segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

A incompreensão do SNC e a armadilha dos interesses segmentados - Por Daniel Samam com comentário de Neri Silvestre (debatedor).

Sistema Nacional de Cultura foi concebido para ser uma engrenagem complexa de gestão e promoção de políticas culturais de forma integrada, descentralizada e participativa.

Artigo publicado na Revista Fórum

4ª Conferência Nacional de Cultura. -Créditos: Valter Campanato/Agência Brasil


O Sistema Nacional de Cultura (SNC), uma das mais ambiciosas e inovadoras arquiteturas de política pública do mundo, enfrenta derrotas sistemáticas que minam seu potencial transformador. Longe de serem causadas por um único fator, essas fragilidades nascem de uma combinação impiedosa: a profunda incompreensão sobre o que o SNC de fato representa e uma prática de gestão e de participação social que, em vez de focar na construção do bem comum, se cristalizou na defesa de interesses segmentados, operando de forma análoga às guildas medievais.

Essa dinâmica ficou evidente nos resultados da 4ª Conferência Nacional de Cultura. As propostas priorizadas, muitas delas classificadas pelo olhar atento do professor Albino Rubim como "propostas-ônibus", revelam um sintoma preocupante. Ao tentar abarcar uma multiplicidade de demandas em um único enunciado, essas propostas perdem foco, diluem prioridades e se tornam verdadeiros catálogos de intenções genéricas, com pouca ou nenhuma eficácia para a formulação de políticas públicas de cultura realmente estruturantes. A consequência direta é a dispersão de esforços e recursos, um obstáculo monumental para um sistema que depende de coesão e planejamento estratégico para funcionar.

Essa falta de visão estratégica é um reflexo direto da forma como a participação social tem sido exercida nos conselhos de política cultural, dos municipais, passando pelos estaduais e distrital, ao Conselho Nacional. A crítica do professor Humberto Cunha Filho, de que esses espaços se assemelham a "guildas medievais", é um diagnóstico preciso e incômodo. As guildas eram corporações de ofício que, na Idade Média, se fechavam para proteger os interesses de seus membros, muitas vezes em detrimento da inovação e do desenvolvimento da sociedade como um todo. Da mesma forma, muitos conselhos de política cultural, incluindo o CNPC, se tornaram arenas onde representantes de segmentos específicos atuam de maneira intransigente na defesa de suas pautas particulares, por mais legítimas que sejam.

O problema não reside na representação setorial em si, que é um pilar da democracia participativa, mas na incapacidade de transcender essa representação. Quando a principal energia dos conselheiros é gasta em "renitentes reivindicações de poderes e recursos para segmentos culturais", como aponta Cunha Filho, perde-se a oportunidade de realizar uma "análise conjuntural ou mesmo estrutural" dos desafios do campo cultural. A legitimidade de um conselho, afinal, não deveria emanar apenas de sua composição paritária, mas de sua capacidade de gerar ideias, diagnósticos e propostas que fortaleçam a cultura como um direito de todos e todas.

Essa atuação segmentada é, em grande parte, fruto de uma incompreensão fundamental sobre a natureza do Sistema Nacional de Cultura. O SNC não é um mero balcão de distribuição de recursos ou um aglomerado de políticas setoriais. Ele foi concebido para ser um pacto federativo, uma engrenagem complexa de gestão e promoção de políticas culturais de forma integrada, descentralizada e participativa. Seu objetivo é articular os entes federados (União, estados e municípios) e a sociedade civil em torno de objetivos comuns, definidos no Plano Nacional de Cultura (PNC). Quando os atores envolvidos, sejam gestores públicos ou conselheiros, não compreendem essa dimensão sistêmica, a tendência é que cada um puxe para o seu lado, enfraquecendo o conjunto.

As derrotas, portanto, são sistemáticas porque o próprio sistema é corroído por dentro. A falta de propostas claras e estratégicas impede a formulação de políticas eficazes. A atuação corporativista nos conselhos legitima a fragmentação em vez de promover a coesão. E a incompreensão do que é o SNC impede que ele seja defendido e aprimorado em sua totalidade. O resultado é um ciclo histórico e vicioso que perpetua a fragilidade das políticas culturais no Brasil.

Superar esse quadro exige um esforço coletivo de pactuação. É preciso investir massivamente na formação de gestores e conselheiros, para que compreendam a complexidade do SNC e o seu papel estratégico, para além da representação de seus pares. Os conselhos precisam ser ressignificados como "usinas de ideias", espaços de produção de conhecimento, de formulação, fiscalização e pactuação de políticas culturais. Por fim, é crucial que a sociedade civil cultural, em sua diversidade, entenda que o fortalecimento do Sistema Nacional de Cultura é a maior garantia de que os direitos culturais de todos e todas, e não apenas os interesses de alguns, sejam efetivamente assegurados.

*Daniel “Samam” Barbosa Balabram é músico, educador e está no Ministério da Cultura (MinC) como coordenador-geral do Conselho Nacional de Política Cultural - CNPC e coordenou a 4ª Conferência Nacional de Cultura - 4ª CNC.

Conversando com Neri Silvestre sobre o artigo acima- Papo reto sobre politicas públicas de cultura, gestão, produção e ação cultural. (3)

























SNC para cidadania.

No domingo, comecei lendo algo em que realmente acredito, algo que consigo imaginar e sentir como futuro das políticas culturais, a partir das reflexões de Daniel Samam. A verdade é que, há algum tempo, participo de conselhos; foi por isso que fui estudar e sigo me atualizando sempre, não apenas por interesse pessoal, mas por cidadania.

A ideia pode até parecer ingênua, mas não é. Quando eu era mais novo, via o monte de reuniões, as vigílias, os momentos de prontidão e a luta em que minha mãe estava envolvida. Não seria possível não desejar um futuro melhor.

Esse percurso também me atravessa de outro jeito: sinto muito se não correspondo às expectativas dos outros. Nunca correspondi. Sempre houve barreiras, e, ainda assim, sigo.

Comecei em 1995, no conselho de escola. Depois passei por outros conselhos e continuei observando a mesma realidade: a inexistência de formação, poderes absoluto como de um rei, uma rainha, e o abandono da cidadania, tratada como algo menor ou até indesejável. E participei do Conselhos de turismo, assistência social, educação, de política cultural e, por último, o da creche aqui da vila.

Os colegiados foram criados com o intuito de ampliar as formas de participação. Como diz Daniel, é preciso mudar o formato, encontrar caminhos para uma gestão compartilhada, com pactuação real, produzir conhecimento e modelos que contribuam com a governança das políticas culturais. Como nos lembra Milton Santos, a cidadania que ele pensou precisa de atualizações e a nossa participação também.

Sabemos bem que o modelo de governança ainda é medieval e sem sentido no mundo contemporâneo. A população precisa de ferramentas pensadas por ela mesma, não só nas políticas culturais, mas para o conjunto da sociedade.

E então voltamos ao ponto central e entendemos, pela prática, que no Sistema Nacional de Cultura, tem como instrumento e gestão "democrática" e o fundamental está no controle social.

Lembrando novamente Daniel: a lógica setorizada, dividida estritamente pelas artes e setorias, gera disputas, ainda que legítimas, entre grupos e interesses. E o edital é a grande ferramenta das disputas.
Precisamos compreender que o sistema pode estruturar a cultura e as políticas culturais com foco no bem comum.

Neri Silva Silvestre: Produtor cultural, articulador e gestor cultural, idealizador do Sarau na Quebrada, poeta e agitador cultural. Sempre foi um sujeito inquieto. Quando jovem lança com o grêmio escolar, o Jornal Macunaíma, daí não parou mais. Esteve à frente como coordenador do 1° Ponto de Cultura de Santo André (SP) de 2010/2013. Produziu inúmeros eventos que vão da música à literatura.

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