Emanuel Rocha*
22 de novembro de 2025
Quando o palco vira trincheira e a comédia, resistência
Numa Aracaju que respirava sonho e poesia, onde o vento cochichava segredos nas esquinas e o riso morava em cada beco, nasceu, em 1983, o Grupo Teatral Mambembe. Era filho do Quilombo da Maloca, gestado no calor da invenção e no improviso cheio de ginga. Os dois Antônios, Campos e Santos, teceram a travessura, lançaram a semente e acordaram a cidade com um teatro livre, faceiro, atrevido e com o coração maior que o Mercado Municipal.
Mas foi em 1985 que a magia decidiu chegar de verdade, e veio com elegância. Surgiu Virgínia Lúcia, artista de olhar cortante e alma que falava com as estrelas. Ela não entrou na trupe, pousou como quem sopra vida nova, trazendo outro compasso para o tambor, outro brilho para a cena e uma coragem bonita de virar o mundo de cabeça pra baixo. Com ela, o grupo se despediu da saudade do teatro engessado e abriu os braços para a arte viva, que é arma e festa, pensamento e brincadeira, resistência e encanto, tudo junto e misturado, do jeito que só Aracaju entende.
O Mambembe bebeu da fonte do Imbuaça, como quem encontra um poço encantado no próprio quintal. Fez morada nesse encanto e trouxe para o seu fazer a esperteza do cordel, a sabedoria brincalhona do circo-teatro e o fervor do teatro de rua popular. Cada cena virou grito, cada riso virou ironia afiada, cada gesto se abriu como janela para as dores e esperanças das periferias, que sempre tiveram o que dizer e nunca perderam a vontade de cantar.
E lá vinha Virgínia Lúcia, com sua escrita que cortava e acariciava ao mesmo tempo, abrindo horizontes para o Mambembe com a ousadia de quem nunca aprendeu a pedir licença. Sob sua pena inquieta, o grupo percorreu Sergipe de ponta a ponta, levantando poeira nos povoados, ocupando praças com poesia desobediente e cruzando fronteiras para ecoar em outros cantos do país. Em cada cidade ficava um rastro de riso crítico e encanto rebelde. Assim, o Mambembe foi se tornando lenda viva, trupe insurgente, militante e travessa, daquelas que entram pela porta da frente do coração e ali se instalam, sem jamais pedir permissão.
Foi no apagar das luzes da década de 1980 que Raimundo Venâncio entrou em cena. Não anunciou chegada, apenas surgiu, como personagem que o destino escreve de surpresa. Caminhou pelo terreiro do Mambembe com a naturalidade de quem sempre pertenceu ao enredo, e o grupo, ao vê-lo, pareceu reconhecer um velho companheiro de sonho. Raimundo trazia nos olhos o brilho das praças e nas veias a pulsação do verso. Sua presença tinha o dom de fazer o público rir e pensar ao mesmo tempo, como se a poesia soprasse segredos no ouvido da consciência. E assim, sob refletores inventados e estrelas cúmplices, sua palavra virou luz que dançava entre o riso e a revolta.
Logo Raimundo tornou-se farol no meio da trupe, luz teimosa apontando caminhos mesmo quando a neblina insistia em cair. Entrou em cena com corpo e alma em montagens que marcaram época, como Quem Matou Zefinha?, espetáculo que cutucava a ferida das injustiças e expunha, com ousadia e sarcasmo, as dores que o poder tentava esconder sob o tapete da indiferença. Era teatro que perguntava em voz alta, chamava o povo pelo nome e fazia de cada riso uma faísca de consciência, mostrando que a luta também pode nascer da poesia, da gargalhada e do peito valente que não aceita calar.
O Grupo Mambembe se destaca também por uma postura firme que nem vento teimoso dobra. É daqueles coletivos que olham o poder nos olhos e respondem com arte, ironia e coerência. Nunca se vendeu, jamais trocou sua alma por promessa bonita de governo que pouco entendia o povo, e às vezes até caminhava contra ele. Prosseguiu adiante com a teimosia boa de quem sabe onde pisa e por que pisa.
A arte do Mambembe caminhou junto das lutas sociais, não como sombra, mas como força viva que enfrentou o silêncio e desafiou o esquecimento. Foi um grupo que nunca se curvou aos poderosos, nem baixou a cabeça diante da censura, da indiferença ou do medo. Permaneceu de pé, risonho e combativo, fazendo do palco uma trincheira e da poesia uma arma de esperança. Cada gesto era bandeira, cada palavra, chamado à consciência. O Mambembe não apenas encenou: gritou junto, chorou junto, sonhou junto. Em cada praça, reacendeu a chama antiga da cultura sergipana, essa que só arde quando o povo se reconhece em cena e entende que arte também é forma de lutar.
Não faltou humor, nem veneno, nessa caminhada atrevida. Em 1993, o Grupo Mambembe invadiu as ruas de Aracaju com Passaram a Mão no Buraco do Meu Bem, espetáculo que já fazia o povo rir só pelo título e seguia derrubando máscaras a cada cena. Mas, por trás da gargalhada, vinha a ferroada: uma sátira ácida à política pública de saúde do governo estadual, que tropeçava mais que paciente em fila de posto. Com sorriso maroto, gestos exagerados e aquele deboche certeiro que só o povo domina, o grupo desmontou discursos, escancarou falcatruas e cutucou a ferida do poder. Esse é o Mambembe que nunca se rendeu ao afago dos poderosos, que fez da criatividade sua arma e da arte seu instrumento de informação e resistência, mostrando que riso também pode ser rebeldia e que o palco é lugar de luta, consciência e liberdade.
Essa mistura audaciosa de poesia com riso cortante virou marca registrada do Mambembe. Eles pegam o drama pesado da vida popular e o vestem com cordel, samba, rock e circo, criando um tempero que é metade beleza, metade desatino, todo revolucionário. O público não assiste, participa. Não é plateia, é cúmplice da piada que incomoda. Ri, mas sem esquecer da indignação necessária. É assim que o Mambembe transforma cada apresentação num pequeno levante, leve no jeito, forte na mensagem.
O grupo sempre caminhou lado a lado com movimentos sociais, sindicatos e causas populares de Sergipe, levando o teatro como farol em tempos de escuridão. Politizava cada apresentação com a ousadia de quem sabia que arte também é arma e esperança. Era palco que convidava o público a pensar, rir, se indignar e, se possível, sair dali com vontade de mudar o mundo. O Mambembe não representava por representar: despertava, cutucava, lembrava que cada aplauso podia ser também um grito por transformação.
Além das ruas de Aracaju, o Mambembe espalhou sua chama pelo interior sergipano e por estados vizinhos, levando seu teatro-poesia de resistência como quem protege um lume sagrado na palma da mão. Em cada povoado, em cada praça, reafirmava a identidade do povo e cutucava com coragem as desigualdades escondidas nas dobras do cotidiano. O circo-teatro, a palhaçaria consciente e o diálogo direto com o público transformavam o palco em território comum, onde artista e cidadão se misturavam num mesmo gesto de humanidade, rompendo a distância entre quem cria e quem vive a arte.
Assim, o Grupo Mambembe e seus incansáveis integrantes (dos fundadores Antônio Campos e Antônio Santos, à liderança inventiva de Virgínia Lúcia e à força poética e militante de Raimundo Venâncio), junto de tantos atores, técnicos e colaboradores, escreveram uma das páginas mais vibrantes da cultura brasileira. São prova viva de que, quando a arte se une à consciência, o teatro deixa de ser apenas espetáculo e se torna pulsação de vida, esperança e revolução. O Mambembe segue presente em cada esquina, em cada plateia improvisada, em cada coração fervoroso de Sergipe, lembrando que, enquanto houver povo e poesia, o palco jamais se apaga.
E assim chegamos ao último aplauso, aquele que não se apaga e continua ecoando no peito de cada sergipano. Porque o Mambembe não foi apenas um grupo, foi abraço coletivo, farol teimoso e riso resistente nas horas mais duras. Foi arte que não pediu licença para existir. Por isso, sindicatos, associações, movimentos sociais, artistas, professores, estudantes, gente de toda esquina e de toda quebrada têm motivo de sobra para agradecer de pé a existência desse bando arretado que ousou transformar tristeza em reflexão, dor em poesia e injustiça em gargalhada crítica, e com isso manteve viva a chama da esperança no palco da vida.
O Mambembe ensinou que o teatro pode ser espada e flor ao mesmo tempo, que a rua é palco legítimo e que o coração do povo é plateia que nunca dorme. E até hoje, quem passa pelas praças de Aracaju ainda sente aquele pulsar escondido no vento, um ritmo leve que parece sussurrar: aqui já houve teatro que disse verdades com humor, que provocou esperança com deboche e que acendeu coragem com poesia.
Por tudo isso, Sergipe tem motivo de sobra para se orgulhar e preservar a memória desse grupo que ousou desafiar o poder, atravessou fronteiras, levou alegria aos lugares mais distantes e transformou a arte em arma, fé e coragem.
O Mambembe foi e continua sendo centelha de sonho e resistência, lembrando que o riso também pode ser gesto de luta e que a poesia, quando encontra o povo, vira força capaz de mover o mundo.
Fica, então, nosso agradecimento cheio de encantamento e sorriso torto. Obrigado ao Mambembe por existir, resistir e insistir. Obrigado por colocar poesia no meio da poeira, por arrancar riso onde só havia silêncio, por ensinar que a revolução também pode ter cheiro de picolé, som de sanfona e brilho de lampião.
Mesmo com seu término, o Mambembe permanece aceso no tempo, feito brasa teimosa que o vento não apaga. Sua voz ainda sopra nas esquinas, sua gargalhada ainda mora nas praças, seu passo ainda ecoa nos becos onde a esperança aprende a dançar.
Que essa chama continue viva, brincalhona e danada, batendo firme no coração de quem cruza as praças, os becos e os sonhos de Sergipe, terra que aprendeu, com o Mambembe, que a arte é coragem disfarçada de alegria e que nenhum fim é capaz de apagar o que nasceu do povo, do riso e da luz.
* Emanuel Rocha é Historiador, poeta popular, escritor e Repórter fotográfico
https://roacontece.com.br/2025/11/22/mambembe-em-cena-do-quilombo-da-maloca-ao-palco-da-rebeldia/
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