SENHORA DAS DORES São sete. Sete luas no minguante, sete dobres compassados, sete irmandades contritas, sete lanternas acesas. Sete vísceras sangrando, sete andores florescidos, sete tochas reluzindo, sete hastes. Sete farpas. Sete cravos pontiagudos. Sete espinhos venenosos, Sete chagas, sete horrores: são sete punhais de prata ferindo o peito das Dores. O primeiro, é o meu desprezo pela dor do desvalido; o segundo, o meu orgulho, que me cega aos meus defeitos; o terceiro, o preconceito com que trato os mais humildes; o quarto, minha soberba em ver tudo ao meu feitio; o quinto, esta vaidade que dissimulo com jeito; o sexto, minha cegueira, minha impossibilidade de ver o mundo ao avesso do retrato que eu desenho; o sétimo, mais doloroso, é exigir das pessoas que sejam meu próprio espelho… Perdoa, Senhora, as chagas que, existindo, lhe causo. Mas como existir perdão se nem sequer me arrependo? Se nem estanquei o sangue que das chagas cai ao chão? Que pode aspirar aquele que lhe cravou sete facas, se ainda oculta mais sete no cavo de sua mão?
Um dia, passeando pela Gazeta de São João del Rei/MG encontrei este poema-oração maravilhoso. Frustrado fiquei porque não consegui descobrir o nome do autor. Sete é um número reconhecidamente misterioso: em Portugal há milhares de devotos da Virgem dos Sete Punhais; existe o Mistério dos Sete Punhais que é fonte de estudo de uma ordem secreta que se assemelha à maçonaria; no candomblé existe o Exu Sete Punhais assim como a Pomba Gira Sete Punhais; quando menino, eu me assustava com as histórias da Mulher das Sete Saias contadas por meu avô, aquela que tinha sete maridos e sete navalhas afiadas para cortá-los; e para ficar por aqui, as Sete Agonias de Jesus Cristo têm especial relevância para toda cristandade assim como as Sete Frases que proferiu pregado na cruz.
Estamos na semana pré-carnavalesca. Então é preciso orar e refletir para depois cair na folia. Eu desejo abordar esse místico número de forma mais leve: sete punhaladas de frevo. Por que punhaladas? Porque compositores de frevo são poetas que gostam e entendem muito de gente, de modo que frases musicais podem ferir apenas pelo dom de iludir que certos frevos-canções trazem, os quais se transformam em verdadeiras punhaladas (sem sangramento) nos corações daqueles que não se arrependeram de amar ao longo da estrada da vida.
O frevo liberta, faz a gente pular de tão feliz e ainda nos acena com aquela pequeníssima esperança de encontrar no meio do povo folião aquele amor do passado que o coração carrega em silêncio, mas ainda não se perdeu na poeira do tempo. Carnaval não é festa para casais ou grupos de amigos. É para quem quer se perder ou se achar. Não importa a idade do folião, o frevo embala a alma cativa de quem espera encontrar alguém especial na multidão. A quarta-feira de cinzas foi feita para os pecadores arrependidos, se bem que Chico Buarque tem um frevo cuja letra diz: "não existe pecado do lado debaixo do Equador". Então tá.
Pensando nisso, selecionei sete punhaladas de frevo que nem são cantados por essas ruas ingratas do Recife e Olinda que é por onde transito durante o carnaval. Mas esses frevos selecionados são muito, muito queridos por mim, uns mais lentos, outros mais apressados, uns com arranjos tradicionais e outros mais distantes disso. O que importa mesmo é que todos são frevos feitos para dançar e amar (deitado ou em pé). Então lá vai frevo, meu bem, e ele é todinho para você!
A 1ª punhalada-frevo, SEDUÇÃO, foi gravada pela saudosa Beth Carvalho em 1983, de autoria de Luiz Bandeira, que teve a 1ª gravação em 1959. O registro sonoro de Beth tem arranjos maravilhosos e bem pernambucanos e ela cantando frevo é o máximo!
A 2ª punhalada-frevo, PRO QUE DER E VIER, foi dada por Joanna, também em 1983, quando pediu a Sivuca para gravar o frevo de sua autoria e Paulinho Tapajós, gravado pelo paraibano naquele mesmo ano, que não só autorizou a nova gravação como repetiu nela os belos arranjos do LP original.
A 3ª punhalada-frevo foi desferida por Elba Ramalho, em A MULHER DO DIA, de 1979, que narra a emoção do compositor Carlos Fernando, em Olinda, o qual tendo dormido embriagado, despertou ao som dos clarins da troça de mesmo nome, ainda vestido de Nero, num sábado de carnaval, tendo ficando apaixonado pela boneca gigante que se casou em 1990 com o Homem da Meia-Noite e ambos ainda hoje puxam animados foliões ao som de orquestras de frevo.
A 4ª punhalada-frevo foi aplicada de forma quase imperceptível pelo cearense Ednardo, autor de MAIS UM FREVINHO DANADO, de 1974, que é um dos mais esquecidos pelos cantantes do ritmo, no que se constitui uma tremenda injustiça com o antigo membro do grupo “pessoal do Ceará” que desembarcou no Rio de Janeiro no início dos anos 70 para brilhar como se fosse uma estrela.
A 5ª punhalada-frevo tem a autoria assassina de Caetano Veloso até no título, DEIXA SANGRAR, gravado originalmente por Gal Costa e regravado de maneira insuperável por Roberta Sá em 2012. É um frevo espetacular que maltrata e recompensa ao mesmo tempo quem o ouve!
A 6ª punhalada-frevo foi lançada em 1981 por Nara Leão, BLOCO DO PRAZER, de Moraes Moreira e Fausto Nilo, que em ritmo de marcha lenta avisa para quem quiser ouvir: “não quero oito nem oitenta, eu quero o bloco do prazer”. A gravação de Nara é impecável e ainda teve o auxílio luxuoso da sanfona de Oswaldinho do Acordeon.
A 7ª e última punhalada-frevo tinha que ser do meu cantor de frevo preferido: Caetano Veloso. Aqui ele traz NOITES OLINDENSES, do saudoso Carlos Fernando, compositor e produtor desse gênero que, de 1979 a 1993, revolucionou o frevo-canção de Pernambuco. Faleceu em 2013, não sem antes sentir o amargo sabor do esquecimento em vida.
POR ABILIO NETO
Pernambucano, 70 anos, é memorialista e pesquisador musical, além de pequeno colecionador de discos. Seu arquivo contém algumas obras que se tornaram preciosas na música brasileira diante do mau gosto popular nessas duas primeiras décadas do século XXI. São frevos, sambas, maracatus, forrós, xotes, polcas, toadas, marchinhas, merengues e choros. Tem mais de 400 artigos escritos sobre música que foram publicados em sites da internet, ‘terreno’ que se notabiliza pela impermanência. Seus artigos provam que a História também se conta através da música.
Nenhum comentário:
Postar um comentário