propostas ‘pró-família’ que excluem os múltiplos tipos de
família existentes na sociedade. Questões como o nome social das pessoas
trans; a tentativa de validação dos tratamentos de ‘cura gay’, o
enfrentamento aos crimes com motivo LGBTfóbico, e a educação para a
diversidade, apontam para uma maré de retrocessos.
Talvez
seja na pauta das mulheres onde a implosão seja ainda mais contundente.
Magno Malta foi preterido por Bolsonaro, que declarou não ver motivo
para indicar um homem para ser suserano da pasta de políticas para
mulheres. Com Damares, porém, as mulheres estão mais prejudicadas por
essa legitimidade. Adepta da falácia de que “gênero” é uma ideologia
controversa e não um fenômeno social observável, a futura ministra deu
declarações preocupantes sobre o papel da mulher na sociedade e pareceu
culpar a flexibilização dos papeis tradicionais como causa da violência
contra a mulher. Teve o disparate de dizer que ao ensinarmos os meninos a
tratar “meninas como meninas” resolveríamos o problema da violência. O
foco nas mulheres grávidas e no nascituro é pretexto pouco velado para
restrição maior das escolhas de planejamento familiar e a dissuasão ao
aborto mesmo na minoria dos casos em que é permitido por lei. Novamente,
a Ministra e o Ministério agora servem para enterrar o conceito de
“direitos humanos das mulheres” tal como concebido internacionalmente,
substituindo-o com os ditames morais da ‘bancada evangélica’ que a
indicou. Sua declarada preocupação com as mulheres das águas e das
florestas é louvável, mas dentro do projeto de uniformidade do papel da
mulher enquanto esposa e mãe essa preocupação vai de inócua a nociva.
A
atuação da futura ministra na causa das crianças indígenas com
deficiência também precisa de um ‘porém’: apesar do fenômeno do
infanticídio indígena de fato existir, no caso do Brasil ele é
extremamente raro; e, quando detectado, já é tratado como violação de
dos direitos da criança tal como definidos internacionalmente. Está
correta em defender que os direitos da criança prevalecem sobre as
práticas culturais atentatórias a esses direitos, mas a campanha para
erradicar a prática deve ser compatível com a afirmação de direitos e
não feita de forma estigmatizante, velando porcamente a intenção de
acesso às comunidades para a conversão religiosa.
A
campanha feita com testemunhos encenados e exageros dos fatos, além do
desvio de finalidade, atraiu críticas, inclusive do Ministério Público,
que acionou a justiça contra a atuação das ONGs associadas à nova
Ministra. Colocar alguém que dedicou a vida a erradicar as religiões
ancestrais indígenas a cargo da FUNAI terá um resultado previsível.
O
apoio da Ministra ao projeto “Escola Sem Partido” é igualmente
contrário a toda norma e interpretação técnica sobre liberdade de
expressão e direito à educação existente no país e no mundo. Seus
proponentes não estão querendo evitar ‘doutrinação’ dos alunos; mas sim
garantir a uniformidade do ensino de seus ditames como naturais e
incontestáveis. Podemos ensinar cosmologia científica e criacionismo
religioso com igual veemência? Há ‘dois lados’ sobre se o Holocausto foi
justificado? Pelo contrário, o que se busca é um mecanismo de
intimidação de professores, para que não possam abordar questões vitais
sobre direitos humanos na sala de aula. Não é de surpreender que o
projeto tenha sido criticado pelas agências da ONU relacionadas à
criança, à cultura e educação, e aos direitos humanos.
Enfim,
trata-se de uma anti-ministra, qualificada apenas como antimatéria
feita para aniquilar tudo que a pasta representa. Deu-se um passo além:
ao invés de simplesmente cortar o ministério, escolheu-se desgoverná-lo e
reverter sua polaridade. Em retrocesso, morro abaixo, com todo o peso
da máquina estatal. O anti-ministério a ser criado será uma das
ferramentas mais perigosas do governo de Jair Bolsonaro. Eleito após
campanha abertamente oposta aos movimentos de igualdade racial, LGBT e
feminista, o novo Presidente entra empoderado, desnudando seu viés e
escancarando suas intenções. Damares é o estandarte deste descaramento, a
carranca na proa desta ofensiva anti-direitos. A sociedade civil e os
movimentos sociais vão resistir como puderem; mas têm sua efetividade
dilacerada com o resultado das eleições. Resta esperar que as
instituições continuem funcionando, tolhendo os principais abusos
contrários ao estado laico e aos direitos e garantias individuais.
Leo Nader
é doutorando em Direitos Humanos e Política Global pela Scuola
Superiore Sant’anna. Toda opinião manifestada só deve ser atribuída ao
autor, e é de responsabilidade única do mesmo.
Damares Alves estava
com enxaqueca naquele fim de tarde em 2015. O expediente de uma
quarta-feira de junho, às vésperas do recesso parlamentar, havia sido
repleto de reuniões, telefonemas, assinaturas de papéis e caminhadas
pelos corredores das duas Casas do Congresso Nacional.
Mesmo cansada, a futura ministra dos Direitos Humanos de Jair
Bolsonaro aceitou conceder a entrevista que eu havia lhe pedido para o
meu documentário Púlpito e Parlamento: Evangélicos Na Política.
Ao final da conversa de cerca de uma hora, perguntada sobre seu
futuro, ela me daria um ultimato: “Eu estou cheia de tudo isso, vou
parar de trabalhar aqui em dezembro de 2015”. Não parou.
Até chegar ao atual palco do poder Executivo federal, no entanto, a
advogada e professora Damares Alves, 54, transitou por muitas coxias.
Desde o início dos anos 2000, ela trabalha como poucos na organização do
multifacetado bloco evangélico que hoje faz barulho no Congresso, mas
que à época ainda era um grupo disforme. Sempre nos bastidores, ela
treinou servidores, deu aulas de técnicas regimentais para parlamentares
novos e ganhou status de celebridade – maior do que o de grande parte
dos eleitos com quem atuou.
Quando nos encontramos para a entrevista, Alves acumulava, no
parlamento, os cargos de assessora do senador Magno Malta e consultora
jurídica das frentes parlamentares Evangélica e da Família e Apoio à
Vida. Fora dele, ela ainda era Secretária Nacional do movimento Brasil
Sem Aborto e membro dos grupos Maconha Não e Brasil Sem Drogas, além de
figura carimbada em programas de entrevistas evangélicos.
Esse havia sido o motor da minha curiosidade: como a Brasília do
baixo clero produzira, sem votos, uma formadora de opinião entre a
parcela mais conservadora do público evangélico? E em que medida ela
concentraria poder para alçar voos mais altos?
No burocrático e pouco aconchegante gabinete onde trabalhava, Alves
me recebeu em meio a vários pedidos de “espera só um pouquinho que eu
vou conversar aqui uma coisa importante e já volto”. Na sala, bandeiras
dos movimentos em que ela milita tentavam levar alguma decoração ao
amarelo das paredes, sem sucesso.
Fé, política e sobretudo infância são as causas que
credenciaram Damares ao ministério de Bolsonaro. Evangélica de berço,
ela frequenta e é pastora da Igreja do Evangelho Quadrangular, de
tradição pentecostal.
Paralelo à religião, o outro grande fio condutor da carreira política
da nova ministra começou a ser desenrolado na adolescência. Em Sergipe,
ela se envolveu aos 14 anos com organizações ligadas à defesa da
criança, dando aulas de alfabetização. A vocação para o tema teria
nascido antes, da forma menos inspiradora possível: um abuso sexual
sofrido aos 6 anos de idade. Hesitei em falar sobre o fato, dei algumas
voltas antes de perguntar, mas ela foi rápida em entender e me contou,
entre enfática e emocionada.
‘Ele enganou meus pais e me submeteu a várias sessões de estupro.’
“Um homem se hospedou na minha casa dizendo ser missionário. Ele
enganou meus pais e me submeteu a várias sessões de estupro. Tirou minha
inocência, achei que eu não iria mais para o céu. Mais tarde eu tentei
me suicidar, mas tive um encontro com Jesus que me livrou da morte. A
partir dali, resolvi fazer daquela dor a minha bandeira.”
Entre o final dos anos 80 e a metade dos 90, a advogada acompanhou a
criação de políticas públicas relacionadas à infância, como o Estatuto
da Criança e do Adolescente, assessorando políticos cristãos. Em 1998,
ela aterrissou definitivamente na capital federal e passou a trabalhar
com o deputado João Campos, futuro presidente da Frente Parlamentar
Evangélica e de quem se tornaria chefe de gabinete.
No ano seguinte, ela participaria da equipe de assessores da CPI da
Funai, introduzindo a causa indígena em seu portfólio. “Ali eu descobri
que crianças eram enterradas vivas por suas famílias ao nascerem
defeituosas. Resolvi lutar contra o infanticídio indígena para sempre.”
Em pouco tempo, porém, o ar-condicionado de uma sala com mesa e
telefone empurraria a pastora para longe da rotina de gabinete. Damares
Alves queria sair e transitar. Fora do cargo e já uma habitué dos
corredores, ela passou a perceber o potencial contido no grupo de
parlamentares evangélicos que começava a se organizar para votar o
Código Civil, em 2002.
O novo conjunto jurídico tratava de temas caros ao pastorado, como
taxação de igrejas, flexibilização dos conceitos de família e
facilitação do divórcio. Antes divididos, os deputados e senadores das
mais diversas igrejas precisariam abdicar das divergências teológicas em
nome da proteção política.
Oficializada a partir daí, a Frente Parlamentar Evangélica passaria a
atuar com mais força em torno de pautas morais no Congresso poucos anos
depois. A votação do PL 122/2006, que criminaliza a homofobia, o debate
sobre o aborto que marcaria a disputa à presidência em 2010 e a
escalada do deputado-pastor Marco Feliciano à presidência da Comissão de
Direitos Humanos da Câmara, em 2013, colocariam o bloco religioso no
centro da política nacional.
Pioneira na paranoia do ‘kit gay’
Damares Alves acompanhou tudo isso de perto, e foi justamente em 2013
que ela começou a sair das sombras dos parlamentares para os holofotes.
Durante uma pregação noturna na Primeira Igreja Batista de Campo
Grande, Mato Grosso do Sul, a pastora apresentou aos fiéis uma série de
slides com denúncias supostamente inéditas de erotização infantil
promovida pelo Estado.
Muito antes de Jair Bolsonaro levar o chamado “kit gay” à bancada do
Jornal Nacional na entrevista pré-eleições de 2018, Alves já apontava
para a existência de cartilhas escolares “ensinando homossexualidade”.
Na fala, a advogada alertava, por exemplo, que a ex-prefeita de São
Paulo Marta Suplicy teria pago um grupo de estudos para promover
práticas de masturbação em bebês. E convocava: “a igreja evangélica está
deixando isso acontecer. Vamos começar a reagir, porque estão detonando
as nossas crianças”.
Damares Alves já havia gravado apresentações do tipo anteriormente,
mas a popularização proporcionada pelo YouTube impulsionou o vídeo como
nunca antes (a edição original
tem hoje cerca de 650 mil views). O material foi, inclusive, meu
primeiro contato com a imagem e a voz dela. Viral, ele passou a ser tema
de encontros em igrejas, foi visto por padres, espíritas, médicos e até
traduzido para outros idiomas. A partir de então, o boom de convites
para palestras valorizaria o passe da pastora dentro e fora do
Congresso.
A desconfiança sobre as falas de Damares Alves no vídeo, no entanto,
pairou sobre a pesquisadora Magali Cunha, então no departamento de
comunicação da Universidade Metodista de São Paulo. Em um relatório
analisando todos os slides da palestra, ela constatou: sem fontes, a
maior parte das informações continha inverdades, falsas associações e
generalismos.
Contestada, a advogada me diria que não precisava provar as denúncias porque “existe entre a ovelha e o pastor o princípio da confiança mútua e da credibilidade”. E atacaria: Magali foi uma enviada do PT para deslegitimar sua atuação enquanto evangélica e conservadora. Ficou por isso mesmo.
Em uma das conversas, com prancheta e folhas de papel na mão, ela caminhava ao lado de um deputado enquanto planejava a derrubada do projeto de lei 882/2015, de Jean Wyllys, do PSOL carioca. Colocada em tramitação dois meses antes, a proposta sugeria a descriminalização do aborto no país e seria discutida na Comissão de Seguridade Social e Família nas semanas seguintes. “Vamos lutar para barrar isso”, Damares prometeu. O PL está parado no colegiado até hoje.
Me impressionou a forma como a assessora reivindicava para si uma espécie de propriedade dos parlamentares evangélicos. “Eu oro com os meus deputados. Eu leio a Bíblia com os meus deputados. Eu vou na casa deles orar quando eles estão tristes”, ela me diria sobre sua relação com os parlamentares.
É possível dizer que a substância responsável por dar alguma consistência ao discurso de Jair Bolsonaro na última campanha estava sendo formulada nesses eventos. Grande parte das teses conspiratórias, dos inimigos comuns e das ações de contra-ataque a eles eram apontados ali. O futuro presidente, aliás, compartilhou do mesmo espaço com Damares Alves em diversas ocasiões, ambos como ouvintes e também participantes ativos.
Entre um evento e outro, Alves me pediu para acompanhar a entrevista que daria sobre “ideologia de gênero” para a rádio Canção Nova, de orientação católica. Entrar ao vivo na emissora demonstrava que a pregação da advogada não se resumia ao mundo evangélico, normalmente refratário à Igreja de Roma. Valia se aliar aos antigos inimigos dos protestantes em nome dos bons costumes.
“Eu fiz aula de biologia e nunca precisei levar uma banana para a sala e botar uma camisinha nela. Se os pais souberem de algo que os professores estão ensinando e que contrarie seus princípios, devem denunciar”, disse ela, em tom enérgico, ao apresentador do programa.
Contrariando Magno Malta, seu ex-chefe, ela me surpreendeu ao dizer que não endossa a redução da maioridade penal, por exemplo. “Quem defende crianças e adolescentes não pode ser a favor de prendê-los”.
Diferente ainda de Bolsonaro, ela já se manifestou contra a diferença salarial entre homens e mulheres e chegou a dizer que lutaria a favor de crianças discriminadas por sua orientação sexual. A declaração não caiu bem para parte do parlamento evangélico, diga-se.
Na última quinta, no Centro Cultural Banco do Brasil, sede da transição do governo, a escolha de Damares Alves pelo presidente eleito foi anunciada à imprensa.
Falando aos microfones de tantas emissoras provavelmente pela primeira vez, a agora ministra manteve o tom enérgico e professoral com o qual costuma pregar. Quase sempre com o indicador em riste, ela relatou brevemente seu histórico, anunciou suas principais medidas e deu os primeiros avisos aos desconfiados, já adiantando que a prioridade pasta será “a proteção da vida”.
Ao seu lado direito, a figura de Onyx Lorenzoni se impunha, mirando o horizonte. Outrora um deputado de pequena importância do DEM, o gaúcho foi alçado à Casa Civil do Planalto.
Naquele momento, os dois sintetizavam o tom do novo ministério: a vitória do baixo clero, que tem em Jair Bolsonaro seu maior troféu. A Brasília underground, agora, virou governo.
Contestada, a advogada me diria que não precisava provar as denúncias porque “existe entre a ovelha e o pastor o princípio da confiança mútua e da credibilidade”. E atacaria: Magali foi uma enviada do PT para deslegitimar sua atuação enquanto evangélica e conservadora. Ficou por isso mesmo.
Os deputados dela
Não foram poucas as vezes em que Alves parou para cumprimentar outros assessores, tirar fotos com fãs ou adiantar assuntos da pauta evangélica com parlamentares enquanto andávamos pelo Congresso.Em uma das conversas, com prancheta e folhas de papel na mão, ela caminhava ao lado de um deputado enquanto planejava a derrubada do projeto de lei 882/2015, de Jean Wyllys, do PSOL carioca. Colocada em tramitação dois meses antes, a proposta sugeria a descriminalização do aborto no país e seria discutida na Comissão de Seguridade Social e Família nas semanas seguintes. “Vamos lutar para barrar isso”, Damares prometeu. O PL está parado no colegiado até hoje.
Me impressionou a forma como a assessora reivindicava para si uma espécie de propriedade dos parlamentares evangélicos. “Eu oro com os meus deputados. Eu leio a Bíblia com os meus deputados. Eu vou na casa deles orar quando eles estão tristes”, ela me diria sobre sua relação com os parlamentares.
‘Eu oro com os meus deputados. Eu leio a Bíblia com os meus deputados.’Impressionante também era a quase onipresença com que ela se movia para acompanhar os eventos da bancada evangélica. Durante dois dias de gravações na Câmara, acompanhei-a na reunião semanal do grupo, encontrei-a no culto que ocorre às quartas-feiras pela manhã e em duas audiências públicas que tratavam de homossexualidade, ambas convocadas e com massiva presença dos parlamentares cristãos.
É possível dizer que a substância responsável por dar alguma consistência ao discurso de Jair Bolsonaro na última campanha estava sendo formulada nesses eventos. Grande parte das teses conspiratórias, dos inimigos comuns e das ações de contra-ataque a eles eram apontados ali. O futuro presidente, aliás, compartilhou do mesmo espaço com Damares Alves em diversas ocasiões, ambos como ouvintes e também participantes ativos.
Entre um evento e outro, Alves me pediu para acompanhar a entrevista que daria sobre “ideologia de gênero” para a rádio Canção Nova, de orientação católica. Entrar ao vivo na emissora demonstrava que a pregação da advogada não se resumia ao mundo evangélico, normalmente refratário à Igreja de Roma. Valia se aliar aos antigos inimigos dos protestantes em nome dos bons costumes.
“Eu fiz aula de biologia e nunca precisei levar uma banana para a sala e botar uma camisinha nela. Se os pais souberem de algo que os professores estão ensinando e que contrarie seus princípios, devem denunciar”, disse ela, em tom enérgico, ao apresentador do programa.
A consolidação do underground
A despeito dessas e de outras declarações que fazem estourar os tímpanos mais progressistas, é preciso dizer que Damares é um tanto complexa. Como a própria bancada evangélica, ela não não encarna um bloco monolítico de ideias e opiniões.Contrariando Magno Malta, seu ex-chefe, ela me surpreendeu ao dizer que não endossa a redução da maioridade penal, por exemplo. “Quem defende crianças e adolescentes não pode ser a favor de prendê-los”.
Diferente ainda de Bolsonaro, ela já se manifestou contra a diferença salarial entre homens e mulheres e chegou a dizer que lutaria a favor de crianças discriminadas por sua orientação sexual. A declaração não caiu bem para parte do parlamento evangélico, diga-se.
‘Quem defende crianças e adolescentes não pode ser a favor de prendê-los’Mal também soou a nomeação da pastora para quem esperava estar entre as primeiras opções do presidente. O próprio Magno Malta, dado como certo no cargo e depois preterido, declarou não ser coisa sua a indicação Damares Alves. Em uma entrevista de respostas curtas ao Intercept, ele diz não estar chateado com o esquecimento de Bolsonaro. Mas tampouco parece estar satisfeito.
Na última quinta, no Centro Cultural Banco do Brasil, sede da transição do governo, a escolha de Damares Alves pelo presidente eleito foi anunciada à imprensa.
Falando aos microfones de tantas emissoras provavelmente pela primeira vez, a agora ministra manteve o tom enérgico e professoral com o qual costuma pregar. Quase sempre com o indicador em riste, ela relatou brevemente seu histórico, anunciou suas principais medidas e deu os primeiros avisos aos desconfiados, já adiantando que a prioridade pasta será “a proteção da vida”.
Ao seu lado direito, a figura de Onyx Lorenzoni se impunha, mirando o horizonte. Outrora um deputado de pequena importância do DEM, o gaúcho foi alçado à Casa Civil do Planalto.
Naquele momento, os dois sintetizavam o tom do novo ministério: a vitória do baixo clero, que tem em Jair Bolsonaro seu maior troféu. A Brasília underground, agora, virou governo.
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