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Nestes meses de março e abril de 2013 temos lido, ouvido e assistido a
um episódio sem precedentes no Congresso Nacional, que coloca em
evidência a relação religião-política-mídia. Em 5 de março foi anunciada
pelo Partido Socialista Cristão (PSC), a indicação do membro de sua
bancada o pastor evangélico deputado federal Marco Feliciano (SP) como
presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal (CDH).
Foram imediatas as reações de grupos pela causa dos Direitos Humanos ao
nome de Marco Feliciano, com a alegação de que o deputado era conhecido
em espaços midiáticos por declarações discriminatórias em relação a
pessoas negras e a homossexuais. O PSC se defendeu dizendo que seguiu um
protocolo que lhe deu o direito de indicar a presidência dessa
comissão, um processo que estava dentro dos trâmites da democracia tal
como estabelecida no Parlamento brasileiro. Isto, certamente, é fonte de
reflexões, em especial quanto ao porquê da defesa dos Direitos Humanos
ser colocada pelos grandes partidos como “moeda de troca barata”, como
bem expôs Renato Janine Ribeiro em artigo publicado no Observatório da
Imprensa (n. 740, 2/4/2013). Soma-se a isto o fato de o deputado
indicado e o seu partido não apresentarem qualquer histórico de
envolvimento com a causa dos Direitos Humanos que os qualificassem para o
posto.
O que tem chamado a atenção neste caso, e que é objeto desta
reflexão, é a “bola de neve” que ele provocou a partir das reações ao
nome do deputado, formada por protestos públicos da parte de diversos
segmentos da sociedade civil, mais a criação de uma frente parlamentar
de oposição à eleição de Feliciano, e pelo estabelecimento de uma guerra
religiosa entre evangélicos e ativistas do movimento de lésbicas, gays,
bissexuais e transgêneros (LGBT), e entre evangélicos e não-cristãos. E
esta bola de neve é produto de fatores que se apresentam para além da
CDH, e a expõem como um elemento a mais no complexo quadro da relação
entre religião e sociedade no Brasil. Pensemos um pouco sobre estes
fatores; vamos elencar quatro.
1. A reconfiguração do lugar dos evangélicos na política
Desde o Congresso Constituinte de 1986 e a formação da primeira
Bancada Evangélica e seus desdobramentos, a máxima “crente não se mete
em política” construída com base na separação igreja-mundo foi
sepultada. A máxima passou a ser “irmão vota em irmão”.
Depois de altos e baixos em termos numéricos, decorrentes de casos de
corrupção e fisiologismo, a bancada evangélica se consolidou como força
no Congresso Nacional, o que resultou na criação da Frente Parlamentar
Evangélica (FPE) em 2004, ampliada nas eleições de 2010 para 73
congressistas, de 17 igrejas diferentes, 13 delas pentecostais. Os
parlamentares evangélicos não são identificados como conservadores, do
ponto de vista sociopolítico e econômico, como o é a Maioria Moral nos
Estados Unidos, por exemplo. Seus projetos raramente interferem na ordem
social e se revertem em “praças da Bíblia”, criação de feriados para
concorrer com os católicos, benefícios para templos. Basta conferir o
perfil dos partidos aos quais a maioria dos políticos evangélicos está
afiliada e os recorrentes casos de fisiologismo.
Mais recentemente é o forte tradicionalismo moral que tem marcado a
atuação da FPE, que trouxe para si o mandato da defesa da família e da
moral cristã contra a plataforma dos movimentos feministas e de
homossexuais, valendo-se de alianças até mesmo com parlamentares
católicos tradicionalistas, diálogo impensável no campo eclesiástico.
Os números do Censo 2010 são fonte para a demanda de legitimidade
social entre os evangélicos, e certamente de conquista de mais espaço de
influência. Estudos mostram que desde 2002, período da legislatura em
que a FPE foi criada, a cada eleição, o número de evangélicos no
Parlamento (Câmara e Senado) aumenta em torno de 30% do total anterior. A
estimativa, mantido este índice, é de chegarem a 100 cadeiras em 2014, o
que representaria em torno de 20% das 513 do Congresso, refletindo a
representatividade dos evangélicos no Brasil revelada pelo Censo 2010.
Este é um projeto cada vez mais nítido deste segmento social que
certamente visa, como os demais grupos políticos, muito mais do que
cadeiras no Congresso, mas também presidências de comissões e de
ministérios relevantes (para além do único atual tímido Ministério da
Pesca, sob a liderança do bispo da Igreja Universal do Reino de Deus
Marcelo Crivela).
A polêmica com Marco Feliciano deixa este projeto em evidência, já
que não só uma presidência inédita de comissão foi alcançada, mas também
maior visibilidade aos evangélicos na política e ao próprio PSC, que
tem o nome “Cristão”, mas sempre se caracterizou como um partido de
aluguel para quem desejasse candidatura independentemente de confissão
de fé. Pelo fato de estar nas manchetes durante semanas, o PSC já prevê
que Feliciano, eleito com 212 mil votos por São Paulo em 2010, se
tornará um “campeão de votos” nas próximas eleições, podendo atingir um
milhão de votos, e ainda alavancará a candidatura do pastor Everaldo
Pereira (PSC/SP) a presidente da República. Aliado de Marco Feliciano, o
pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia, figura
sempre presente nas mídias, declarou: “Se o Feliciano tiver menos de 400
mil votos na próxima eleição, eu estou mudando de nome”.
Mais uma vez, é possível afirmar que a cada novo episódio, a relação
evangélicos- política é dinâmica complexa que inclui disputas por poder e
hegemonia no campo religioso, ambição dos políticos que veem no
pragmatismo dos evangélicos fonte para suas barganhas de campanha,
concorrência de grupos que competem por poder sociopolítico e econômico
como as empresas de mídia, como veremos adiante.
2. O conservadorismo de Marco Feliciano e de seus “soldados”
A imagem dos “evangélicos” foi construída fundamentalmente com base
na identidade de dois grupos de cristãos não-católicos: os protestantes
de diferentes confissões que chegaram ao Brasil por meio de missões dos
Estados Unidos, a partir da segunda metade do século XIX, e os
pentecostais, que aportaram em terras brasileiras na primeira década do
século XX, vindos daquele mesmo país. Esta imagem sempre mostrou ao
Brasil um segmento cristão predominantemente conservador teologicamente,
marcado por um fundamentalismo bíblico, um dualismo que separava a
igreja do “mundo”/a sociedade e um anticatolicismo.
Desta forma, não é surpresa que um pastor evangélico, no caso Marco
Feliciano, reproduza em seus sermões modernos e de forte apelo
emocional, uma abordagem teológica tão antiga como a que embasa a
ideologia racista, por meio da leitura fundamentalista de textos do
Gênesis que contêm a narrativa da descendência de Noé. Também não é
surpresa que Marco Feliciano conduza sua reflexão teológica por meio de
bases que justifiquem a existência de um Deus Guerreiro e Belicoso, que
tem ao seu redor anjos vingadores, que destrói do Titanic a John Lenon
ou aos Mamonas Assassinas, continuando o que já fazia com os povos
africanos herdeiros do filho de Noé, e que, nesta linha, certamente fará
aos que assumem e apregoam o homossexualismo. Menos surpreendente é
ainda que o líder religioso reaja a quem lhe faz oposição ou tenha
posição diferente da sua classificando-o como agente do diabo e assim
foram sinalizadas a própria formação anterior da Comissão de Direitos
Humanos e celebridades como o cantor Caetano Veloso.
Quem se surpreende com o que Feliciano diz e com o apoio que ele
recebe de diversos segmentos evangélicos desconhece o DNA deste grupo.
Não há nada de novo aqui. O que há é maior visibilidade pela projeção
que a mídia religiosa e não-religiosa têm dado a este discurso. Em 2010,
por exemplo, o pastor estadunidense Pat Robertson, dono de um canal de
televisão, declarou que o trágico terremoto no Haiti naquele ano era
consequência de um pacto dos haitianos com o diabo no passado para se
tornarem independentes da França. A declaração de Robertson, amplamente
veiculada, provocou manifestações contrárias em todo o mundo. As
palavras de Marco Feliciano no Brasil de 2013 são apenas o eco da mesma
teologia.
Há algo novo, sim, neste processo, relacionado à articulação dos
apoios a Feliciano que coloca em evidência o conservadorismo, antes
atribuído mais diretamente aos evangélicos, que reflete uma tendência
forte na sociedade brasileira de um modo geral.
É nesse contexto que o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), suplente da
CDH, afirmou que se sente como “irmão” do presidente da comissão. “Como
capitão do Exército, sou um soldado do Feliciano”, declarou Bolsonaro,
em matérias divulgadas pelas mídias em 27 de março, e acrescentou: “A
agenda antes era outra, de uma minoria que não tinha nada a ver. Hoje,
representamos as verdadeiras minorias. Acredito no Feliciano, de
coração. Até parece que ele é meu irmão de muito tempo. Não sinto mais
aquele cheiro esquisito que tinha aqui dentro e aquele peso nas costas.
Aqui, era uma comissão que era voltada contra os interesses humanos,
contra os interesses das crianças e contra os interesses da família.
Agora, essa comissão está no caminho certo. Parabéns, Feliciano”.
O deputado Bolsonaro tem um histórico de posicionamentos racistas e
de conflito com ativistas sociais e militantes de movimentos gays. Em
novembro de 2011, ele chegou a pedir, da tribuna da Câmara, à presidente
Dilma Rousseff para que ela assumisse se gostava de homossexuais. Em
março do mesmo ano, respondeu que “não discutiria promiscuidade” ao ser
questionado em um programa de TV pela cantora Preta Gil sobre como
reagiria caso o filho namorasse uma mulher negra.
No campo das igrejas, o já citado pastor Silas Malafaia, conhecido
por polêmicas midiáticas desde a campanha presidencial de 2010, se
alistou nas fileiras do deputado Feliciano e se tornou seu árduo
defensor e colaborador desde o início da controvérsia da presidência da
CDH. Até a Igreja Católica, explícita em suas posições quanto à
ampliação de direitos civis de homossexuais, mas clássico “inimigo” dos
evangélicos, é colocada por Feliciano na lista de aliados. Em entrevista
à TV Folha-UOL (2/4/2013), o deputado explicitou: “Tenho alguns
contatos com algumas pessoas da CNBB, mas com os grandes líderes do
movimento católico não tive contato até porque quase não tenho tempo.
Acredito que, nesse momento, todos eles me conhecem até porque o que eu
sofro hoje de perseguição dado ao movimento LGBT, a Igreja Católica
sofre isso no mundo todo. Inclusive, o novo papa, o papa Francisco, na
Argentina quase foi linchado por esse grupo. Então, nós temos algumas
coisas que, acredito, nos fazem pensar igual.(…) Eu fiquei feliz por
termos ali um papa que ainda é bem ortodoxo, é bem conservador e que
prima por aquilo eu acredito também, que a família é a base da
sociedade. Aliás, a família é antes da sociedade”.
Estas alianças estão produzindo efeitos até na qualidade do discurso
de Marco Feliciano. Os benefícios proporcionados pela aproximação com
lideranças mais experientes ficam evidentes nas mudanças no discurso do
deputado como: “Só saio da presidência da CDH morto” para “Só saio da
presidência da CDH se os deputados condenados pelo julgamento do
mensalão, José Genoíno e João Paulo Cunha, deixarem a Comissão de
Constituição e Justiça”. Com isso, Feliciano atraiu para si a simpatia
da mídia que se fartou na cobertura do julgamento do Superior Tribunal
de Justiça e de segmentos conservadores, que, embora não concordem com
seu nome na presidência da CDH, querem “a cabeça” dos condenados.
Feliciano usa uma controvérsia ética para justificar a controvérsia de
sua própria eleição – a CDH como moeda de troca partidária.
Alianças do religioso com o não-religioso formando exércitos que
marcham em defesa da moral e dos bons costumes – em defesa da família –
não é algo novo no Brasil, mas é bastante novo no espaço político que
envolve os evangélicos e suas conquistas na esfera pública. Em matéria
na Folha de São Paulo, de 7/4/2013, o diretor do instituto de pesquisa
Datafolha, Mauro Paulino, declarou que o discurso de Feliciano atinge
preocupações de parte da população: “Entre os brasileiros, 14% se
posicionam na extrema direita. As aparições na imprensa dão esse efeito
de conferir notoriedade a ele.” Isto significa que apesar dos tantos
slogans divulgados em manifestações presenciais e nas redes sociais –
“Feliciano não me representa” – Feliciano, Bolsonaro e tantos outros são
eleitos e ganham espaço e legitimidade. Portanto, há quem se sinta
representado, sim, não somente do ponto de vista da popularidade mas do
peso das articulações ideológicas em curso na sociedade brasileira.
3. Inimigos, um componente do imaginário evangélico
Exércitos
precisam de inimigos. A teologia de um Deus Guerreiro e Belicoso sempre
esteve presente na formação fundamentalista dos evangélicos
brasileiros, compondo o seu imaginário e criando a necessidade da
identificação de inimigos a serem combatidos. Historicamente a Igreja
Católica Romana sempre foi identificadas como tal e sempre foi combatida
no campo simbólico mas também no físico-geográfico. Da mesma forma as
religiões afro-brasileiras também ocupam este lugar, especialmente, no
imaginário dos grupos pentecostais.
Periodicamente, estes “inimigos” restritos ao campo religioso perdem
força quando ou se renovam, como é o caso da Igreja Católica, a partir
dos anos de 1960, ou quando aparecem outros que trazem ameaças mais
amplas. Assim foram interpretados os comunistas no período da guerra
fria no mundo e da ditadura militar. Há também um imperativo imaginário
de se atualizar os combates, quando a insistência em determinados grupos
leva a um desgaste da guerra. Durante o processo de redemocratização
brasileira nos anos 80, o espaço que vinha sendo conquistado pelo
Partido dos Trabalhadores, interpretado como nítido representante do
perigo comunista, foi reconhecido como ameaça e campanhas evangélicas
contra o PT reverberaram de forma religiosa o que se expunha nas
trincheiras da política.
Com o enfraquecimento do ideal comunista nos anos 90 e com o PT
chegando ao poder nacional com o apoio dos próprios evangélicos, a força
das construções ideológicas estadunidenses abriu lugar à atenção à
ameaça islâmica e houve algum espaço entre evangélicos no Brasil para
discursos de combate ao islam. No entanto, como esta ameaça está bem
distante da realidade brasileira – não se configura um inimigo tão
perigoso nestas terras -, emerge, mais uma vez, o imperativo de se
atualizar os combates. Não mais catolicismo, nem comunismo, não tanto
islamismo… quem se configuraria como novo inimigo? Desta vez, um inimigo
contra a religião e seus princípios, contra a Bíblia, contra Deus,
contra o Brasil e as famílias: o homossexualismo.
Declarações de Marco Feliciano na mídia noticiosa expressam bem este
espírito belicoso: “É um assunto tão podre! Toda vez que se fala de sexo
entre pessoas do mesmo sexo ninguém quer colocar a mão, porque é podre.
Por causa disso, um grupo de 2% da população – os gays – consegue se
levantar e oprimir uma nação com 90% de cristãos, entre católicos e
evangélicos, e até pessoas que não têm religião, mas que primam pelo
bem-estar da família, pelo curso natural das coisas” (Rede Brasil Atual,
1/3/2013). “Existe uma ditadura chamada (…) “gayzista”. Eles querem
impor o seu estilo de vida e a sua condição sobre mim. E eles lutam
contra a minha liberdade de pensamento e de expressão. Eles lutam pela
liberdade sexual deles. Só que antes da liberdade sexual deles, que é
secundária, tem que ser permitida a minha liberdade intelectual. A minha
liberdade de expressão. Eu posso pensar. Se tirarem o meu poder de
pensar, eu não vivo. Eu vegeto e morro”. (TV Folha-UOL, 2/4/2013).
Consequência da eleição de inimigos e do combate a eles é o discurso
de que há uma perseguição a quem se faz contrário, promovida pelo maior
inimigo de Deus, Satanás. Esta ideia está claramente presente em
afirmações de Feliciano como: “Eu morro, mas não abandono minha fé”; “A
situação está tomando dimensões muito estranhas. É assustador, estou me
sentindo perseguido como aquela cubana lá. Como é o nome? A Yoani
Sánchez”; “Se é para gritar, tem um povo que sabe o que é grito. [...]
Nós (evangélicos) sabemos qual é o poder da nossa fé.”
A insistência da mídia noticiosa em enfatizar a guerra
Feliciano-homossexuais, com o lado “inimigo” representado por um
deputado, na mesma condição do primeiro, Jean Wyllys (PSOL/RJ), ativista
do movimento LGBT, só faz reforçar a reconstrução do imaginário
evangélico da guerra aos inimigos e da perseguição consequente. Isso tem
gerado manifestações diversas de apoio a Feliciano entre evangélicos
dos mais diferentes segmentos e ações como a da Convenção Geral das
Assembleias de Deus no Brasil (CGADB), realizada em Brasília neste
abril, que aprovou uma moção de apoio a Feliciano, aprovada em votação
simbólica por unanimidade. Feliciano agradeceu o apoio dizendo que
“nunca houve uma comissão com tanta oração. Os pastores estão orando
pela minha vida e pela comissão. Venceremos esta batalha”.
Há ainda uma explosão de postagens em nas mídias digitais, em
especial nas redes sociais. Por exemplo, uma montagem com foto de Marco
Feliciano com uma faixa presidencial tem sido veiculada por usuários do
Facebook, e, na primeira semana de abril já havia superado a marca de 65
mil compartilhamentos. A campanha pede que favoráveis à candidatura do
pastor à presidência da República em 2014 compartilhem a imagem para
demonstrar força nas redes sociais: “Campanha urgente: Marco Feliciano
presidente do Brasil”, diz o texto.
Uma segunda imagem com comparações entre Marco Feliciano e Jean
Wyllys também veiculada no Facebook, já havia superado 100 mil
compartilhamentos em meados de abril, registrando mais de 7,5 mil
comentários. Na imagem, há dados sobre o número de votos de cada um dos
deputados, além de comparações entre as bandeiras políticas defendidas
por cada um deles. A imagem quando compartilhada revela declarações
pessoais de quem “curtiu” com texto que manifesta apoio ao pastor
Feliciano: “Eu sou cristão, a favor da democracia, da vida e da família
brasileira. Marco Feliciano me representa”.
A declaração de Silas Malafaia à Folha de São Paulo (7/4/2013) sobre a
repercussão do caso entre os evangélicos e simpatizantes reflete bem
este espírito: “Quero agradecer ao movimento gay. Quanto mais tempo
perderem com o Feliciano, maior será a bancada evangélica em 2014″.
Toda e qualquer análise e ação em torno da presença dos evangélicos
nas mídias e na política não pode ignorar esta dimensão do imaginário da
necessidade da criação de inimigos e da consequente perseguição. Isto é
característico de religiões numericamente não-majoritárias, sendo
portanto, fruto, entre outros aspectos, do caráter minoritário da
presença evangélica em terras brasileiras.
4. As transformações e as revelações na relação mídia-religião
O histórico da presença evangélicas nas mídias não-religiosas no
Brasil revela a hegemonia católica-romana que vem pouco a pouco sendo
diminuída por conta do espaço que os evangélicos vêm conquistando na
esfera pública. Enquanto católicos sempre apareceram para expressar sua
fé nas datas clássicas do calendário religioso e para se manifestar
sobre temas amplos, à exceção dos casos controversos inevitáveis como a
pedofilia praticada por clérigos, cuidadosamente tratados, evangélicos
tinham espaço garantido quando se tratava de escândalos de corrupção ou
situações bizarras.
Na última década, a expressiva representatividade dos evangélicos no
país com o consequente declínio do catolicismo, e a ampliação de sua
presença nas mídias e na política, torna este segmento não só visível
mas um alvo mercadológico. As mídias passam a prestar a atenção no
segmento e na lucratividade possível, em torno da cultura do consumo
vigente.
Um exemplo ilustrativo se dá quando um personagem, por vezes
protagonista, por vezes coadjuvante, como o pastor Silas Malafaia, que
assume o papel da pessoa controvertida em todo este contexto e constrói
sua imagem midiática como “aquele que diz as verdades”, é convidado para
uma conversa com o vice-diretor das Organizações Globo, João Roberto
Marinho (PINHEIRO, Daniela. Vitória em Cristo. Revista Piauí, n. 60, set
2011). Aí é possível identificar o patamar em que se encontra o
segmento evangélico nas mídias. Segundo depoimento do pastor depois da
conversa, Marinho teria alegado precisar conhecer mais o mundo dos
evangélicos já que a emissora teria percebido que Edir Macedo não seria
“a voz” dos protestantes no Brasil. O pastor Malafaia ganhou, então,
trânsito em um canal destacado de comunicação e teve várias aparições no
programa de maior audiência da Rede Globo, o Jornal Nacional.
Além do contato com Malafaia, as Organizações Globo, por meio da
gravadora Som Livre, já contrataram grandes nomes do mercado da música
evangélica que têm, a partir daí, espaço garantido na programação da
Rede Globo. A Globo tirou da Rede Record, em 2011, o evento de premiação
dos melhores da música evangélica, tendo criado o Troféu Promessas. A
Rede Globo é também, a partir de 2011, patrocinadora de eventos
evangélicos como a Marcha para Jesus e de festivais gospel. Noticiário
inédito do mundo evangélico tem ganhado espaço na Rede, como por
exemplo, a matéria sobre a reeleição de José Wellington Bezerra à
presidência da Convenção Geral das Assembleias de Deus veiculada em
matéria de 1’44 no Jornal da Globo, de 1’52 na Globo News, em 11 de
abril, além de nota na CBN e no portal G1.
Neste contexto, o caso Marco Feliciano tem sido amplamente tratado
pela grande mídia. Feliciano já foi entrevistado por todos os grandes
veículos de imprensa e já participou dos mais variados programas de
entretenimento – de talk-shows a games. Foi tratado com simpatia na
entrevista de Veja e defendido pelo jornalista Alexandre Garcia em
comentário na Rádio Metrópole (5/4/2013) com o argumento de “liberdade
de opinião”. Fica nítido que estes veículos não desprezam a dimensão do
escândalo e da bizarrice relacionada ao caso, somada à atraente questão
da homossexualidade que mexe com as emoções e paixões humanas e expõe a
vida íntima de celebridades, como o caso da cantora Daniela Mercury que
veio à tona na trilha desta história.
No entanto, o amplo espaço dado para que Feliciano e seus aliados
exponham seus argumentos e sejam exibidos como simpáticos bons sujeitos
revela que estas personagens ganham um tratamento bastante afável em
comparação à execração imposta a outras em situações críticas da
política brasileira, como a que envolveu os parlamentares do PT. Não
temos aqui apenas os evangélicos como um segmento de mercado a ser bem
tratado, mas, retomando a constatação de que Feliciano, Malafaia e
Bolsonaro representam uma parcela conservadora da sociedade brasileira, é
possível que haja uma identidade entre estes líderes e quem emite e
produz conteúdos das mídias. Afinal, é a mesma mídia que constrói
notícias sobre crimes protagonizados por crianças e adolescentes de
forma a promover uma “limpeza” das cidades por meio de campanha por
redução da maioridade penal no Brasil, ou que veicula programas que
trazem enquetes durante um noticiário sobre crimes urbanos que indagam:
“Ligue XXX ou YYY para indicar qual pena merece o criminoso? XXX para
prisão ou YYY para morte”.
São transformações na relação mídia e religião, com efeitos
políticos, que merecem ser monitoradas e esclarecidas, tendo em vista a
complexidade das relações sociais, em especial no que diz respeito à
religião, e que devem ser potencializadas no ano eleitoral que se
aproxima.
Um paradigma
O caso Marco Feliciano pode ser considerado um paradigma pelo fato de
ser a primeira vez na história em que os evangélicos se colocam como um
bloco organicamente articulado, com projeto temático definido: uma
pretensa defesa da família. Com a polarização estimulada pelas mídias
entre o deputado Feliciano e ativistas homossexuais foi apagada a
discussão de origem quanto à indicação do seu nome em torno das
afirmações racistas e de seu total distanciamento da defesa dos direitos
humanos.
Torna-se nítida uma articulação política e ideológica conservadora em
diferentes espaços sociais – do Congresso Nacional às mídias – que
reflete um espírito presente na sociedade brasileira, de reação a
avanços sociopolíticos, que dizem respeito não só a direitos civis
homossexuais e das mulheres, como também aos direitos de crianças e
adolescentes, às ações afirmativas (cotas, por exemplo) e da Comissão da
Verdade, e de políticas de inclusão social e cidadania. Nesta
articulação a religião passa a ser instrumentalizada, uma porta-voz.
A postagem de um pastor de uma igreja evangélica no Facebook reflete
bem este espírito: “Devemos nos unir cada vez mais, já somos milhões de
evangélicos no Brasil, fora os simpatizantes. Temos força, é claro que
nossa força vem de Deus. Precisamos nos mobilizar contra as forças das
trevas, que querem desvirtuar os bons costumes e a moral e,
principalmente que querem afetar a honra da família. Se o meu povo que
se chama pelo meu nome se humilhar e orar, não tem capeta que resista”. E
as palavras de Marco Feliciano ecoam como profecia: “Graças a Deus
permanecemos firmes até aqui. Chegará o tempo que nós, evangélicos,
vamos ter voz em outros lugares. O Brasil todo encara o movimento
evangélico com outros olhos”.
Nesse sentido é possível afirmar que os grupos políticos e midiáticos
conservadores no Brasil descobriram os evangélicos e o seu poder de
voz, de voto, de consumo e de reprodução ideológica. A ascensão de Celso
Russomano nas eleições municipais de São Paulo, em 2012, já havia sido
exemplar: um católico num partido evangélico, apoiado por grupos
evangélicos os mais distintos. A eleição da presidência da CDH é
paradigmática no campo nacional e ainda deve render muitos dividendos a
Feliciano, ao PSC, à Bancada Evangélica e a seus aliados. O projeto
político que se desenha, de fato, pouco ou nada tem a ver com a defesa
da família… os segmentos da sociedade civil, incluindo setores
evangélicos não identificados com o projeto aqui descrito, que defendem
um Estado laico e socialmente justo, têm grandes tarefas pela frente.
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