O Chão e a Gira
Zezito de Oliveira
Texto
baseado na fala "inspirada" durante a minha participação no seminário
do coletivo investigador para a elaboração do plano integrado de cultura
e educação.Iniciativa do MINC e Casa da Arte de Educar, realizado em Recife nos dias 15 e 16 de junho de 2012.
O processo educativo precisa aterrar, descer abaixo do chão e subir possibilitando a gira girar
de forma bem tranquila.A “crise” da escola advém daí. Quando falamos em
aterramento estamos tratando dos saberes de nossos ancestrais, estamos
querendo dizer que precisamos buscar referenciais na memória das nossas
comunidades , das nossas tribos, dos nossos terreiros, dos povos
originários.Deixar a gira girar é garantir um ambiente favorável dentro
da escola para liberar corpos e mentes para poderem se relacionar de
forma mais sincera e criativa, inclusive com o conhecimento.Por isso não
acontecer é que nos deparamos com pessoas completamente perdidas e
a mercê dos modismos de ocasião em matéria de valores e comportamentos
estimulados, fabricados e /ou disseminados com vistas ao fortalecimento
da sociedade materialista, consumista e predatória que nos é imposta
pelas elites capitalistas. Portanto, não é preciso temer nada daquilo
que é novo ou diferente, desde que seja dedicado uma atenção especial
aquilo que vem de muito longe e que nos liga com os elementos naturais e
culturais que recebemos das gerações que nos antecederam.Falo das
brincadeiras, dos folguedos, dos ritos religiosos, das lendas, não
reduzidas a folclore, espetáculo, lazer ou coisa que o valha, mas
entendendo que tudo isto é fonte de conhecimentos, significados e saúde.
Falo também das águas, das florestas, da terra e do ar.Quando falo em
deixar a gira girar, me refiro a possibilidade de recriar, ressignificar
ou revitalizar aquilo que herdamos sem medo e sem falsos pudores.
Porque a vida está sempre fazendo isso, sob a aparência de algo estático
e imóvel, o movimento e a transformação estão sempre acontecendo.O
movimento de rotação e translação da terra é um bom exemplo. Se é
verdade que se repetem os dias e as estações, também é verdade que
sempre surge algo novo nestes dias e nestas estações que se repetem.Em
suma, uma educação atenta aos ciclos naturais e culturais da vida, pode
ser a saída para as crises nossas de cada dia.Se temos dificuldade para
que isto seja assimilado pelo sistema acadêmico e educacional como um
todo, poderemos começar em aliança com parte daqueles que compreendem
isto e que atuam em universidades, escolas, órgãos públicos, artistas,
ONGs, empresas e meios de comunicação.
Para saber mais:
http://www.artedeeducar.org.br/promovendo-a-integracao-entre-cultura-e-educacao
Para saber mais:
http://www.artedeeducar.org.br/promovendo-a-integracao-entre-cultura-e-educacao
Recife / PE - Junho 2012
Pesquisa-ação para um Plano Articulado
entre Cultura e Educação
segunda-feira, 11 de junho de 2012
Ministério da Cultura ouve a sociedade para elaborar políticas públicas que possibilitem ações culturais integradas nas escolas.
O
professor de História, especialista em arte-educação e
idealizador/produtor da “Caravana Cultural Luiz Gonzaga vai a Escola”,
Zezito de OIiveira, viaja a Recife, para participar nos dias 14 e 15 de
junho do seminário do coletivo
investigador da pesquisa-ação que tem como objetivo elaborar
princípios que auxiliem na formulação e orientação de políticas de
cultura voltadas para a educação.
Este
seminário contará com a presença de professores, educadores populares,
artistas e outros agentes da educação e da cultura empenhados na
formação de um sistema educacional que integre as experiências de
Educação Formal e as de Educação Não-Formal, realizadas por organizações
da sociedade civil, bibliotecas e museus.
O seminário do coletivo investigado é uma das principais ações do projeto Um Plano Articulado para Cultura e Educação, desenvolvido pelo Ministério da Cultura e pela ONG Casa da Arte de Educar.
Para mais informações sobre o projeto, acesse o site da Casa da Arte de Educar, cujo endereço é http://www.artedeeducar.org.br
Sobre o trabalho e reflexão realizada por Zezito de Oliveira sobre a parceria cultura e educação, Leia:
A Potência da CULTURA – ensaio com sugestões para programas de governo
A Potência da CULTURA
E se a Cultura fosse prioridade em
programas de governo? Ela seria reconhecida como o fio condutor que une o
direito à saúde, ao transporte, à moradia, à educação, ao trabalho, à
cidade… à cidadania. Cultura como arte, habilidades humanas, mas para
além das artes e da expressão simbólica, Cultura como comportamento,
como atitudes e valores que se expressam desde as mínimas relações no
cotidiano à economia. Assim, teríamos programas de candidatos e
candidatas às prefeituras que tratariam a Cultura em toda sua Potência,
central e transversal.
Como primeira medida, o fortalecimento
das Secretarias e órgãos de gestão da Cultura. Não é possível que a
Cultura continue sendo tratada como mero ornamento, com políticas
públicas acanhadas e concentradas, tanto no espaço geográfico, quanto
social, ou restritas à realização de eventos e atividades artísticas
pontuais. Em São Paulo, por exemplo, se de um lado houve a positiva e
necessária recuperação de espaços como o Teatro Municipal e a Biblioteca
Mário de Andrade, além da incorporação da Virada Cultural (que, em meu
modo de ver, deve ser mantida e aperfeiçoada) ao calendário da cidade;
de outro, o investimento em Cultura, para além do centro da cidade ou
para além de um grande evento anual, ficou praticamente abandonado. E
este é o retrato de praticamente todo o país, em Campinas a
mediocrização da gestão cultural vem desde o final do século passado (e,
infelizmente, enquanto paro para pensar em alguma exceção positiva,
poucos exemplos me vêem à cabeça, talvez Suzano, na grande São Paulo,
não muito mais que isso). Ao menos em cidades mais dinâmicas, como São
Paulo, outros agentes e instituições assumem um papel mais ativo que as
prefeituras na vida cultural da cidade; como o SESC paulista e sua
programação de vanguarda, ou a iniciativa privada financiada com
recursos de renúncia fiscal (mas neste caso reduzindo a Cultura à
dimensão Mercadoria), além de manifestações e organizações autônomas da
sociedade (como os saraus literários de periferia ou os pequenos teatros
de grupo). Sem dúvida, em cidades com as dimensões de São Paulo esta
pluralidade de agentes culturais, pode e deve ser estimulada; todavia, o
que não pode mais continuar acontecendo é o fraco protagonismo do poder
público municipal, não somente em São Paulo como em quase todos
municípios do Brasil.
Tanta coisa boa poderia acontecer se as
gestões municipais fossem estruturadas a partir de uma visão ampla
integradora da Cultura, sob o conceito da cidadania cultural. Aqui
exercito um ensaio de como isso poderia se realizar na prática, em
programas de governo. Penso em quatro macro-programas, interligados e
transversais, não somente entre si, no âmbito de atuação das secretarias
de Cultura, mas em inter-relação com as demais secretarias e programas
do governo municipal. Estes programas matriciais deveriam se desdobrar
em Ações e Iniciativas, conforme apresento a seguir.
Programas e Ações
CULTURA em REDE
Um retrato da desigualdade: abundância e
escassez na distribuição dos equipamentos culturais. No caso de São
Paulo, há regiões da cidade, ou mesmo uma única avenida ou parque
público, que concentram diversos equipamentos culturais da mais alta
qualidade, enquanto regiões inteiras, com centenas de milhares de
habitantes, ou mesmo milhões, sequer dispõem de um único teatro ou
biblioteca adequados. Fazer uma política democrática de Cultura
pressupõe reverter este quadro, que se repete em milhares de cidades
brasileiras, boa parte delas com ausência total de equipementos
culturais, contando, no máximo, com alguma biblioteca funcionando em
condições precárias.
Em São Paulo esta situação começou a ser
modificada quando da implantação dos CEUs, no governo da prefeita Marta
Suplicy; porém, com a mudança de governo houve uma descontinuidade, com
o apequenamento do projeto original; e os novoss CEUs, que perderam
espaços de lazer e cultura, como teatro, área para oficinas culturais ou
mesmo instrumentos musicais para orquestra e demais equipamentos
indispensáveis para o bom desenvolvimento de uma ação cultural.
Repetindo o vício de se privilegiar o invólucro no lugar do conteúdo (ou
a estrutura no lugar do fluxo, ou a casca no lugar da gema), o máximo
que as propostas de governo alcançam é propor a construção de novos (e
custosos) equipamentos culturais. Sim, eles são necessários, mas o
principal objetivo de um programa Cultura em Rede não
seria a construção, mas a articulação (por isso Cultura em Rede) dos
espaços culturais já existentes, qualificando sua estrutura e
potencializando sua programação. Há tantos espaços desperdiçados por aí,
por vezes um teatro em escola, barracões, salas de ensaio; por que não
utilizar-los de forma mais intensa? Inclusive os privados e com pouco
uso, que poderiam ser incorporados à rede via conveniamento. Não é
possível que uma cidade com 93 distritos, cada qual com população média
de 100.000 pessoas, como no caso de São Paulo, não contem com, ao menos,
um teatro, uma biblioteca, um cinema, um museu e um espaço para
oficinas culturais, cursos de iniciação artística e exposições. Isto
poderia acontecer a partir da construção de equipamentos integrados com a
educação (a exemplo das Bibliotecas Parque, de Medellin, ou dos
primeiros Parques Infantis na gestão Mário de Andrade), sobretudo com a
expansão, dinamização e retomada do projeto original dos CEUs,
requalificação de Espaços e Casas de Cultura, recuperação de edifícios
históricos, integração com equipamentos esportivos ou praças e parques
públicos, ou mesmo o melhor aproveitamento de espaços culturais
privados. Desnecessário dizer que esta situação se repete em
praticamente todos municípios do país.
Menos obras físicas e mais articulação e
requalificação dos equipamentos já existentes, menos fachadas e mais
conteúdos, pois o fundamental para a Cultura é o relacionamento em rede e
de maneira complementar. Com isto, de forma rápida -e a um custo
relativamente baixo-, as cidades poderiam contar com Sistemas Integrado de Centros Culturais
permitindo que, para além da custosa construção física, seja possível
disponibilizar recursos específicos para sua manutenção e programação,
compreendendo todo ciclo da produção cultural (patrimônio, formação,
produção e difusão). E este Sistema poderia funcionar
tanto em grandes, médios ou pequenos municípios, diretamente
administrados por uma prefeitura ou através de consórcios
intermunicipais.
Para integrar e consolidar o Sistema de Centros Culturais – Cultura em Rede, devem ser adotadas duas ações:
a) Assegurar ao menos uma grande
Instituição Cultural (Centro Cultural, Museu ou Biblioteca Parque) em
cada macroregião da cidade (no caso de grandes cidades, ou ao menos uma
Instituição de referência em caso de cidades médias ou pequenas, neste
caso via consórcio intermunicipal), funcionando como Centros de
Referência, integrando e complementando programação em centros menores,
promovendo intercâmbio, interações estéticas e programação de qualidade
variada;
b) Cultura em rede pressupõe
articulação e integração entre estrutura física, programação integrada e
ação digital. É neste campo que “Casas e Praças da Cultura Digital” poderiam atuar. Uma ação de Cultura Digital
é indispensável para o funcionamento de Cultura em rede e deve ser
compreendida de maneira ampla, envolvendo desde a disponibilização de
banda larga pública até inovadoras experiências que integram comunidades
de software livre, metareciclagem de computadores e equipamentos
eletrônicos e trabalhos colaborativos com o desenvolvimento de novas
práticas econômicas sob os princípios da economia solidária – trabalho
colaborativo, comércio justo, consumo consciente, generosidade
intelectual e gestão em rede-. As Casas de Cultura Digital integrariam estas iniciativas e as Praças de Cultura Digital
seriam praças públicas dotadas de internet em alta velocidade, espaços
de convivência para as comunidades digitais e centros de coleta e
reciclagem de computadores e aparelhos eletrônicos, funcionando como
pólos públicos da rede.
CULTURA e EDUCAÇÃO
Quando a Educação se afasta da Cultura
ela perde sua alma. Quando a Cultura se afasta da Educação ela perde seu
corpo. Reaproximar Cultura e Educação é reaproximar corpo e alma.
Um programa de integração entre Cultura e Educação
deveria ser estruturante para todo programa de governo. Há acúmulo
teórico e experiência prática, comprovando que este encontro entre
Cultura e Educação não somente dá certo como é indispensável para uma
cultura cidadã e uma educação emancipadora, como o movimento mundial
pelas Cidades Educadoras, ou o conceito das Escola-Parque, formulado pelo pedagogo brasileiro Anísio Teixeira, ou dos Parques Infantis,
implantados na década de 1930 em São Paulo, por Mário de Andrade.. Aqui
não se trata da pedagogização da cultura e das artes, mas da integração
entre cultura e educação, em um processo permanente, que aconteça em
todos os lugares, com todas as gerações e por toda vida. A base da
cidadania cultural está neste sutil exercício.
Integrado Cultura e Educação (e também esportes, lazer e meio ambiente) é possível implantar, paulatinamente, a Educação em Tempo Integral,
mas não em tempo integral na escola e sim utilizando toda a rede de
Cultura da cidade (não somente a municipal, como também de demais
instituições a partir de parcerias). Fora do horário na escola os alunos
poderiam participar:
a) Cursos de iniciação artística em Escolas Municipais de Iniciação Artística (em Campinas, lamentavelmente, a prefeitura fechou a única escola pública de música);
b) Formação de público com freqüência a teatros, museus, centros culturais e cinemas;
c) Projetos especiais como o Recreio nas Férias – assegurando programação cultural e esportiva de férias para todas as crianças e adolescentes da cidade;
d) Corpos Artísticos Juvenis (ou vocacionais), como orquestras e corais, grupos de teatro, dança, circo e coletivos em artes visuais ou audiovisual.
O objetivo seria
assegurar a todas crianças e jovens o acesso a, pelo menos, um curso de
iniciação artística e freqüência mensal em, no mínimo, uma programação
em teatro, cinema ou exposição e uma semana de férias nas atividades do
Recreio nas Férias (com
atividades de cultura, esporte e lazer nos pólos de férias, passeios e
visitas a áreas de lazer – quando desenvolvi esta experiência em
Campinas, no início dos anos 90 e em São Paulo, no governo Marta
Suplicy, conseguimos atender a mais de 100.000 crianças e jovens por
edição).
Quanto aos Corpos Artísticos Juvenis, faço um exercício para demonstrar o quanto é viável. Imaginemos uma cidade que contasse com 50 Orquestras e Corais Infantis e Juvenis, com
participação entre 60 e 100 jovens em cada um. O custo de manutenção de
cada orquestra seria de R$ 400 mil/ano, garantindo contratação de
regente e professores por naipe (violino, violoncelo, percussão, etc…);
um sistema de orquestras jovens com este porte asseguraria 1.000
apresentações de música de câmera por ano (2 por mês, durante 10 meses,
por cada orquestra), envolvendo diretamente entre 3 a 5 mil jovens
músicos, além de gerar postos de trabalho para músicos recém formados,
que atuariam como regentes e professores de orquestra (aproximadamente
500 no total). Há que contabilizar também o público beneficiado com a
série de concertos, alcançando centenas de milhares, ou até milhões, de
pessoas. O custo total desta ação seria de R$ 20 milhões/ano (numa
cidade que assumisse 50 orquestras jovens), pouco para o alcance
educacional e cultural da iniciativa. A Orquestra de Heliópolis, em São
Paulo, é um exemplo de transformação social e beleza que resulta de um
trabalho como este. Por que as cidades do Brasil não podem contar com
tantas mais experiências como a surgida na favela de Heliópolis, em São
Paulo? O mesmo poderia acontecer com grupos de teatro, dança, coral,
etc… (neste caso a um custo menor por grupo constituído). Como parâmetro
de eficácia, devemos observar o Sistema de Orquestras Jovens da
Venezuela, conhecido como El Sistema (atualmente a Venezuela é o
país que mais forma músicos eruditos no mundo – em relação à
população); com 30 milhões de habitantes, o país conta com mil
orquestras e 300 mil músicos em atividade (em proporção, a cidade de São
Paulo deveria contar com 100 mil músicos e mais de 300 orquestras
jovens). Todo município brasileiro pode e deve ter seu Sistema de Corpos Artísticos Juvenis, seja uma banda de coreto ou orquestra, um grupo de teatro, dança ou circo, ou vários. Investindo muito ou pouco, mas investindo e cuidando de sua gente, este deveria ser o principal objetivo de todo governo.
Sistema Municipal de Bibliotecas, livro e leitura,
outra ação indispensável. Biblioteca é patrimônio cultural e,
sobretudo, formação. Além de assegurar, ao menos, uma biblioteca por
município ou distrito, cabe integrar a rede de
bibliotecas públicas com as bibliotecas escolares, bibliotecas
comunitárias e demais iniciativas de difusão do livro e da leitura. E ir
além da integração e disponibilização de acervos. É preciso atualizar o
conceito de bibliotecas, transformando-as em espaços convidativos e
agradáveis, com acervo atualizado e livros ao alcance direto do leitor
(ao menos o acervo mais atual), espaços iluminados e aconchegantes,
atividades lúdicas em brinquedotecas e constante programação cultural e
artística. Há diversos bons exemplos de como a instituição Biblioteca
pode assumir um novo papel de estimulador social e cultural, que vai
muito além da guarda e consulta de acervos. A cidade de Medellin, na
Colômbia, é um belo exemplo de como potentes bibliotecas se transformam
em âncora para a regeneração urbana e o exercício de uma cultura cidadã;
isso também pode acontecer em qualquer cidade do Brasil.
E para além das Bibliotecas. Há a
necessidade de políticas de difusão do livro e da leitura, levando-o
mais próximo ao público, com iniciativas que vão desde a distribuição
gratuita de livros de baixo custo no sistema de transporte público (a
exemplo do programa “Para ler de boleto en el metro”, na cidade
do México) até a organização de bancas/estantes em praças e pontos de
ônibus (a exemplo da cidade de Bogotá, ou da bela iniciativa de um Ponto
de Cultura em um açougue, na cidade de Brasília, que disponibiliza
100.000 livros nos pontos de ônibus da cidade). E difusão se faz com
gente, Agentes de Leitura (jovens da Cultura Viva, que difundem a leitura em casas, ruas e espaços comunitários) e o próprio incentivo à criação literária. Enfim, não há Cultura e Educação sem a devida prioridade às bibliotecas, livros e leitura.
CULTURA VIVA
Cultura Viva, um
conceito de cultura que se desenvolveu no Brasil e se espalha por toda
América Latina. A Cultura entendida como processo e não produto, feita
pela gente, pelas pessoas, sem hierarquias ou controle. Cultura como
expressão simbólica, como construção de valores e cidadania e como
economia. Uma Cultura que se desenvolve com autonomia e protagonismo,
potencializados na articulação em rede. Cultura como fluxo, potência,
afeto, desejo e encantamento.
As cidades formam o melhor ambiente para a Cultura Viva. Mil povos, mil fazeres e mil sonhos. Tudo junto (e misturado). Para sedimentar a rede Cultura Viva (ou: o “fazer cultural” autônomo e protagonista) há os Pontos de Cultura; no Brasil eram mais de 3.000 em 2010, em 1.100 municípios. Os Pontos de Cultura
são entidades culturais da sociedade, com personalidade jurídica
própria, selecionadas por edital público e que já desenvolvem trabalhos
em suas comunidades; tem atuação das mais diversas, das linguagens
artísticas às ações sócio-culturais em territórios de vulnerabilidade
social, de grupos eruditos a populares, do fortalecimento de laços
identitários e tradições à experimentação estética e à vanguarda da
cultura digital em software livre. São os mais diversos recortes, cada
qual à sua maneira. Ao se potencializarem em rede vão se desenvolvendo,
tanto do ponto de vista ético, estético ou econômico. E o fazem em uma
relação horizontal, entre iguais (uma igualdade que se realiza na
diferença), rompendo com processos formativos de cima para baixo, ou de
fora para dentro.
Cada Ponto de Cultura
recebe um recurso anual de R$ 60 mil e desenvolve seu plano de trabalho
conforme suas necessidades, empoderando-se no processo. Até o momento
esta rede acontece em convênio com o Ministério da Cultura; mas por que
não assumi-la como política municipal? Custa pouco, por vezes menos que
uma festa patrocinada pela prefeitura, com a diferença de que acontece
em processo contínuo, por todo o ano.
Mas Cultura Viva vai além dos Pontos de Cultura e também envolve ações como “Cultura
Digital”, “Cultura e Saúde”, “Economia Solidária e Cultura”, “Agentes
Jovens de Cultura”, “Griôs e Mestres da Cultura tradicional transmitida
pela Oralidade”, “Interações Estéticas”, “Escola Viva”, “Pontos de
Leitura”, “Pontos de Memória”, “Pontos de Mídia livre”, “Pontinhos (para cultura da infância e lúdica)” e “Pontões (articuladores, capacitadores e difusores na rede)” de Cultura. Todas estas ações – e outras- devem ser desenvolvidas junto com os Pontos de Cultura. Há tanta cultura tradicional, tantos mestres, tantos Griôs e tanto conhecimento que podem contribuir para o desenvolvimento da cidade; há tantos Pontos de Mídia Livre,
rádios e TVs comunitárias, sites, blogs, fanzines e revistas
independentes que contribuem para difundir o que de mais profundo e
esquecido se produz por aí; tantos artistas, fazendo coisas belas e
dispostos a interagir com comunidades em efetivas Interações Estéticas, ensinando e aprendendo com elas; a Cultura e Saúde
com terapias alternativas e a arte como elemento de desenvolvimento das
pessoas com deficiências intelectuais ou físicas, a medicina
tradicional e a busca da cura em ambientes saudáveis; Pontos de Memória, com memoriais e museus comunitários, de vizinhança, temáticos, afetivos, em escolas; e Pontos de Leitura
e suas bibliotecas comunitárias, as biciclotecas construídas a partir
de tanta idéia boa surgida da mente de gente igualmente boa, por vezes
moradores de rua, catadores de papel que reciclam livros e vidas. Tanta
coisa boa e bela que pode se desenconder por aí, isso é Cultura Viva.
E que pode ir além. Há que desenvolver ações e programas de arte pública, em apoio à artes e aos artistas de rua,
que tanto humanizam as cidades. E os grupos de teatro e dança, que na
falta de apoio governamental foram abrindo seus espaços próprios,
gerando pólos autônomos de arte, inovação e convivência; mas a
manutenção destes espaços é custosa, cabendo a criação de um arcabouço
de apoio (redução ou isenção de impostos) e financiamento público para Espaços Culturais de Grupos
que assegure a manutenção dos custos fixos; como contrapartida, esses
espaços poderiam oferecer sua própria programação e uso em atividades e
programas como Cultura e Educação e outros. O apoio ao Circo e aos artistas circenses e todas as suas especificidades, da regulação do uso de espaços à formação, do circo tradicional ao novo circo. E as Iniciativas Culturais da Juventude ou grupos culturais não formalizados, a exemplo do programa paulistano, VAI; ou a Agentes Jovens de Cultura,
para jovens artistas e articuladores culturais; ou o apoio à ações e
manifestações (a exemplo da parada Gay) de combate à discriminação,
sejam de caráter religioso, gênero, étnico ou cultural; ou às Culturas tradicionais e populares,
há tantas, em todas as cidades, as mais surpreendentes, como em São
Paulo, em que os índios Pankararu redescobrem suas raízes na favela do
Real Parque, ou jovens do Hip Hop que se reencontram com o repente de
seus avós; as festas populares,
seja em grandes ou pequenos municípios, sempre presentes. Tanta coisa
bela e sensível, que passa na frente de nossos olhos e que nos diz que a
Cultura continua Viva, não porque é
feita pelo Estado ou governos, nem porque se deixa transformar em
mercadoria, mas porque é feita pela gente e para a gente. E vai além.
CULTURA: direito do povo, dever do Estado
O objetivo: a Arte. E só. Arte como
habilidade, criação, beleza. Convivência.Arte de bem viver. Uma cultura
cidadã só pode acontecer se as pessoas conviverem em estado de Arte,
cultivando forma e o espírito e, no espaço da liberdade de criação,
aprenderem a viver com liberdade e respeito. Arte, conceito difícil de
definir e ao mesmo tempo tão presente em nossas vidas. Por isso mesmo a
arte deve permear o conjunto dos programas de toda política cultural.
Arte necessita de fomento
que ative e impulsione o processo criativo. Nos últimos 20 anos as
políticas de fomento em vigor no país estiveram, basicamente,
concentradas em instrumentos da renúncia fiscal, transferindo recursos
públicos para um processo de decisão privada, submetida à lógica do
mercado. Houve iniciativas que caminharam em outro sentido, apresentando
resultados consideráveis, como as iniciadas no movimento Arte contra a Barbárie,
que resultou na lei do Fomento em São Paulo ou a experiência do
programa Cultura Viva e dos Pontos de Cultura, disseminada pela ação do
Ministério da Cultura no governo Lula, bem como os editais específicos
de fomento para os campos da identidade e diversidade e das artes. São
contrapontos ao modelo que reduz a Cultura e a Arte apenas à dimensão
produto ou mercadoria. Programas de Cultura com sentido emancipador
deveriam caminhar nesta mesma lógica, em que Cultura e Arte são
consideradas direitos inalienáveis, que devem ser realizados pelas
pessoas, pela sociedade, em ambientes de liberdade criativa, cabendo ao
Estado assegurar meios para que aconteçam em toda sua potencialidade,
com critérios públicos e sem dirigismo, seja do Estado ou do Mercado.
O principal meio para efetivação desta política deve ser o Fundo Municipal de Cultura, com dotação orçamentária própria e destinada diretamente ao fazer cultural e artístico da sociedade, das pessoas. Como meta: 1% do orçamento municipal diretamente destinado ao Fundo de Cultura.
Para as necessidades de manutenção e investimento direto do município,
as Secretarias de Cultura devem contar com orçamento próprio; ou, em
linguagem técnica: os Fundos Municipais de Cultura devem contar com
rubrica específica, com fonte de recursos assegurada e mecanismos
públicos na definição de acesso a estes recursos.
Chega-se ao valor de 1% do orçamento a
partir de que, no mínimo 5% do PIB nacional (dados do IBGE) advém da
economia da cultura. Toda essa economia gera recursos para as cidades
que retornam na forma de tributos diretos (ISS sobre atividades
culturais) e indiretos (arrecadação em bares, restaurantes, hotéis e
demais atividades econômicas diretamente impactadas pela economia da
cultura), nada mais justo que parte destes recursos seja aplicada na
própria atividade que os gerou (permitindo, inclusive, a ampliação
destes recursos com o motor da própria atividade econômica). Diversas
cidades já contam com Fundos Municipais de Cultura, algumas há décadas
(Campinas, por exemplo) e outras começam a implantar (Campo Grande,
recentemente, aprovou lei criando o Fundo e definindo piso de 1% do
orçamento municipal); não faz sentido que grandes ou pequenas cidades
ainda não disponham de algo semelhante. Cabe salientar que a criação de
Fundos Municipais de Cultura está prevista na lei que cria o Sistema
Nacional de Cultura e em poucos anos esta será a única forma de acesso a
recursos nacionais de cultura, que serão transferidos “fundo a fundo”, a
exemplo do Sistema Único de Saúde. Outra fonte de recursos do Fundo
deve ser a receita própria dos equipamentos municipais de cultura
(borderô de ingressos, eventuais locações, doações diversas), evitando
que este recurso se perca no caixa único das prefeituras.
Com o Fundo Municipal de Cultura é possível manter e ampliar as ações de fomento; nos grandes municípios podem existir Fundos Setoriais
(Artes, Diversidade e Cidadania Cultural, Patrimônio e Memória,
Audiovisual, Livro e Leitura e Projetos Especiais), seguindo a mesma
lógica do projeto de lei que institui o Pró-Cultura (reforma da lei
Rouanet) em nível nacional – ainda em tramitação no Congresso. Somente
com um Fundo efetivamente estruturado e com recursos suficientes será
possível realizar uma efetiva política de fomento à cultura nos
municípios.
Mas para além de uma política de editais
para acesso público a recursos públicos, cabe assegurar uma série de
mecanismos de fomento às artes e à preservação do patrimônio histórico e
cultural. As cidades precisam contar com Conselhos do Patrimônio
Histórico e Cultural, bem como com regras estáveis de preservação, que
possam conviver com as necessidades da expansão imobiliária, sem
prejuízo à preservação de nossas referências históricas, ambientais e
afetivas. Cabe a estes Conselhos assegurar a inventário das áreas
envoltórias de patrimônios tombados e regras prévias e claras para os
proprietários do entorno, tornando sustentável a preservação e até
criando compensações, no caso de grandes e médios municípios, com uma lei da troca do potencial construtivo
(em que o proprietário de um imóvel tombado poderá negociar o potencial
construtivo de seu imóvel em outras áreas da cidade, assegurando
recursos para preservação do bem tombado).
Junto a estas medidas de Fomento e
Regulação, cabe, igualmente, manter Instituições e Programas de
Preservação e Memória, que vão desde a manutenção de Museus e Arquivos à
realização e inventários, cartografias culturais, mapas e roteiros,
histórico, ambientais, afetivos e artísticos.
Medidas institucionais de gestão da Cultura
Os quatro programas aqui apresentados
dão conta, ao meu ver, das diversas dimensões e necessidades de uma
efetiva política cultural para o século XXI, porém, para que aconteçam
em plenitude, serão necessárias medidas institucionais, basicamente
previstas na lei que cria o Sistema Nacional de Cultura, a exemplo do SUS. São elas:
a) Adesão das cidades ao Sistema Nacional de Cultura;
b) Plano Municipal de Cultura, com objetivos, metas e indicadores para os próximos 10 ou 20 anos;
c) Criação, fortalecimento e
democratização dos Conselhos Municipais de Cultura (e criação de
conselhos por subprefeituras, quando houver);
d) Criação do Fundo Municipal de Cultura (com dotação orçamentária própria e repasse de recursos por editais públicos);
e) Fortalecimento da capacidade de
gestão e formulação das Secretarias de Cultura (ampliação orçamentária e
concurso público para quadro funcional especializado);
f) Sistema de Informações e Mapeamento Cultural;
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2 comentários:
O Programa Mais Cultura promoveu momentos de aprendizagem, motivação e aproximação entre escola, comunidade e demais parceiros, nossa perspectiva é que continue uma vez que, veio apenas uma parcela e não temos previsão de recurso para dar continuidade as ações do programa.
Enecy Marinho
Você pode encaminhar reclamacao para o seguinte telefone Diretoria de Educação e Comunicação para a Cultura: (61) 2024-2227 ou para http://ouvidoria.cultura.gov.br/
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