sábado, 15 de agosto de 2020

Esquerda volver. Recue algumas casas para aprender sobre comunicação digital

Orlando Calheiros
@AnarcoFino
2016, lembro bem, estava indo dar aula na PUC quando o ônibus quebrou no meio da Av. Brasil. No ônibus, estavam pessoas que, como eu, se deslocavam dos bairros da Zona Oeste para a região central e sul para trabalhar. Rapidamente se formou um grito de "a culpa é da Dilma".

·A tendência não era regional, amigos de outras regiões, e até de outros estados relatavam algo semelhante. Eu mesmo constatei essa associação quando viajava pelo Sudeste do Pará. Em São Domingos do Araguaia o nome da Dilma era lembrado para reclamar do preço da gasolina.
@AnarcoFino
·Mais uma vez, reitero, não estou aqui falando dos mentecaptos que utilizavam aquele adesivo machista (para dizer o mínimo) em seus SUV. Estou falando de gente que contava moeda para encher o tanque de uma moto que deveria ser reciclada como sucata.
Orlando Calheiros
@AnarcoFino
·Enquanto na internet fingíamos que o antipetismo era um movimento "coxinha", restrito a uma elite branca ressentida, o imaginário popular, geral, era infectado com essa relação direta: o infortúnio era culpa da presidenta.
Orlando Calheiros
Na época, quando falava sobre isso escutava, inclusive de políticos, a repisada tese - um tanto classista - de que "brasileiro é assim mesmo, não sabe como o estado funciona e culpa o presidente por tudo."
Será mesmo?
Bem, entre 2014 e 2016 os "Grupos de bairro", de "igreja", de "academia" (tudo virava grupo no zap e página no facebook) foram se tornando cada vez mais comuns. Ali os infortúnios também eram associados ao cosmos da esquerda, não apenas ao "presidente".
Orlando Calheiros
@AnarcoFino
O grupo de bairro anuncia um assalto na região ...  rapidamente a questão se torna "isso acontece pois o povo do direito dos manos não deixa a PM trabalhar". No grupo da igreja fala sobre como Deus criou a vida... "você sabia que as feministas querem tornar o aborto obrigatório"
Orlando Calheiros
@AnarcoFino
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Muitos dessas discussões, inclusive, se utilizavam do voluntarismo de alguns militantes virtuais para consolidar uma imagem negativa das esquerdas. Lembrem, época dos "textões", sempre tinha um(a) que escrevia algum estapafúrdio. Essa pessoa era replicada e virava o "padrão".
Essa tática, inclusive, repetia a tática de diversos youtubers da direita americana (e aqui replicada por figuras como o Mamãe Falei), e a prática segue por meio daqueles perfis "ódio d@ bem".
Orlando Calheiros
@AnarcoFino
Existia ali todo um esforço comunicativo (e não apenas no Brasil) interessado em estabelecer uma ligação direta entre o infortúnio e os elementos à esquerda. A presidência era um destes elementos. Um esforço que se desdobrava em um verdadeiro ecossistema, canais, grupos...
Orlando Calheiros
@AnarcoFino
·Corta para o presente. A última pesquisa de avaliação do presidente mostra que ele vem sendo responsabilizado pelo auxílio emergencial e nem tanto pelas mais de cem mil mortes na pandemia (onde ele tem sim uma responsabilidade direta). Como isso é possível?
Orlando Calheiros
@AnarcoFino
·Se culpar o presidente fosse um "impeto natural" da sociedade brasileira, nesse momento, Bolsonaro não teria 2% de aprovação. A ligação direta entre o infortúnio (ou a fortuna) e a presidência (ou determinada ideologia) é - como tudo - o resultado de uma mediação.
Orlando Calheiros
@AnarcoFino
·Estes dias eu falava sobre a perda de poder aquisitivo da população brasileira e a decadência da classe média. Muitos disseram que isso seria bom para as esquerdas, pois as pessoas "acordariam". Apostam na emergência natural de uma "consciência de classe" por meio da penúria.
Orlando Calheiros
@AnarcoFino
·Ignorando, assim, o ecossistema informacional que atualmente media a própria experiência do real. Com efeito, o real (o ônibus quebrado) só existe enquanto experiência e, hoje, boa parte dessa experiência é mediada por esse ecossistema, que não está do nosso lado.

Orlando Calheiros
@AnarcoFino
Desde 2014 eu venho acompanhando a organização e estruturação da máquina de propaganda da Nova Direita nas redes (como digo, vai muito além do bolsonarismo), e um dos seus elementos cruciais foi ser capaz de "traduzir" o abstrato em cotidiano.
Orlando Calheiros
@AnarcoFino
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@AnarcoFino
Traduções enviesadas, naturalmente. Mas eles foram - e continuam - capazes de fazer algo que, parece, desaprendemos: estabelecem conexões entre temas que soariam abstratos para a maioria da população e transformam em uma mensagem sobre como aquilo (supostamente) os afeta.
Orlando Calheiros
@AnarcoFino
·Esse é um elemento crucial de boa parte das fake news (por isso elas surfam no desejo). Por exemplo, uma discussão "abstrata" sobre "gênero, sexualidade e cidadania" se torna um "kit gay nas escolas". Em 2016 esse tipo de propaganda foi crucial para minar o apoio popular de Dilma
Orlando Calheiros
@AnarcoFino
Costumamos rir das placas das pessoas que pediam o impeachment pois gostariam de voltar a ir para a Disney. É imbecil, mas é um sintoma dessa propaganda. Mostra como a propaganda do outro lado transformou a "crise" em um problema do cotidiano daqueles indivíduos.
Orlando Calheiros
@AnarcoFino
E, mais uma vez, a eficácia desse tipo de comunicação depende de uma rede de difusão. Disparos, bots, nada disso adiantaria se não existissem pessoas, redes, comprometidas - ainda que não intencionalmente - com a sua difusão.
Orlando Calheiros
@AnarcoFino
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14 de ago
Pois quando você tem uma mensagem que cativa, você transforma o receptor em multiplicador. Por isso eu insisto tanto que não é possível falar dessa máquina sem falar de redes de parentesco e de como ela replica uma hierarquia da sociedade.
Orlando Calheiros
@AnarcoFino
·14 de ago
O Bolsonarismo é um fenômeno que começa de cima para baixo na pirâmide social. Não foram os mais pobres que elegeram Jair Bolsonaro - como alguns ainda insistem: o bolsonarismo só agora vai se tornando "popular".
Orlando Calheiros
@AnarcoFino
·Mais uma vez, ele segue apostando em uma propaganda apostando numa propaganda que opera essa conexão direta (e enviesada) do abstrato com o prático. O Jair, ele próprio, é um pastiche da própria máquina (lembram dele falando dos taxímetros?).
Orlando Calheiros
@AnarcoFino
·Mas a máquina é muito mais eficaz que o próprio, muito mais. Enquanto isso, a esquerda parece cada vez  mais comprometida com uma estética ensimesmada, com bordões que não comunicam, com meios e estratégias inadequadas (cada vez mais) de comunicação.
Orlando Calheiros
@AnarcoFino

A gente fala isso e o pessoal se dói, mas é fundamental aceitar a nossa derrota no campo da comunicação. Fundamental para parar, pensar e reestruturar. Não é uma questão de autocrítica, é questão de reposicionamento tático. Urgente!
Orlando Calheiros

@AnarcoFino
Alguns pontos fundamentais da minha thread que alguns estão ignorando.
(1) Eu não acho que ascensão da direita é culpa da esquerda. Não sou cristão, não trabalhamos com esse conceito aqui.
(2) Não ignoro em absoluto que se trata de uma máquina azeitada com dinheiro.
@Arthursgf
Cara, ontem fui procurar um vídeo no YouTube que fosse "o que é MST?" Para enviar para uma pessoa e não achei nenhum que fosse naquele estilo curto, didático e com uma produção ok. A maioria são aulas chatas, entrevistas ou longos demais
(3) Não ignoro em absoluto que a mensagem se propaga por meio do domínio de igrejas, uso de bots, etc... inclusive, falo explicitamente disso quando falo que é necessário, justamente, compreender os grupos por onde a mensagem circula, antropologicamente falando.
(4) Quanto falo sobre a comunicação das esquerda, e sobre a necessidade de se criar uma tática de ocupação das redes não é replicando o modelo bolsonarista - não temos pessoas, capilaridade e nem dinheiro para isso. É mirando numa tática de guerrilha.
ze marcelo moraes
@zemarcelomoraes
Só queria saber como isso seria feito. Perdendo o preconceito com canais como o Tik Tok? Tentando chegar numa galera que não se importa com política mas tem sentido o efeito do http://liberalismo.na carne? Talvez sem os velhos jargões de sempre?
Orlando Calheiros
@AnarcoFino
Comecei a participar de atividades em escolas de ensino médio e fundamental, falava sobre causa indígena. E ao fim das palestras os alunos me pediam dicas de material sobre o assunto no youtube e afins e eu não tinha nada para oferecer.

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