domingo, 6 de fevereiro de 2022

O colapso da esquerda à esquerda em Portugal (por Boaventura de Sousa Santos).

Com direito a réplica e link de entrevista com um representante do Bloco de Esquerda.

O Partido Comunista que tinha 12 deputados no parlamento passa a ter metade e o Bloco de Esquerda que tinha 19 deputados passa a ter cinco

Boaventura de Sousa Santos (*)

Em Portugal, a esquerda à esquerda é constituída pelos partidos à esquerda do Partido Socialista (PS), ou seja, o Partido Comunista (PCP) e o Bloco de Esquerda (BE). Nas eleições do passado dia 30 de Janeiro, o PS ganhou as eleições com maioria absoluta. Portugal será a partir de agora o único país europeu com um governo de maioria absoluta de um partido de esquerda, o Partido Socialista. Os dois partidos à sua esquerda tiveram os piores resultados de sempre. O PCP que tinha doze deputados no parlamento passa a ter metade e o BE que tinha dezenove deputados passa a ter cinco. O BE passa de terceira força política para quinta e o PCP, de quarta para sexta. As posições destes partidos passaram a ser ocupadas por forças de ultra-direita, uma de inspiração fascista, (Chega), agora terceira força política, da família do Vox e da extrema-direita europeia e mundial, e uma de recorte hiper-neoliberal, darwinismo social puro e duro, ou seja, sobrevivência do mais forte (Iniciativa Liberal), agora quarta força política. Os resultados eleitorais mostram que a esquerda à esquerda do PS perdeu a oportunidade histórica que granjeou depois de 2015 ao construir uma solução de governo de esquerda que ficou conhecida por geringonça (PS, BE, PCP), uma solução que travou a austeridade da imposta pela solução neoliberal da crise financeira de 2008 e lançou o país numa recuperação económica e social modesta mas consistente. Esta solução começou a precarizar-se em 2020 e colapsou em finais de 2021 com a rejeição do orçamento apresentado pelo governo. Foi isso que levou às eleições antecipadas de 30 de Janeiro.

Levará tempo até que estes partidos de esquerda tenham outra oportunidade e oxalá que então se lembrem dos desaires anteriores e aprendam a não os repetir. Serão certamente outros líderes e é de esperar que sejam também outras as políticas. A análise mais aprofundada dos resultados terá de vir depois. Por agora, podemo-nos ficar pelo mais evidente. É preciso distinguir entre o BE e o PCP. Os dois partidos têm um passado remoto comum, a fratura do movimento operário no início do século XX entre socialistas e comunistas. O PCP pertence à facção comunista e o BE, às divergências que ocorreram posteriormente no seio desta facção em resultado da evolução da Revolução Russa de 1917. O que une os dois partidos e é mais relevante para entender as causas profundas do seu desaire nestas eleições é que para ambos o PS é, no fundo, um partido de direita, uma direita que se disfarça de esquerda, mas que verdadeiramente não o é. Esquerda verdadeira são eles. Os seus dirigentes não o dizem, mas pensam-no. Não imaginam considerar a vitória do PS nestas eleições como uma vitória de esquerda.

O PCP tem razões históricas para esta atitude, pois os comunistas e a sua base privilegiada (o movimento operário) foram muitas vezes vítimas das políticas socialistas e, em parte por isso, esta atitude anti-socialista é largamente partilhada entre dirigentes, militantes e simpatizantes. No caso do BE a história é mais ambígua, tal partilha não existe nos mesmos termos e isso foi evidente desde a fundação do partido. Ambos os partidos têm uma tradição de pensamento vanguardista. Quando a teoria colapsa ante a realidade (por exemplo, colapso eleitoral) a culpa é da realidade, nunca da teoria. O patético discurso de Catarina Martins na noite das eleições foi prova cabal disso. E lembremos que, em 2011, o mesmo desprezo pela realidade levou o BE a chumbar o Plano de Estabilidade e Crescimento do governo socialista (José Sócrates), abrindo as portas para a direita mais anti-social que o país já conheceu. Desta vez, é mérito incondicional do PS de António Costa ter evitado a emergência de uma geringonça de direita. Mesmo assim, a porta para a extrema direita ficou mais que entreaberta.

No contexto português, a queda do PCP é estrutural porque está ligada ao declínio dos sindicatos, a base da implantação social do partido. O PCP é um dos únicos partidos comunistas europeus que não se renovou depois da queda do muro de Berlim e por isso ficou refém da evolução da sua base social organizada, os sindicatos. O declínio destes arrasta o declínio do partido. A não renovação do PCP foi, aliás, uma das razões da emergência e do êxito do BE. A tragédia do BE tem sido a de, em vez de acentuar a sua diferença, deixar que ela se vá diluindo. Nestas eleições, ninguém notou qualquer diferença relevante entre o discurso bloquista e o comunista. Mas a queda do BE explica-se pela acumulação de outros erros nos últimos anos.

A pandemia conferiu uma nova dimensão à fragilidade humana, durou o suficiente para não ser considerada um acidente menor e atingiu particularmente as populações envelhecidas, sobretudo as habituadas a um mínimo de protecção social que, de repente, pareceu precioso, não por ser satisfatório, mas por existir apesar das deficiências. Aumentou exponencialmente o desequilíbrio entre o medo e a esperança. Este desequilíbrio a favor do medo criou duas emoções colectivas distintas: o temor da precariedade acrescida e o desespero vivido como ressentimento. A primeira emoção alimentou o desejo da estabilidade e foi captada quase totalmente pelo PS. A segunda emoção alimentou o desejo do autoritarismo necessário para partir a loiça e foi captado pela ultradireita sob duas formas, o autoritarismo do Estado que, em Portugal, equivale ao saudosismo salazarista (Chega) ou o autoritarismo do capital e do darwinismo social, ou seja, a sobrevivência do mais forte (IL). Nestas circunstâncias é evidente que o BE só podia estar do lado da estabilidade para a poder fortalecer e qualificar. Tal como fez brilhantemente o Livre. Em vez disso, jogou tudo na aventura de uma terceira emoção colectiva para a qual não havia base social.

O BE não entendeu os sinais do seu eleitorado porque o seu pensamento vanguardista não lhe permitiu descer até onde os cidadãos discutem, nos seus próprios termos, os seus medos e as suas esperanças. Não os escutou e se algum impacto teve foi o de os fazer suspeitar que o seu reforço eleitoral significaria mais instabilidade. A dirigente bloquista passou a primeira metade da campanha a justificar a decisão da rejeição do Orçamento e a segunda metade a parecer querer pedir desculpa por tê-lo feito. Que credibilidade pode ter tal dirigente? Acresce que se o BE tivesse aprovado o OE, este poderia ter sido melhorado na especialidade e em boa parte graças às propostas tecnicamente competentes do BE. Em vez disso acabou por objectivamente contribuir para eventualmente virmos a ter um OE menos bom do que aquele que teríamos se não tivesse havido eleições. Acresce que, ao auto-infligir-se esta derrota, deixou o PS solto para ser menos de esquerda do que que gostaríamos que fosse. O partido que consegue dar simultaneamente dois tiros nos dois pés só por milagre não cairia.

(*) Diretor Emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Desventuras da errância política

Em Novembro, Boaventura Sousa Santos reconhecia, no jornal espanhol Público, que “os socialistas tão pouco quiseram negociar com o Bloco”, que “quando estão sós têm tendência a ir para a direita”, e que desejava que não tivessem maioria absoluta, porque, como dizia o Bloco, “o PS vira muito”. Pelos vistos não é só o PS.

3 de Fevereiro, 2022 - 15:25hFernando Rosas

No Público do passado dia 1, Boaventura Sousa Santos (BSS) escreveu um afogueado artigo de crítica à esquerda e ao Bloco de Esquerda, em particular, que merece resposta. Faço-o obviamente em meu nome pessoal, pois não tenho qualquer função dirigente no Bloco de Esquerda, nem mandato para a sua representação.

Desde logo, convirá relativizar essa legitimidade que, para o efeito, BSS se autoconfere por ser (exceto em 2011) votante desde sempre no Bloco de Esquerda. A coisa é em si mesma irrelevante, mas não é verdadeira. Não votou, ficamos a saber pelo próprio, em 2011, quando preferiu o PEC4 do governo Sócrates. Mas esqueceu-se de que também não votou em 2015 (na antecâmara da “geringonça”), quando foi mandatário do Livre. O benefício para este foi escasso: obteve 0,59% dos votos e BSS seguramente não se lembra disso. E de pedir a cabeça do líder.

Do presente artigo, culminando uma série de catilinárias antibloquistas durante toda a campanha eleitoral, retenho três ideias principais.

A primeira é que a “tragédia” do Bloco de Esquerda, para BSS, é ter reservas em relação ao “socialismo” do PS e não ir a reboque das suas prioridades em momentos cruciais, como o PEC4 de Sócrates, em 2011, ou a votação do Orçamento do Estado para 2022. É pena BSS não informar os leitores do que era o PEC4 de Sócrates em 2011: privatização da TAP, EDP, REN, CTT, lei das rendas (o que veio a ser a Lei Cristas), redução dos salários e pensões, alteração das leis laborais, facilitação dos despedimentos. Como à época esclareceu António Vitorino, o PEC4 era em 95% igual ao memorando da troika. Curiosamente, o BSS que se insurge contra o Bloco de Esquerda não ter dado o voto nem a este programa de regressão social e económica que depois o governo Passos/Portas aplicou, nem ao Orçamento para 2022, é o mesmo que no seu livro Pneumatóforo, de 2018, alertava o governo do PS para “algumas opções que implicam cedências graves aos interesses que normalmente são defendidos pela direita. Por exemplo, no domínio do direito do trabalho e da saúde”, acrescentando premonitoriamente que “tudo leva a crer que o teste à vontade real em garantir a sustentabilidade da unidade das esquerdas está no que for decidido nestas áreas [trabalho e saúde] no futuro próximo” (BSS 2018, p. 437). Precisamente os pontos que levaram o Bloco de Esquerda a votar contra o Orçamento em 2021.

Mesmo quanto à votação do OE de 2022, cuja oposição por parte do Bloco de Esquerda Boaventura considera hoje um grave “desprezo pela realidade”, a sua posição teve variantes surpreendentes: entrevistado em 5 de Novembro passado pelo jornal espanhol Público, reconhecia que “os socialistas tão-pouco quiseram negociar com o Bloco”, que prepararam esta viragem dado que “votaram mais vezes no último ano com a direita do que com as esquerdas porque, como se viu também em Espanha, quando estão sós têm tendência a ir para a direita” e, por isso, desejava, com vista às eleições, que “os socialistas não tenham maioria absoluta porque, como diz o Bloco, o PS vira muito”. Pelos vistos não é só o PS.

A segunda ideia refere a incapacidade do Bloco de Esquerda “descer onde os cidadãos discutem” e perceber que o ambiente de pandemia, pelo medo, pelo desespero, pelo ressentimento, alimentou o “desejo de estabilidade” que o PS captou. O Bloco de Esquerda, afirma Boaventura, haveria de “estar do lado da estabilidade” na questão do orçamento. Suponho que a omnisciência de BSS o dispensou da tal “descida” aos cidadãos, senão saberia que estar do lado da realidade e dos cidadãos na questão orçamental, e não só, por vezes implica desafiar a estabilidade insalubre do poder estabelecido e dos sentimentos que a sua ideologia alimenta. Neste caso, isso só podia ser para a esquerda opor-se à continuação da legislação laboral infame da troika, à manutenção das graves carências que colocam em risco o SNS face à ofensiva privativista, ou à escassez dos salários e das pensões. Só podia ser, por outro lado, lutar contra a maioria absoluta do PS construída sobre o ataque à esquerda e a mentira do “voto útil”, destinados à perpetuação do neorrotativismo centrista e das suas políticas regressivas. Foi esse propósito de perpetuação que efetivamente abriu o passo ao crescimento da extrema-direita. E, assim, temos o país novamente sob a tutela exclusiva e absoluta do partido do governo e com um parlamento praticamente expropriado da sua eficácia fiscalizadora, isto é, transformado quando muito num órgão de protesto. Nisto reside, para BSS, o “mérito incondicional do PS de António Costa”.

Finalmente, a terceira ideia: Boaventura acha que Catarina Martins se deve demitir. Está naturalmente no seu direito. O que não parece aceitável é que, para o expressar, use com evidente intencionalidade a frase decalcada do desafio de Humberto Delgado a Salazar em 1958. É uma provocação injusta e gratuita contra a mulher militante de quem se pode discordar, mas que alguém como o BSS não pode insultar sem ele próprio cair no descrédito. Tanto mais que ainda em novembro de 2021, na referida entrevista ao Público espanhol, BSS afirmava “que o Bloco está liderado por mulheres excelentes” e até achava que Mariana Mortágua “deveria ser ministra das Finanças”…

Na luta política, de tanta errância, tropeça-se frequentemente na incoerência ou no desnorte. Daí à irrelevância é um passo. Desejo sinceramente que Boaventura Sousa Santos o saiba evitar.

Artigo publicado no jornal “Público” de 3 de fevereiro de 2022

Fernando Rosas

Historiador. Professor emérito da Universidade Nova de Lisboa. Fundador do Bloco de Esquerda

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