Intermitências da Memória: O legado de Maio de 68
Fonte: Caros AmigosIntermitências da memória: o legado do “maio de 68” francês
Por Fabio Mascaro Querido
“O dom de atear ao passado a centelha da esperança pertence 
somente àquele historiador que está perpassado pela convicção de que 
também os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for 
vitorioso. E esse inimigo não tem cessado de vencer”. Walter Benjamin, 
“Teses sobre o conceito de história” (Tese VI), 1940.
Toda rememoração do passado carrega consigo, inevitavelmente, uma 
visão específica do presente, temporalidade na qual os sentidos do ontem
 e do amanhã são permanentemente interpelados, reconstruídos, 
redimensionados. É sempre do presente que interrogamos o passado, e por 
isso, o ocorrido nunca é apresentado “tal como ele propriamente foi”, 
mas sim à luz de um “agora” entendido como instante político por 
excelência. O passado, como o presente, está em constante “disputa”. A 
herança não é um objeto inerte, mas sim aquilo que dela farão os 
herdeiros. É nesse sentido que, como diria Walter Benjamin, o passado 
interpela criticamente o presente.
"Os debates em torno do legado do assim chamado “maio de 68” francês, que se proliferam a cada data comemorativa, refletem esta “constelação saturada de tensões” entre o passado e o presente, entre o que efetivamente foi e aquilo que, no presente, pensamos ou gostaríamos que tivesse sido" | 
Os debates em torno do legado do assim chamado “maio de 68” francês, 
que se proliferam a cada data comemorativa, refletem esta “constelação 
saturada de tensões” entre o passado e o presente, entre o que 
efetivamente foi e aquilo que, no presente, pensamos ou gostaríamos que 
tivesse sido. Este embate “representativo”, mais do que uma disputa 
meramente historiográfica, constitui uma expressão de perspectivas 
políticas divergentes (se não antagônicas). Deste ponto de vista, seria o
 caso de indagar: qual o significado histórico, político e cultural do 
imaginário de “maio de 68” hoje, 45 anos após a sua irrupção real? O que
 as lutas operárias e estudantis daquele período tem a nos dizer no 
mundo contemporâneo, quando a fusão entre vida e arte (projetada pelos 
surrealistas e reivindicada pelos jovens de 1968) foi canalizada pelos 
imperativos da sociedade da mercadoria?
Revolta
Para não poucos autores, alguns à esquerda do espectro político, Maio
 de 68 não foi senão o marco simbólico que removeu os últimos obstáculos
 à emergência da sociedade de consumo (mais tarde neoliberal), 
cimentando, desse modo, as bases ideológicas e culturais do 
pós-modernismo. Esta leitura estreita e unilateral, que não vê nos 
acontecimentos de 68 senão o estopim de uma revolta lúdica e efêmera, 
que prenunciaria por razões diversas o hedonismo pós-moderno, 
transformou-se na leitura “oficial” das inúmeras “comemorações” da data,
 como se, de fato, a “vitória” do Maio francês – se ela existiu - 
correspondesse à decisiva contribuição para o que, enfim, a sociedade se
 transformou: uma sociedade dominada pelos desígnios da mercadoria, cuja
 “modernidade” plena logrou eliminar quase definitivamente os entraves 
“tradicionais” (ético-morais) que bloqueavam o advento do sonhado mundo 
da liberdade mercantil. Tal leitura parece se confirmar à luz do fato de
 que parte significativa dos jovens protagonistas das lutas da época 
tornaram-se membros muito bem adaptados à ordem que naquele momento 
julgavam combater.
Memória
Daí as intermitências de uma memória que se transforma no tempo, e 
que responde a interesses específicos alojados no presente. Se não, como
 explicar que este período de lutas, no qual estalou (é preciso dizer) a
 mais massiva e mais longa greve geral da história, início de uma nova 
vaga de lutas operárias na Europa, seja transformado no ponto de partida
 simbólico de um paradigma societário caracterizado, entre outras 
coisas, pelo avanço inexorável da lógica mercantil que se alastra por 
todos os poros da vida social? Trata-se, sem dúvida, de uma inexorável 
amostra da capacidade do capitalismo “pós-moderno” de “integrar” 
demandas potencialmente subversivas, metamorfoseando-as em aspectos 
palatáveis à “diversidade” da sociedade das mercadorias. Mais difícil de
 explicar, porém, são as razões pelas quais muitos autores situados à 
esquerda no campo intelectual visualizam em Maio de 68 o início de uma 
decadência generalizada da política revolucionária, daí em diante 
gradativamente suplantada pela emergência fulminante dos “novos 
movimentos sociais”, apanágios práticos da diluição teórica pós-moderna.
"Sua rememoração constitui, portanto, hoje em dia, uma meditação sobre a derrota, mas sobre uma derrota que, ao ameaçar alterar o curso das coisas, legou ensinamentos decisivos às gerações posteriores, combustíveis utópicos que podem impulsionar os enfrentamentos atuais" | 
Se, ao contrário, na contramão das apropriações pós-modernas 
(paradoxalmente legitimadas por alguns guardiões da ortodoxia), se 
reconhece nos acontecimentos daquele período um momento importante da 
tradição de lutas dos oprimidos, em sentido anticapitalista, torna-se 
nítido que a eclosão de um individualismo sem individualidade e de um 
hedonismo sem prazer (avalizada pelos “novos filósofos” emergentes) não 
são o resultado de Maio de 68, e sim a consequência da sua derrota e do 
seu refluxo – para os quais contribuíram, vale dizer, as direções 
políticas e sindicais (PC e OS) hegemônicas no movimento operário. Sua 
rememoração constitui, portanto, hoje em dia, uma meditação sobre a 
derrota, mas sobre uma derrota que, ao ameaçar alterar o curso das 
coisas, legou ensinamentos decisivos às gerações posteriores, 
combustíveis utópicos que podem impulsionar os enfrentamentos atuais 
contra a transformação do mundo em uma grande mercadoria.
Resgate
Para os jovens e os operários combatentes de 1968, assim como para 
muitos dos movimentos sociais e políticos atuais, “o mundo não é uma 
mercadoria”. Para os oprimidos do presente, é este o Maio de 68 que deve
 ser resgatado e rememorado, o Maio de 68 contra o qual vociferou 
Nicolas Sarkosy na campanha eleitoral em 2007. A rememoração ativa deste
 passado recente, à diferença das “comemorações” conformistas, só pode 
ser realizada por aqueles que, no presente, dão seguimento às lutas e ao
 horizonte anticapitalista entreaberto em 68, isto é, por aqueles que 
anteveem no imperativo de “revolução total” que ali se manifestou 
(buscava-se, ao mesmo tempo, mudar a vida e transformar o mundo) um 
horizonte estratégico ainda atual e necessário. Estes sabem que, sem 
memória do passado, não há luta pelo futuro. E sabem também que a 
herança encontra-se ainda em disputa, constantemente ameaçada pela 
apropriação apaziguadora por parte daqueles para os quais o legado de 
maio de 68 constitui uma ameaça à continuidade de sua dominação.
Remomoração Revolucionária
De onde a necessidade – defendida por Walter Benjamin nas “teses 
sobre o conceito de história” – da rememoração revolucionária da 
“tradição dos oprimidos”, a fim de impedir que ela seja metamorfoseada, 
por assim dizer, “em instrumento da classe dominante”. “Em cada época”, 
diz Benjamin (tese VI), “é preciso tentar arrancar a transmissão da 
tradição ao conformismo que está na iminência de subjugá-la”. Como? 
“Escovando a história a contrapelo” (tese VII), quer dizer, 
visualizando-a do ponto de vista dos “vencidos”, daqueles que resistiram
 ao “cortejo triunfal” das classes dominantes de sua época. É sob esta 
ótica que acontecimentos como os que ocorreram em maio-junho de 1968, na
 França, constituem uma “iluminação profana” permanente para as lutas 
das classes subalternas a cada novo presente, quando olham para as lutas
 do passado buscando prefigurações críticas daquilo que visualizam para o
 futuro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário