quarta-feira, 22 de outubro de 2025

A biografia do poeta Miró da Muribeca

 Miró da Muribeca havia sido, ou melhor, ele é homenageado no nosso Dicionário amoroso do Recife. Em 2014 publiquei sobre o poeta no livro:  

Festival no Recife celebra a obra do poeta Miró da Muribeca — Foto: Wesley D'Almeida/PCR/Divulgação


“João Flávio foi transformado em Miró pelos amigos, porque lembrava ao jogar o bom Mirobaldo, um craque da pelota do Santa Cruz Futebol Clube. No tempo em que o maior talento de João era o futebol, os seus amigos o apelidaram de Miró, forma reduzida de Mirobaldo, que se pronuncia com a vogal ‘o’ aberta da fala nordestina. Depois, na fase em que assumiu o jogo mais raro e difícil da poesia, achou por bem continuar assim, Miró.” 

Como neste lindo poema:  

“Acho que foi a primeira vez que conheci a dor

Um domingo de 1971

Naquele tempo o domingo era o dia mais feliz,

Minha mãe fazia um macarrão com carne de

lata e Q-suco

Ficávamos brincando de mostrar a língua vermelha

Pra provar que éramos felizes…

Norma era tão linda com seus cabelos negros,

Que me deu um branco aos 11 anos

Quando me pediu um biscoito maizena e um

gole de fratele vita …

Domingo era o dia mais feliz

Antes de Norma beijar um outro na boca.”

Aquelas coisas mínimas, constrangedoras, que nem às paredes confessamos, ele, como um novo louco, arrebenta de si. Mais do que escrever, por vezes transcreve. Com uma sensibilidade que observa o inobservável. Este poema a seguir não precisa da performance do poeta no palco. Basta a sensibilidade do leitor.  

“Deus, Tu que agora carregas um homem,  

Puxando pelas rédeas o seu cavalo e uns  

sacos de cimento  

De cada lado um sol insuportável …  

Deus, Choves agora no meu coração  

Para que eu não pense em comprar um 

guarda-chuvas de balas  

E fazer justiça com as próprias mãos.” 

Em Miró da Muribeca –  Estou quase pronto, biografia bem pesquisada por Wellington de Melo, entre depoimentos sobre as quedas do poeta no alcoolismo, aparece um Miró que fala um retrato da sociedade de classes por toda a sua vida. Na altura dos seus 22 anos de idade, isso se deu, conforme publicado no livro:     

“— Quando eu publiquei um poema no jornal dos funcionários da Sudene, saiu meu nome e a sigla de onde eu trabalhava, DSG, Departamento de Serviços Gerais. O filho da puta do meu chefe, seu Fernando, chegou na fila para bater cartão e perguntou: ‘Quem é João Flávio?’. Eu disse: ‘Sou eu’. ‘Sente aqui. Olhe, a gente não quer ninguém daqui metido com o pessoal lá de cima. Vocês são serventes’. ‘Mas eu sou poeta, sou escritor’, eu disse. Levei três dias de suspensão. Falei para Wilson (poeta Wilson Araújo de Sousa), e ele falou com Maria do Carmo (poeta Maria do Carmo Barreto Campello de Mello), que me resgatou e me colocou um mês para trabalhar na sala dela, fazendo nada.  

O episódio bate com o relato que eu ouvira de Maria do Carmo, que afirmou tê-lo colocado sob suas asas para que ninguém o perseguisse. No entanto, em conversa com o filho da poeta, o médico Paulo Barreto Campello, descobri que a perseguição vinha de antes da publicação:  

— Não queriam publicar o poema de Miró no jornal, porque ele era faxineiro. Minha mãe então falou com o superintendente, dizendo que, se não publicassem, ela iria à imprensa.” 

Há um outro momento da biografia que lembra os dias de Lima Barreto no hospício. Houve uma vez em que os psiquiatras receberam o imenso Lima Barreto, e escreveram incrédulos e zombeteiros no seu prontuário: “diz-se escritor”. É incrível e sintomático da sociedade brasileira, que de modo semelhante isso ocorreu com Miró. Está no livro:  

“Quando Wilson falou pela primeira vez com os médicos do Alfa, um deles relatou que estavam pensando em chamar um acompanhamento psiquiátrico. 

‘Ele está alegando que é poeta, mostrando um comportamento estranho, recitando uns poemas’, informou a médica. ‘Você sabia que ele é um dos grandes poetas de Pernambuco?”, perguntou Wilson. ‘É?’, perguntou surpresa a médica.” 

Não fosse a rede de apoio dos amigos e admiradores, o poeta Miró teria morrido muito antes dos quase 62 anos de idade. Ele, à semelhança do outro gênio Noel Rosa, teria vivido menos que um sopro. Certa vez, ele chegou a falar:  

— Você sabia que tem uma bolsa de apostas no Recife para saber quando eu vou morrer? 

Não acertaram o dia. Mas em 31 de julho de 2022 o poeta faleceu. No texto de Wellington de Melo, lemos:  

“Adroaldo, sempre uma fortaleza de cuidado, um porto seguro emocional para Miró, também fez um relato tocante:  

— No meu plantão ele falou que estava morrendo. Saí do quarto para chorar. Não queria fazer isso na frente dele.” 

O seu encanto e feitiço vinham e vêm da união de Poesia e Verdade, como falava Goethe. Para o Brasil que ainda não o conhece, Miró aparece aqui em um dos seus vídeos:   

Miró da Muribeca não precisa mais dos qualificativos “preto e pobre”, que na sociedade de classes e racista são desqualificativos. Guardadas as diferenças, seria qualificar de maneira semelhante Machado de Assis e Cruz e Sousa. Eles são grandes escritores, ponto. Portanto, Miró da Muribeca é muito bom poeta, ponto. E ganhou a sua primeira biografia.  

A biografia Miró da Muribeca – Estou quase pronto, escrita por Wellington de Melo, será lançada no Recife nesta quinta-feira, 23 de outubro de 2025, às 19h, no Bar do Teatro Mamulengo, Recife Antigo.  

***

Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. É colunista do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil, do Dicionário Amoroso do Recife (Casarão do Verbo, 2014), e de A mais longa duração da juventude (Editora LiteraRUA) que narra o amor, política e sexo dos militantes contra a ditadura.

Miró: Preto, Pobre, Poeta e Periférico (2008) Wilson Freire (documentário completo)




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