Sistema Nacional de Cultura foi concebido para ser uma engrenagem complexa de gestão e promoção de políticas culturais de forma integrada, descentralizada e participativa.
Artigo publicado na Revista Fórum
4ª Conferência Nacional de Cultura. -Créditos: Valter Campanato/Agência Brasil
Essa dinâmica ficou evidente nos resultados da 4ª Conferência Nacional de Cultura. As propostas priorizadas, muitas delas classificadas pelo olhar atento do professor Albino Rubim como "propostas-ônibus", revelam um sintoma preocupante. Ao tentar abarcar uma multiplicidade de demandas em um único enunciado, essas propostas perdem foco, diluem prioridades e se tornam verdadeiros catálogos de intenções genéricas, com pouca ou nenhuma eficácia para a formulação de políticas públicas de cultura realmente estruturantes. A consequência direta é a dispersão de esforços e recursos, um obstáculo monumental para um sistema que depende de coesão e planejamento estratégico para funcionar.
Essa falta de visão estratégica é um reflexo direto da forma como a participação social tem sido exercida nos conselhos de política cultural, dos municipais, passando pelos estaduais e distrital, ao Conselho Nacional. A crítica do professor Humberto Cunha Filho, de que esses espaços se assemelham a "guildas medievais", é um diagnóstico preciso e incômodo. As guildas eram corporações de ofício que, na Idade Média, se fechavam para proteger os interesses de seus membros, muitas vezes em detrimento da inovação e do desenvolvimento da sociedade como um todo. Da mesma forma, muitos conselhos de política cultural, incluindo o CNPC, se tornaram arenas onde representantes de segmentos específicos atuam de maneira intransigente na defesa de suas pautas particulares, por mais legítimas que sejam.
O problema não reside na representação setorial em si, que é um pilar da democracia participativa, mas na incapacidade de transcender essa representação. Quando a principal energia dos conselheiros é gasta em "renitentes reivindicações de poderes e recursos para segmentos culturais", como aponta Cunha Filho, perde-se a oportunidade de realizar uma "análise conjuntural ou mesmo estrutural" dos desafios do campo cultural. A legitimidade de um conselho, afinal, não deveria emanar apenas de sua composição paritária, mas de sua capacidade de gerar ideias, diagnósticos e propostas que fortaleçam a cultura como um direito de todos e todas.
Essa atuação segmentada é, em grande parte, fruto de uma incompreensão fundamental sobre a natureza do Sistema Nacional de Cultura. O SNC não é um mero balcão de distribuição de recursos ou um aglomerado de políticas setoriais. Ele foi concebido para ser um pacto federativo, uma engrenagem complexa de gestão e promoção de políticas culturais de forma integrada, descentralizada e participativa. Seu objetivo é articular os entes federados (União, estados e municípios) e a sociedade civil em torno de objetivos comuns, definidos no Plano Nacional de Cultura (PNC). Quando os atores envolvidos, sejam gestores públicos ou conselheiros, não compreendem essa dimensão sistêmica, a tendência é que cada um puxe para o seu lado, enfraquecendo o conjunto.
As derrotas, portanto, são sistemáticas porque o próprio sistema é corroído por dentro. A falta de propostas claras e estratégicas impede a formulação de políticas eficazes. A atuação corporativista nos conselhos legitima a fragmentação em vez de promover a coesão. E a incompreensão do que é o SNC impede que ele seja defendido e aprimorado em sua totalidade. O resultado é um ciclo histórico e vicioso que perpetua a fragilidade das políticas culturais no Brasil.
Superar esse quadro exige um esforço coletivo de pactuação. É preciso investir massivamente na formação de gestores e conselheiros, para que compreendam a complexidade do SNC e o seu papel estratégico, para além da representação de seus pares. Os conselhos precisam ser ressignificados como "usinas de ideias", espaços de produção de conhecimento, de formulação, fiscalização e pactuação de políticas culturais. Por fim, é crucial que a sociedade civil cultural, em sua diversidade, entenda que o fortalecimento do Sistema Nacional de Cultura é a maior garantia de que os direitos culturais de todos e todas, e não apenas os interesses de alguns, sejam efetivamente assegurados.
*Daniel “Samam” Barbosa Balabram é músico, educador e está no Ministério da Cultura (MinC) como coordenador-geral do Conselho Nacional de Política Cultural - CNPC e coordenou a 4ª Conferência Nacional de Cultura - 4ª CNC.
Conversando com Neri Silvestre sobre o artigo acima- Papo reto sobre politicas públicas de cultura, gestão, produção e ação cultural. (3)
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Neri Silva Silvestre: Produtor cultural, articulador e gestor cultural, idealizador do Sarau na Quebrada, poeta e agitador cultural. Sempre foi um sujeito inquieto. Quando jovem lança com o grêmio escolar, o Jornal Macunaíma, daí não parou mais. Esteve à frente como coordenador do 1° Ponto de Cultura de Santo André (SP) de 2010/2013. Produziu inúmeros eventos que vão da música à literatura.


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