sábado, 22 de agosto de 2020

Em Paris, novo livro sobre o ''profeta da paz'' - Vítima do ódio dos militares, Dom Helder Camara sofreu campanha de difamação para impedi-lo de receber o Nobel da Paz por quatro anos seguidos

"Por que os militares acumularam contra Dom Helder um ódio que decretou sua morte simbólica ao proibi-lo de dar entrevistas no Brasil, onde seu nome não podia sequer ser mencionado na imprensa ?
Porque, como um profeta da tradição bíblica, o arcebispo denunciava incessantemente no exterior os crimes da ditadura, a injustiça do sistema agrário brasileiro, do capitalismo predatório que destrói a natureza e massacra os seres humanos mais vulneráveis.
Mas, por outro lado, Dom Helder também pertencia à alta hierarquia sacerdotal da igreja católica que, no Vaticano, tinha conservadores que controlavam seus passos, nem sempre com aprovação, como conta o livro « Dom Helder Camara-Le chemin spirituel d’un prophète », de Ivanir Antônio Rampon, lançado este ano em Paris."


Créditos da foto: (Evelson de Freitas/Folhapress)

Dom Helder Camara foi um profeta que incomodou os poderosos de seu tempo, como os da tradição judaica.

No judaísmo, o profeta tinha a missão de denunciar os desvios do rei de Israel e do povo, apontar os caminhos da paz e da justiça. Como consequência, quase sempre se tornava persona non grata dos poderosos.

Foi assim, entre outros, com João Batista e com Jesus, o profeta de Nazaré.

Ainda hoje é assim. Os religiosos que pregam o cristianismo da libertação, que fez a opção pelos pobres e pela justiça social na América Latina (caminho adotado em Puebla e em Medellin), são perseguidos e, muitas vezes, assassinados.

Os poderosos não os pregam na cruz nem oferecem suas cabeças em bandejas, como fez Herodes com João Batista. Mas os barões do latifúndio, que se apropriam de terras indígenas ou expulsam camponeses de terras cultivadas e produtivas, pagam matadores de aluguel para assassinar esses profetas modernos que, como Dom Helder, praticam a “violência dos pacíficos » como ele reivindicava a luta dos que batalham pela justiça sem armas nas mãos.

Dom Pedro Casaldáliga escapou deste destino por um triz, mas em seu lugar morreu o padre João Bosco Burnier, assassinado por tiros que visavam Pedro.

Ninguém na década 1970 merecia mais o Prêmio Nobel da Paz do que Dom Helder Câmara – indicado por quatro anos seguidas (1970, 1971, 1972 e 1973) por pessoas e associações de diversos países.

Mas o « arcebispo dos favelados », como era conhecido, foi boicotado por uma campanha de difamação para influenciar a Noruega. A campanha era teleguiada de Brasília (governo Médici) e executada pelo então embaixador brasileiro em Oslo, Jaime Souza Gomes, entre outros agentes da ditadura.

Essa história sinistra de tempos sombrios foi restituída em livros e artigos de jornais. Eu a reconstituí detalhadamente em matéria que fiz no ano passado para a revista Carta Capital, quando Lula também foi indicado para o Nobel da Paz.

Enquanto o arcebispo de Olinda e Recife (1964-1985) era convidado para fazer palestras no mundo inteiro e recebido com todas as honras que merecia, o silêncio da imprensa brasileira era total nos jornais, censurados pela ditadura. Em algumas décadas de atividade internacional, Dom Helder fez 150 viagens a trinta países, sem contar a França, onde foi recebido em trinta e quatro cidades.

O « profeta da paz », como era conhecido o defensor do grito de indignação diante da injustiça, recebeu 40 títulos de doutor honoris causa e acumulava cerca de 80 convites por ano para palestras e debates no mundo inteiro. Em Paris, chegou a falar para auditórios com milhares de pessoas.

Um homem perigoso para a ditadura brasileira

Por que os militares acumularam contra Dom Helder um ódio que decretou sua morte simbólica ao proibi-lo de dar entrevistas no Brasil, onde seu nome não podia sequer ser mencionado na imprensa ?

Porque, como um profeta da tradição bíblica, o arcebispo denunciava incessantemente no exterior os crimes da ditadura, a injustiça do sistema agrário brasileiro, do capitalismo predatório que destrói a natureza e massacra os seres humanos mais vulneráveis.

Mas, por outro lado, Dom Helder também pertencia à alta hierarquia sacerdotal da igreja católica que, no Vaticano, tinha conservadores que controlavam seus passos, nem sempre com aprovação, como conta o livro « Dom Helder Camara-Le chemin spirituel d’un prophète », de Ivanir Antônio Rampon, lançado este ano em Paris.

Nesse clima de divisão e polarização do papel da igreja, não surpreende ninguém que desde o início do governo Nixon (1968-1974) houvesse um tal interesse da parte dos norte-americanos pelo trabalho social e pela importância política da Igreja Católica na América Latina que o presidente encomendou ao senador Nelson Rockefeller um estudo. Da viagem do americano pelo continente, resultou o « Relatório Rockefeller » que foi definitivo : os cristãos engajados na luta por justiça social eram ainda mais ameaçadores para a « estabilidade » do continente do que a esquerda.

O biógrafo francês de Dom Helder, José de Broucker, tradutor do livro recém-lançado de Rampon, deu a entrevista abaixo para a Carta de Paris de seu refúgio de verão. Ele é um verdadeiro especialista da vida e da obra do arcebispo brasileiro, de quem foi grande amigo e sobre quem escreveu vários livros e artigos.

Amigo dos papas

Em João XXIII e Paulo VI, dom Helder teve dois grandes admiradores que apoiavam sua ação internacional « pois ela seguia o espírito do Concílio Vaticano II », como ressalta no prefácio o arcebispo emérito de Lille, Gérard Defois.

De João Paulo II, o arcebispo de Olinda e Recife recebeu garantia de amizade e admiração, mesmo se suas vidas não apontassem para a mesma visão do mundo. Dom Helder sempre deu ênfase à construção de um mundo mais justo e, para isso, agiu incansavelmente em suas nove décadas de vida (1909-1999). João Paulo II, em seu anticomunismo militante, fez o que pôde para destruir o trabalho dos teólogos da libertação, inclusive nomeando um sucessor para Dom Helder que tratou de descontruir sua obra em favor dos oprimidos, como o livro ressalta.

O « bispo vermelho »

Além de pastor de ovelhas, Dom Helder era um globe trotter. Nas viagens por todo o mundo denunciava os crimes de tortura, desaparecimentos de opositores e execuções sumárias pelo esquadrão da morte. Os generais da ditadura o detestavam.

Por isso, foi um alvo preferencial do regime, que o condenou à morte simbólica ao proibir que seu nome fosse sequer mencionado em jornais, rádios ou TV. Depois do AI-5, que impôs a censura à imprensa, os militares determinaram que nem uma linha podia ser escrita sobre o que dom Helder dizia ou fazia no exterior, onde falava para multidões de estudantes e intelectuais ávidos por informações além da propaganda oficial.

Sem conseguir contê-lo no exterior, a ditadura e a imprensa passaram a acusá-lo de comunista, tratando-o de « bispo vermelho ». Ao relatar na França as repetidas frases dos generais que negavam a tortura nas prisões brasileiras ele lançou o desafio : que deixassem a Cruz Vermelha Internacional visitar as prisões para investigar o assunto. Obviamente, seu apelo nunca foi atendido.

Naqueles anos de chumbo, ao chegar ao centro de tortura do quartel da Rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro, o prisioneiro político Flávio Tavares viu um enorme cartaz com uma foto do arcebispo de Olinda e Recife, ao lado das fotos de Carlos Marighela e Carlos Lamarca. O título do cartaz era : « Líderes do terrorismo comunista »

Em suas viagens à Europa, Dom Helder não se cansou de denunciar os crimes do regime dos generais para milhares de pessoas, como em Paris, em 1970, no Palais des Sports, quando falou a 14 mil estudantes, professores e intelectuais.

No Brasil, no mesmo ano, os jornais « O Estado de São Paulo », « O Globo » e a revista « O Cruzeiro » promoviam campanha difamatória contra ele, indicado pela primeira vez ao Prêmio Nobel da Paz.

Tentando impedir que recebesse o Prêmio, a ditadura montou dossiês contra Dom Helder, que foi sordidamente atacado junto ao Comitê Nobel. A Comissão da Memória e Verdade Dom Helder Camara, de Pernambuco, levantou toda a história dos bastidores do boicote e da agitação diplomática e política para impedir que o Nobel da Paz fosse atribuído a Dom Helder por quatro anos seguidos (de 1970 a 1974).

A Comissão redigiu o dossiê « Prêmio Nobel da Paz : a atuação da ditadura militar brasileira contra a indicação de Dom Helder Camara ». No documento de 229 páginas há depoimentos de diplomatas, ofícios e telegramas que provam a ação do governo durante a ditadura para impedir que o arcebispo de Olinda e Recife recebesse o Nobel da Paz nos anos 1970.

Para convencer os integrantes da Fundação Nobel e a opinião pública europeia de que o prêmio traria « um desconforto ao governo brasileiro », os diplomatas trabalharam com afinco. Em um dos ofícios, o embaixador brasileiro em Oslo (capital do Nobel), Jayme de Souza Gomes, admite a existência de um « programa de ação contra a candidatura do arcebispo de Olinda e Recife ».

Os generais chegaram a ameaçar empresários a congelar lucros de empresas nórdicas se o Nobel fosse atribuído a Dom Helder. O ex-embaixador Vasco Maris, então chefe do Departamento Cultural do Itamaraty, contou em sua biografia que convocou os embaixadores dos países escandinavos (Noruega, Suécia, Dinamarca e Finlândia) para comunicar o desconforto do governo brasileiro.

Ao receber a resposta dos quatro países de que eles não interferiam em temas ligados ao Nobel, o governo resolveu apertar um pouco mais as pressões. Mariz conta em sua biografia « Nos bastidores da diplomacia : memórias diplomáticas » (2013) uma história que escutara de Alarico Silveira, chefe do Serviço de Informações do Itamaraty.

Um general teria convocado os presidentes e diretores de empresas escandinavas no Brasil como a Volvo, Scania, Vabis, Ericsson, Facit e Nokia para que interviessem no assunto. Ao ouvir que seus interlocutores não podiam interferir, o general deu um murro na mesa e anunciou : « Se os senhores não intervierem e Dom Helder receber o Prêmio Nobel da Paz, suas empresas no Brasil não poderão remeter um centavo de lucros para suas matrizes ».

Na origem da CNBB

José de Broucker escreveu o prefácio do livro « Journal d’un évêque prophétique-Lettres interconciliares -1964-1965 » (Bayard, 2016) de cartas escritas por Dom Helder Câmara durante o Concílio Vaticano II.

« Foi no período, 1964-1965 que Dom Helder iniciou, em Recife, sua opção pelos pobres e pela reforma da Igreja, desejada por João XXIII e iniciada no Concílio Vaticano II. As circunstâncias lhe deram estatura e audiência internacional, por sua coragem na defesa dos direitos humanos, sem temer as consequências. E ele pagou um preço alto », diz José de Broucker.

De Broucker ressalta o maravilhoso místico e cristão exemplar que foi o arcebispo de Olinda e Recife, um dos criadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e um dos inspiradores da teologia da libertação.

Dom Helder, que se aposentou como cardeal em 1985, já com a democracia de volta ao Brasil, viveu ainda 15 anos « reconhecido e honrado pela sociedade civil e política mas humilhado pelas autoridades eclesiásticas, o que não afetava sua humidade tranquila e alegre », escreve De Broucker em outro livro sobre seu amigo.

Em 1970, Dom Helder foi preterido para o Nobel da Paz por um desconhecido biólogo americano, Norman Borlaug, pesquisador de cereais para a Fundação Rockefeller. Em 1971, foi o chanceler alemão Willy Brandt o escolhido. Em 1972, o Nobel da Paz não foi atribuído e em 1973 o secretário de Estado Henry Kissinger dividiu o prêmio com o norte-vietnamita Le Duc Tho, pelas negociações de paz para o Vietnã.

Desde 1901, o Nobel da Paz premiou 21 norte-americanos, onze britânicos e nove franceses. O norte-vietnamita Le Duc Tho, negociador dos acordos de Paris que puseram fim à guerra do Vietnã, recusou o prêmio, em 1973, alegando que a paz ainda não tinha sido restabelecida.

Entrevista com José de Broucker :

Leneide Duarte-Plon : Por que Dom Helder Camara interessou ao senhor como personagem ? Como e quando o senhor o conheceu ?

José de Broucker : Nos anos 1960, eu era redator-chefe da revista bimensal Informations Catholiques Internationales (ICI). Dom Helder era desde antes do Concílio Vaticano II (1062-1965) um bispo fora do comum, sempre um assunto da revista. Nosso primeiro encontro foi em Roma, durante o Concílio do qual ele era o comentador preferido da mídia. Ele me recebeu alguns dias em Recife logo depois de nomeado arcebispo, em 1964. A revista tinha uma versão em espanhol, editada no México. Eu tinha programado uma viagem em toda a América Latina para conhecer melhor nossos correspondentes. Quis terminar com o « Arcebispo das favelas » e fui a Recife. O golpe de Estado acabara de acontecer.

Em 1968, as edições Fayard me pediram uma reportagem sobre a celebridade internacional que era Dom Helder. Ele me recebeu novamente em Recife. Dessa conversa surgiu o livro « Dom Helder Camara. A violência de um pacífico».

Em 1976, as edições du Seuil me pediram uma biografia no estilo de perguntas e respostas. Resultou o livro Les Conversions d’un évêque.

Sua confiança me enchia de orgulho mas o que mais me interessava era o mistério de sua personalidade na qual coabitavam dons ultra-celestes como uma compromissos militantes ultra-terrestres. Somente depois de sua morte, lendo e traduzindo seus escritos inéditos compreendi como de noite, nas suas vigílias, ele fazia a unidade de sua vida mística e de sua vida pública. O livro de Ivanir Rampon, que não conheceu Dom Helder pessoalmente mas o leu atentamente, esclarece formidavelmente esse modelo extraordinário de humanismo cristão. Por isso, eu quis traduzi-lo do português.

LDP : A ditadura proibiu Dom Helder de falar no Brasil e os jornais brasileiros não podiam noticiar seus encontros e conferências no estrangeiro nos quais ele denunciava as torturas do regime. Ele sofria com isso ?

José de Broucker : Ele não era insensível às contrariedades, críticas, delações, acusações. Ele aprendeu a fazer de toda humilhação um convite a dar um passo no caminho da humildade. Se ele sofria era pelas causas que defendia. Quando o reduziram à invisibilidade no Brasil, ele respondia presente aos convites de países democráticos.

LDP : Por que o « bispo vermelho » fazia medo aos militares brasileiros ? Eles pensavam realmente que ele era comunista ?

José de Broucker : Porque a ideologia da segurança nacional qualificava de comunista qualquer crítica da ordem estabelecida, que Dom Helder denunciava como uma desordem. Pode-se compreender, pois a conscientização das « massas » para que elas se tornem « povos » pode ser considerada como perigosa e subversiva. Um Fidel Castro no continente já era bastante e para eles, era até demais.

LDP : Dom Helder era um poeta, um místico e um homem engajado na luta contra a pobreza. Por que sua herança foi quase apagada no Brasil?

José de Broucker : Não sei, não conheço bem a história da pós-ditadura. Penso que pelo menos uma parte da herança de Dom Helder foi reforçada por Lula. Os Foruns Sociais Mundiais partiram do Brasil, de Porto Alegre. A herança de Dom Helder me parece mais viva na Igreja do que na sociedade civil e política.

LDP : O papa Paulo VI foi próximo de Dom Helder desde o tempo em que era apenas o cardeal Montini. Esta amizade protegeu o arcebispo de Olinda e Recife das perseguições do regime brasileiro ?

José de Broucker : Certamente que sim. Também o papa João Paulo II homenageou-o publicamente em Recife dizendo: “Dom Helder, irmão dos pobres e meu irmão ! » Mas Dom Helder, que poderia ter sido um mártir, sabia-se protegido por sua celebridade mundial. Mas ele sabia também que ela não protegeria seus próximos, entre os quais pelo menos um foi assassinado : o padre Henrique Pereira. E ele era atingido também indiretamente.

LDP : O padre Henrique, auxiliar direto de Dom Helder Camara, foi assassinado depois de ter sido sequestrado, torturado e mutilado pela milícia « Comando de Caça aos Comunistas ». Dom Helder lhe falou sobre este terrível crime ?

José de Broucker : Sem dúvida. Mas ele escreveu também sobre o crime nas suas Circulares.

LDP : A biografia de Dom Helder que o senhor escreveu com ele saiu em português no Brasil ?

José de Broucker : Não. Quando lhe enviei as provas em francês, antes da publicação, ele não quis ler. Era um período de grande tensão com os militares. Ele temia que pensassem que ele ajudava a preparar sua estátua. Pediu a seu velho e grande amigo, o escritor e jornalista Alceu Amoroso Lima, que relesse as provas com atenção. O escritor sugeriu algumas modificações que aceitei de bom grado. O único pedido de Dom Helder foi que o livro não fosse publicado no Brasil. Mas ele gostou muito do título : “As conversões de um bispo”.

Leneide Duarte-Plon é co-autora, com Clarisse Meireles, de « Um homem torturado, nos passos de frei Tito de Alencar » (Editora Civilização Brasileira, 2014). Em 2016, pela mesma editora, a autora lançou « A tortura como arma de guerra-Da Argélia ao Brasil : Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado ». Ambos foram finalistas do Prêmio Jabuti. O segundo foi também finalista do Prêmio Biblioteca Nacional.

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