As escolas de tempo integral cumprem, também, uma função secundária, mas decisiva. A de esvaziamento das ruas. Funcionam como dispositivos de captura dos corpos juvenis, sob o argumento civilizatório de que o perigo está lá fora.
Rick Afonso-Rocha no Le Monde Diplomatique (edição em português)
10 de outubro de 2025
Em Pernambuco, o modelo de escola em tempo integral tem sido amplamente promovido como solução para os problemas da educação pública. Não raro, somos interpelados pelo discurso oficial que coloca a experiência pernambucana como exemplo nacional. Nesse discurso, tratar-se-ia de uma estratégia de inclusão, elevação do rendimento escolar e formação cidadã. No entanto, o que se observa cotidianamente dentro dessas escolas revela uma realidade radicalmente distinta. Jornadas exaustivas, salas superlotadas, ausência de espaços de socialização, supressão da arte e da prática esportiva e um currículo rigidamente conteudista.
Esse cenário, longe de constituir um espaço de emancipação, de formação crítica, se configura como um dispositivo de captura das subjetividades juvenis, moldado para conter, vigiar e adoecer. Constitui, em verdade, uma máquina de produção de subjetividades quebradas.
Essas escolas operam como verdadeiras “protoprisões”, onde a lógica do tempo integral foi apropriada por uma racionalidade neoliberal e securitária. Talvez minha experiência entre realidades, tendo sido professor em uma escola prisional e, agora, em uma escola integral, me permita enxergar as regularidades que fazem dessas instituições espaços marcados por continuidades radicais. A contenção dos corpos, a vigilância constante, a padronização das condutas e a administração do tempo não são exceções, mas elementos estruturantes em ambas. Muda-se o discurso, muda-se a arquitetura (nem tão diferentes, na verdade), mas a lógica do controle permanece.
Não se trata de oferecer mais tempo para viver a escola de forma plena, mas de restringir os corpos ao espaço escolar como forma de gestão do risco social, sobretudo quando se trata de juventudes negras, pobres e periféricas. A promessa de cuidado se converte em disciplinamento; a pedagogia se transforma em vigilância. Nas entrelinhas, o fracasso escolar não é combatido, ele é administrado, perseguido e cristalizado como destino.
As escolas de tempo integral cumprem, também, uma função secundária, mas decisiva. A de esvaziamento das ruas. Funcionam como dispositivos de captura dos corpos juvenis, sob o argumento civilizatório de que o perigo está lá fora. No entanto, o que se opera é a domesticação subjetiva do espaço urbano. Ensina-se que a rua não deve ser vivida, que a cidade não é lugar de estar, de conviver, de experimentar o acaso. A cidade torna-se um território interditado, reservado ao capital, ao consumo e à produtividade. A presença desautorizada de corpos não consumidores ou não produtivos nas ruas é tratada como ameaça à ordem ou, mais precisamente, como risco de aglutinação potencialmente insubordinada.
Retirar os jovens das ruas é ensaiá-los para o enclausuramento, acostumá-los à contenção, fazê-los desejar o privado como única forma legítima de existência. É instaurar o medo como mediação entre o sujeito e o espaço. Medo da cidade, medo do outro, medo do comum. E assim, sob a justificativa do cuidado, fortalece-se a arquitetura do isolamento. Vivemos a era da “cidade de muros”, como nos alertou Teresa Caldeira.[1] Não apenas muros de concreto, mas barreiras afetivas, simbólicas e sociais que impedem a ocupação plena do urbano. O que se protege, afinal, é a lógica da mercadoria. “Na cidade de muros não há tolerância para com o outro ou pelo diferente. O espaço público expressa a nova intolerância. As convenções modernistas de projeto usadas pelos enclaves ajudam a assegurar que diferentes mundos sociais se encontrem o mínimo possível no espaço da cidade, ou seja, que pertençam a espaços diferentes.” (Caldeira, 2000, p. 313).
O espaço público é esquartejado, vigiado, higienizado, porque o encontro, sobretudo o encontro improdutivo, é sempre uma ameaça. A rua, quando não rende lucro, precisa ser esvaziada. E o que chamamos de segurança, nesse contexto, é apenas o outro nome do controle. A liberdade, por sua vez, é reconfigurada como risco, como desordem, como desvio.
O funcionamento dessas escolas também revela uma recusa mais profunda. A de que o urbano seja reconhecido como matéria viva, concreta e simbólica, no processo formativo dos sujeitos. Como problematiza Raquel de Padua Pereira,[2] em estudo sobre o teatro periférico paulistano, as práticas culturais criadas nas margens da cidade operam a partir da realidade material e subjetiva do espaço urbano, não apenas como cenário, mas como matéria-prima da criação. Ao participar da interdição do acesso pleno à cidade e ao reforçar a lógica de limitação do tempo urbano vivido em sua complexidade, a escola de tempo integral nega, portanto, essa potência do território. Rompe-se, assim, a possibilidade de que o cotidiano, os deslocamentos, os afetos, os becos e as paisagens sejam incorporados ao processo educativo como saber e experiência. O que se instala é uma pedagogia contra o urbano, uma pedagogia que fecha o tempo e o espaço. Uma antipedagogia do território.
Paradoxalmente, ou talvez nem tanto, o neoliberalismo que se vende como ideologia da liberdade ilimitada foi a racionalidade que mais investiu na multiplicação dos aprisionamentos. Contudo, aprisionamentos sofisticados, travestidos de escolha, vendidos como desejo. O medo converte a ausência de liberdade em mercadoria. Somos treinados para consumir proteção, contratar blindagem, sonhar com muros. Desejar o cárcere e pagar por ele.
A escola integral, nesse projeto, não é meramente um espaço de ensino. É uma engrenagem de controle da circulação urbana, um simulacro de acolhimento que prepara os sujeitos para uma vida conformada ao enclausuramento. Enclausuramento que passa ser não apenas projeto, mas também destino e desejo. A promessa de formação integral torna-se, na prática, um treinamento para a vida em jaulas afetivas, espaciais e subjetivas. E tudo isso nos é oferecido como cuidado, como progresso, como política pública. Um gesto cínico, mas profundamente eficaz de pedagogia do medo.
Ao contrário das promessas de salas amplas, bibliotecas vivas, áreas verdes e ambientes que estimulem a criação e a convivência, o que se encontra nas escolas de tempo integral são, geralmente, espaços marcados pelo sufocamento. Turmas lotadas, salas abafadas sem qualquer climatização, paredes que repetem conteúdos em excesso e pouquíssimo espaço para o corpo, para a pausa, para a invenção. O tempo é todo ocupado, mas raramente vivido.
As bibliotecas, quando não são inexistentes, são frequentemente transformadas em depósitos de livros didáticos antigos, prateleiras empoeiradas que exibem acervos burocráticos, desinteressantes, divorciados da realidade e das urgências de quem ali estuda. Nos raros casos em que há bons títulos, falta quem cuide, quem provoque, quem mobilize. Falta gente, profissional qualificado e com tempo, para transformar aquele espaço em algo mais que uma sala de guarda. Porque biblioteca não é só coleção de livros. É lugar de travessia, de imaginação, de encontro com outras vozes. Mas o que se oferece, na maior parte das vezes, é silêncio estéril, paredes opacas e o mesmo projeto de domesticação que atravessa toda a escola.
Os projetos de leitura, arte, música ou esporte, quando existem, são frutos da insistência quase heroica de alguns professores e gestores que, à revelia da estrutura escolar, os sustentam em seus horários de descanso ou em brechas da rotina oficial. Isso porque o tempo institucional foi capturado por uma lógica produtivista, onde tudo gira em torno de aulas, provas, simulados e metas. O espaço para o sensível, para a criação, para o encontro, para aquilo que poderia, de fato, formar, é residual, tratado como supérfluo ou distração.
É nesse cenário que projetos alternativos, como clubes de leitura, oficinas de RPG, música ou escrita criativa, surgem quase sempre como práticas insurgentes, mantidas pela insistência de poucos. Esses projetos, muitas vezes desenvolvidos nos intervalos ou fora do horário oficial, revelam o desejo de romper com a lógica da escassez e da repetição. Não há espaço institucional para a imaginação política na escola.
Os professores de Pernambuco, submetidos a um dos piores salários do Nordeste, são empurrados para esse cenário por pura necessidade. A gratificação oferecida pelo modelo integral é pífia e sequer se incorpora à aposentadoria. Mas, ainda assim, diante da desvalorização salarial, é desejada. Trata-se de um trabalho a mais por um reconhecimento a menos. E, para completar a farsa, há ainda as metas, perversas e desumanizantes, que reduzem a educação a um negócio, a uma planilha de resultados, a uma mercadoria em disputa. Como prêmio de consolação, inventaram o BDE, o bônus de desempenho educacional. Uma espécie de medalha de papel para as escolas que, domesticadas pela lógica gerencial, conseguem bater os índices impostos pelas Gerências Regionais de Educação. O que se valoriza não é o processo, é o número. O que importa não é o estudante, é o gráfico.
Essa estrutura esgota emocionalmente estudantes e professores. O tempo integral deixa de ser tempo vivido para se tornar tempo encerrado, tempo fechado, em que os sujeitos não criam, mas obedecem. A depressão, a ansiedade, o desinteresse e o tédio são respostas cada vez mais comuns e, muitas vezes, medicalizadas ou culpabilizadas como falhas individuais. Aqui, torna-se útil recorrer à leitura de Mark Fisher,[3] para quem o sofrimento psíquico não é apenas um problema de ordem médica, mas o reflexo direto de um sistema que produz sofrimento como modo de gestão. A escola, nesse modelo, torna-se operadora do realismo capitalista, em que faz aparentar não haver saída, apenas adaptação.
Esse contraste se agrava quando se olha para a experiência histórica dos CIEPs idealizados por Leonel Brizola e Darcy Ribeiro. Ali, a proposta de educação integral passava por outra lógica. Ainda capitalista, mas outra lógica. A de formação plena, com arte, esporte, lazer, alimentação e cidadania como eixos fundamentais. O modelo pernambucano, ao contrário, elimina aspectos formativos que não possam ser quantificados em provas ou índices. O tempo é capturado e convertido em unidade de rendimento, enquanto o corpo e a subjetividade dos estudantes são tratados como obstáculos a serem vencidos, domesticados ou eliminados por abandono e evasão.
A escola de tempo integral, em Pernambuco, tem se revelado, na prática, uma escola de tempo exaustivo. A ampliação da jornada não significa expansão do sentido da escola, mas apenas o prolongamento da lógica conteudista, da pressão, da cobrança incessante. São nove aulas seguidas, todos os dias, em salas superlotadas, abafadas, enclausuradas; sem janelas para o sensível, sem respiro para o simbólico. Práticas artísticas, culturais ou esportivas são quase inexistentes. O que se institui, então, é uma rotina desumanizante que esvazia o desejo, atrofia a imaginação e transforma o tempo escolar em castigo.
O entusiasmo com que certos burocratas da educação pernambucana defendem seu modelo de escola integral revela muito mais sobre o projeto de gestão que abraçaram do que sobre as reais condições vividas dentro das escolas. Apresentam uma narrativa eufórica sobre a implantação das EREMs (Escolas de Referência em Ensino Médio),[4] pautada por indicadores de desempenho e avaliações externas, sem qualquer problematização crítica dos efeitos subjetivos, pedagógicos ou sociopolíticos do projeto de aprofundamento da razão neoliberalista. Essa visão gerencialista da educação, que transforma o estudante em métrica e o professor em executor de metas, ignora as denúncias cotidianas de esgotamento, medicalização, adoecimento e vigilância.
Ao promover uma pedagogia empresarial travestida de inclusão, esse projeto não apenas neutraliza a escola como espaço de formação crítica, mas a reconfigura como aparelho técnico de gestão da pobreza. A celebração dessa política como “referência nacional” escamoteia o preço pago por quem habita esses espaços. O preço da ansiedade, da exaustão e da perda do sentido. Celebrar essa política como “revolução” é, no mínimo, um gesto de cinismo tecnocrático.
Não é raro ouvir estudantes comparando a escola a uma prisão. Às vezes, desejam que chova torrencialmente, que relampeie, que desabe o mundo lá fora, só para que as aulas sejam suspensas. E muitos de nós, professores, também exaustos, igualmente enclausurados nesse sistema, partilhamos o mesmo desejo de fuga. Às vezes, secretamente, torcemos pela catástrofe: o alagamento, a falta de luz, a enchente, o caos. Um desejo triste que revela uma tristeza ainda maior. O colapso íntimo da esperança pedagógica.
Porque esse cansaço não é apenas físico. É o esgotamento de uma ideia de educação que já não nos move, que já não nos comove. Uma escola que deveria ser espaço de vida, de invenção e de mundo, passa a ser o laboratório de uma pedagogia do desespero. E quando sonhamos com a chuva para que tudo pare, é porque por dentro já estamos alagados.
Essa intensificação da rotina escolar sob o manto do tempo integral converge com o que Foucault identificou como as tecnologias disciplinares do poder. O corpo é retido, vigiado e moldado por meio de uma organização do espaço e do tempo que visa à docilização e ao rendimento. Não há tempo para respirar, para experimentar o ócio criativo ou para estabelecer vínculos afetivos com os saberes. A gestão do tempo e do espaço torna-se um dispositivo de controle. O fracasso não é lido como sinal de um modelo falho, mas como prova de que o aluno não se esforçou o suficiente.
Essa lógica também estrutura as relações entre os sujeitos escolares. Professores e estudantes compartilham o esgotamento como forma de vida. O ambiente escolar torna-se saturado de cobranças e ausente de trocas. A ansiedade dos alunos é lida como indisciplina, a exaustão dos professores é tomada como incompetência. O sofrimento é individualizado. A dimensão estrutural da crise é apagada. Assim como na lógica neoliberal mais ampla, a escola de tempo integral transforma a falha em culpa e a resistência em patologia.
O tempo integral, moldado por essa lógica de produtividade e vigilância, se aproxima da administração da pobreza. Ao invés de criar condições para o florescimento da vida, ele se volta para a contenção dos sujeitos. A escola vira uma forma de habitar o fracasso. O que se oferece aos estudantes não é um futuro ampliado, mas uma antecipação da precariedade. Em vez de romper com as lógicas punitivistas que atravessam as periferias, a escola passa a reproduzi-las em sua arquitetura, em seu currículo e em seus silêncios.
Essa aproximação entre escola e prisão não é apenas uma metáfora. Ela se concretiza nos modos de circulação dos corpos, na rigidez dos horários, na escassez de espaços de autonomia e na vigilância permanente. Os estudantes são mantidos em sala durante horas, com pouca ou nenhuma mobilidade. As pausas são mínimas e muitas vezes controladas por orientadores que operam como agentes disciplinares. Bibliotecas, quadras e áreas externas, quando existem, são inacessíveis ou monitoradas a ponto de desestimularem qualquer permanência. Há ali um desejo de contenção, não de circulação.
Na prisão, a escola é apresentada como oportunidade de ressocialização. Na escola de tempo integral, o discurso é de formação para a cidadania. Em ambos os casos, a lógica de fundo é a mesma. Não se trata de ampliar o mundo do sujeito, mas de regular sua conduta. A cidadania, quando aparece, vem esvaziada de conteúdo político, reduzida a um ideal de comportamento e autocontrole. Não há incentivo à crítica, à invenção, à criação de mundos possíveis. O que se promove é o encaixe forçado do sujeito em uma realidade que o violenta.
O discurso de sucesso que cerca essas escolas esconde os mecanismos que silenciam os efeitos colaterais do modelo. Os índices de aprovação são usados como vitrine, enquanto os casos de adoecimento emocional, desinteresse profundo, apatia e abandono simbólico são varridos para debaixo do tapete. Não se fala sobre os corpos que desistem em silêncio, sobre os que adoecem em voz baixa, sobre os que resistem apenas pelo vínculo com um ou outro professor. O fracasso não é visível nas estatísticas, mas está inscrito nas paredes, nos olhares cansados, nos corredores esvaziados de afeto.
A transformação da escola em espaço de sofrimento não é um erro de gestão, mas um sintoma de um projeto político mais amplo. O neoliberalismo não se contenta em dominar os corpos economicamente. Ele precisa administrar também os afetos, os desejos, os ritmos e os sonhos. A ansiedade escolar, longe de ser um efeito colateral, torna-se uma tecnologia de governo. Quanto mais ansioso o estudante, mais dependente de aprovação externa. Quanto mais esvaziado de si, mais maleável para o mercado. A pedagogia da ansiedade serve à lógica da produtividade infinita, mesmo quando já não há mais desejo de produzir.
É nesse cenário que a escola de tempo integral se consolida como um dispositivo de antecipação do mundo do trabalho precário. A jornada estendida, a repetição mecânica, a ausência de tempo livre e a fragmentação da experiência criam sujeitos conformados com a exaustão. Aprendem desde cedo que estar cansado é normal, que viver sob pressão é inevitável, que sentir prazer no aprender é privilégio. A escola naturaliza a vida como esforço sem recompensa. Ensina a suportar o insuportável.
O que se perde nesse processo não é apenas a alegria de aprender, mas também a potência de imaginar. Sem imaginação, não há política. Sem criação, não há ruptura. A escola que apaga a arte, o riso, o jogo e a convivência está formando corpos disponíveis para a obediência, não para a transformação.
Em Pernambuco, o tempo integral foi apropriado como ferramenta de contenção dos filhos da classe trabalhadora, sobretudo os jovens negros e periféricos. A promessa de um projeto emancipador foi sequestrada por uma racionalidade técnica que transforma o tempo em rendimento e o estudante em dado.
Por isso, é preciso recuperar o sentido radical da palavra educação. Educar não é domesticar, nem vigiar, nem punir com nove aulas diárias. Educar, do ponto de vista dos interesses da classe trabalhadora, é criar condições para que o sujeito se reconheça no mundo e se transforme com ele. Essa dimensão só é possível quando o tempo é vivido com intensidade, quando o corpo encontra respiro, quando a palavra circula sem medo e quando a escola deixa de ser um espaço de confinamento para se tornar um território de invenção coletiva.
Recusar esse modelo não é recusar a ideia do tempo integral como possibilidade de outra escola. É recusar a perversão que hoje se apresenta como cuidado, mas que opera como castigo; que se anuncia como formação, mas vigia; que promete oportunidade, mas adoece. O que está em jogo é a defesa de um tempo do saber que possa ser vivido e não apenas suportado. Um tempo de criação, de desejo, de mundo e de corpo.
Os CIEPs de Brizola e Darcy Ribeiro, embora longe de qualquer horizonte revolucionário, apontavam para uma escola que reconhecia o direito ao tempo, ao alimento, à arte, à dignidade. Não eram apenas projetos pedagógicos, eram tentativas de afirmar uma outra racionalidade de Estado. Sim, ainda dentro da lógica dos aparelhos ideológicos, ainda ferramentas do Capital, mas, ao menos, sinalizavam para uma inflexão no modo como o Estado se relaciona com os corpos populares. Reivindicar hoje esse horizonte não é idealizar o passado. É reconhecer o abismo presente.
A experiência dos CIEPs, apesar de interrompida por forças conservadoras e neoliberais, permanece como horizonte possível. Havia ali a compreensão de que tempo integral significa vida integral. Alimentação, arte, esporte, saúde, afetos e cultura faziam parte do projeto. Era uma escola que não tinha medo do corpo do povo. Pois era um projeto de tensionamento e de disputa que reconhecia os limites da escola capitalista e que, por isso mesmo, transava com suas contradições.
Em Pernambuco, ainda é possível reinventar essa perspectiva, mas isso exige romper com a lógica da produtividade e da eficiência técnica que rege as atuais políticas educacionais. Esse rompimento pressupõe, antes de tudo, a existência de um sindicato vivo, combativo e independente, cuja atuação não se limite às campanhas salariais, mas que enfrente, de forma incisiva, os projetos hegemônicos e os interesses dos donos do poder. Pressupõe um sindicato capaz de criar e potencializar condições de mobilização da comunidade em torno dessa luta.
Enquanto isso não acontece, as escolas seguem adoecendo em silêncio. Os estudantes se tornam números, os professores resistem como podem, e o tempo se transforma em algo que precisa ser suportado. Mas nem tudo está perdido. Cada projeto de clube, cada roda de leitura, cada aula em que o mundo se abre, ainda que por um instante, são fissuras na engrenagem. São essas fissuras que mantêm viva a possibilidade de uma outra educação.
Enquanto a revolução não vem, e ela não virá por dentro da escola, o que resta é disputar o que ainda pode ser vivido. Porque se nada for feito, seremos apenas cobaias de um laboratório de exaustão e controle, onde a pedagogia da exploração se aperfeiçoa dia após dia. E se for para sonhar baixo, que seja com uma escola menos desumana. Ainda que provisória. Ainda que longe da liberdade que desejamos.
Porque não há, neste momento histórico, um projeto político suficientemente forte para assustar a burguesia. Não há medo de classe. E onde não há medo, há ousadia da exploração em sua forma mais brutal. Diante disso, até mesmo lutar por aquilo que não é revolucionário se torna urgente. É luta por migalhas, sim, mas migalhas que podem, por ora, proteger vidas. Quando o monstro mostra os dentes sem disfarces, cada conquista se transforma em trincheira. Só não podemos nos perder na luta legalista e na atmosfera de cidadania e de afirmação da instituição escolar como símbolo de transformação.
Quanto ao horizonte projetivo possível, é preciso reconhecer que a escola ainda é um campo de/em disputa. E essa disputa passa, em grande parte, pela atuação dos professores, não como heróis solitários ou mártires românticos, mas como trabalhadores precarizados, exauridos, forçados a atuar sob as condições mais adversas, e que, justamente por isso, tornam-se linha de frente na defesa do que ainda pode ser arrancado do esfacelamento. Em meio a salários indignos, metas sufocantes e políticas de controle, muitos seguem tensionando o que está dado, abrindo brechas, criando frestas. Não por vocação, mas por consciência. Porque sabem que a escola, mesmo capturada, constitui terreno de contradição.
Transformar um corredor em espaço de escuta, desviar uma aula para o debate que importa, desobedecer silenciosamente a lógica do controle, esses não são gestos de esperança ingênua, mas formas de resistência cotidiana. Onde há conflito, há política. E onde há política, há possibilidade. A escola é, hoje, ao mesmo tempo, aparato de controle e espaço de sobrevivência ideológica. Por isso, falar das escolas como “protoprisões” não é negá-las, é denunciá-las para reivindicá-las desde a contradição.
É afirmar que a juventude da classe trabalhadora não pode continuar sendo educada para o cansaço, para o silêncio, para o adestramento. É insistir que o tempo vivido na escola pode e deve ser tempo de mundo, de linguagem, de embate. Que a escola pública, mesmo sitiada, ainda é um campo de luta. E que nossa tarefa, enquanto ela existir, é tensionar seus muros por dentro, até que eles cedam.Parte inferior do formulário
Rick Afonso-Rocha é doutor em Letras: Linguagens e Representações (UESC), professor da rede pública de educação do Estado de Pernambuco. Advogado, anarquista e pesquisador independente.
[1] CALDEIRA, Teresa. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34, 2000.
[2] PEREIRA, Raquel de Padua. Produção cultural periférica e urbanização: uma abordagem a partir das representações artísticas teatrais da periferia de São Paulo (SP). Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, [S. l.], v. 27, n. 1, 2025. DOI: 10.22296/2317-1529.rbeur.202525. Disponível em: https://rbeur.anpur.org.br/rbeur/article/view/7702. Acesso em: 8 jul. 2025.
[3]FISHER, Mark. Não prestar para nada. Jacobina, 13 jan. 2022. Disponível em: https://jacobin.com.br/2022/01/nao-prestar-para-nada/. Acesso em: 9 jun. 2025.
[4] DUTRA, Paulo Fernando de Vasconcelos. Marcos históricos da educação integral no Brasil analisados a partir da experiência de Pernambuco 2004-2021. Tese (Doutorado em Educação), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2021.
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