sábado, 3 de setembro de 2022

Bolsonaro e sua guerra cultural

 Por Luiz Carlos Checchia

É muito comum que se diga que o governo de Bolsonaro não se preocupa com a cultura, e comprova tal afirmação apontando o rebaixamento do extinto Ministério da Cultura à condição de secretaria nacional, à falta de investimentos, às tresloucadas decisões tomadas pelo presidente da Fundação Palmares, às barbaridades que os ex-secretários nacionais de cultura proferiram e realizaram, como Roberto Alvim e sua “imitação” de Goebbels, Regina Duarte dizendo que não se deveria falar de ditadura para “deixar os mortos em paz” e à truculência de Mario Frias, apenas para citar poucos exemplos.

Mas somos obrigados a discordar dessa afirmação, e dizer, que pelo contrário, Bolsonaro e o bolsonarismo se preocupam, e muito, com a cultura, fazendo dela uma de suas principais trincheiras. O principal ideólogo do bolsonarismo, Olavo de Carvalho, já dizia, décadas antes da candidatura do ex-capitão à Presidência da República, que a principal guerra para transformar o mundo era a que se deveria travar no campo da cultura: a guerra cultural.

Daí ser um dos principais formadores de quadros militantes da extrema-direita brasileira tendo por base seus cursos e suas palestras, a filosofia, a produção artística e literária, a educação e a comunicação. Por seus diversos cursos passaram centenas, talvez milhares de pessoas que foram intelectualmente formadas nesse campo, segundo premissas ultra-conservadoras. Naturalmente que muita gente dirá que Olavo nunca foi um intelectual e que, portanto, não poderia formar intelectualmente ninguém, e quem quer tenha passado pelos seus cursos pode ser chamado de muitas coisas, mas nunca de pensador e teórico.

Podemos discordar de absolutamente tudo o que ele escreveu e disse, no entanto, para quem se debruça sobre o que ele publicou, sabe que há certo refino e elaboração em suas teses, que vão muito além das grosserias que vociferava em seus vídeos no YouTube. E foi ele quem cravou, acertadamente, que a centralidade da luta política está na cultura.

E o bolsonarismo, a despeito das dificuldades cognitivas de muitos de seus quadros e suas lideranças, tem tentado, com certo sucesso, tocar uma agenda cultural que poderá se manter para muito além da provável derrocada eleitoral do atual presidente. Destaco alguns pontos dessa agenda: a educação, a comunicação de massa e a religião. Parece estranho que esses pontos sejam associados à cultura, todavia, o que ocorre é uma antiga e popular confusão entre “cultura” e “expressões artísticas”.

Para dirimir tal confusão e nos ajudar a compreender nosso entendimento, faremos, a seguir, dois parágrafos explicando a questão da cultura em sentido amplo e profundo, e só depois, então, abordaremos a questão da educação, da comunicação de massa e a religião na centralidade da guerra cultural bolsonarista.

Cultura para além do imediato

Em diversos de seus escritos, dos quais destacamos o livro Cultura e Sociedade, e os artigos Cultura é Algo Comum e A Ideia de Cultura Comum, o sociólogo da cultura Raymond Williams cunhou o termo “cultura comum” para expressar seu entendimento do que é cultura numa abordagem densa e profunda e articulando a relação entre as tradições e as inovações que transformam as sociedades.

Dessa maneira, ele conseguiu superar uma dicotomia comum às análises culturais que opõem a ideia de “indivíduos criativos” à de “comunidade”: ou seja, ora as análises culturais abordavam tão somente a produção de sujeitos, como os artistas e os intelectuais, ou então abordavam apenas as construções comunitárias, como memória, comportamento, língua e tradição.

Williams conseguiu articular ambos aspectos afirmando, primeiramente, que as gerações formam seus construtos culturais por meio da prática cotidiana, da memória, da transmissão de conhecimentos e costumes entre as gerações. É um processo marcado, evidentemente, por pressões e opressões, em que as camadas dirigentes se utilizam de sua força política e/ou militar para selecionar o que será preservado como memória e costumes e o que deve ser “esquecido” e apagado.

E assim, a experiência comunitária é passada de geração em geração, acumulando-se, formando o universo cultural de cada povo; nas palavras de Marx, em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte: “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.

É parte dos processos de desenvolvimento das culturas a formação das instituições que organizam as comunidades, e nas sociedade mais desenvolvidas, as instituições de ensino têm um papel de destaque, afinal, são aparelhos ideológicos de Estado, na concepção althusseriana, e cumprem importante tarefa de, desde as mais tenras idades, “ensinar” às pessoas quais os significados e sentidos que devem determinar a vida comum.

Cultura para além do imediato

Mas, segundo Williams, a cultura não se restringe à produção comunitária. Ainda segundo ele, alguns dos indivíduos formados segundo as bases culturais de cada sociedade, podem desenvolver elevada capacidade de compreensão, de crítica e de elaboração filosófica e, a partir disso, prestar profundas contribuições à essa mesma sociedade que os formou. Fazem isso por meio de produções literárias, filosóficas, científicas, políticas ou artísticas que questionam o que até então é tido por natural e comum. E essa dinâmica provoca ajustes e mudanças em todo o arcabouço cultural.

Como exemplo, podemos pensar no poeta brasileiro Castro Alves, que questionando a instituição da escravidão no Brasil por meio de obras como O navio Negreiro, contribuiu na denúncia e na desnaturalização da bárbarie que é o trabalho escravizado.  

Bolsonaro e a educação

Vemos assim, então, que cultura é algo muito mais denso, profundo e complexo do que apenas a produção artística pensada isoladamente. E enquanto protestamos contra o desprezo com que Bolsonaro lidou com o incêndio da Cinemateca Nacional, por exemplo, acabamos por não ver que investe na cultura, mas em seu sentido mais amplo, e o faz visando deitar raízes fortes o bastante para influenciar gerações futuras mesmo depois de sair do governo.

Nesse bojo, a matéria da jornalista Christina Queiroz, publicada pelo portal Nexo, em 14 de março do ano passado, afirma que, até aquela data, já havia mais de 500 escolas militarizadas no Brasil. Parece um número pequeno, frente às milhares de escolas de ensino fundamental e médio existentes no país, mas, além do atual governo ter criado a Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares (Secim), por meio do decreto 9.465, que tem como tarefa organizar e incentivar a militarização de parte das escolas pelo país, a Agência Brasil informou, em 24 de novembro do ano passado, que já havia uma lista de espera com mais de 300 municípios interessados no programa. A matéria publicada pelo Nexo também informa que as escolas militarizadas são aprovadas pela imensa maioria das famílias de seus alunos.

Mas a atuação do bolsonarismo no ensino não se dá apenas pela presença de militares na organização do ensino, ela também ocorre por meio do legado do projeto “Escola Sem Partido”. Embora propostas de lei baseada nele tenham sido consideradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, o fato é que hoje a luta contra a suposta “ideologização do ensino”, defendida pelo “Escola Sem Partido”, tornou-se comum nas bocas de diversas pessoas de diferentes camadas da população.

Infelizmente, essas pessoas continuam a acreditar que devem manter-se vigilantes contra professores que querem influenciar seus filhos com “ideologias de gênero”, “comunismo” e toda sorte de ideias que, acreditam, visam destruir a família tradicional brasileira. Ou seja, mesmo barrado pela justiça, a proposta alcançou tamanha exposição que conseguiu influenciar muita gente. As premissas do projeto “Escola Sem Partido” tornaram-se parte de nossa cultura. 

A comunicação de massa e o bolsonarismo

Alguns veículos de comunicação de massa se tornaram potentes disseminadores do bolsonarismo. Há diversos canais de YouTube, por exemplo, de imenso sucesso que poderiam ser citados, como a produtora de documentários Brasil Paralelo ou o humorista Hipócritas, mas ficaremos, aqui, com o programa de rádio (e que também é veiculado pelo YouTube e pela TV a cabo) Pânico.

Trata-se de um dos mais tradicionais do rádio brasileiro, sendo transmitido pela Jovem Pan desde 1993. Capitaneado pelo comunicador  Emílio Surita, desde sua estreia, o programa se tornou uma verdadeira frente bolsonarista, tendo sua bancada formada por humoristas e jornalistas que em sua maioria fazem aberta defesa das políticas do atual presidente. 

Cada episódio do Pânico ocorre entre piadas e informações (parte delas muito duvidosas), interações com o público, gracejos espontâneos e até uma dose de “opiniões contrárias” que, segundo os participantes, atestam o caráter democrático do programa. E assim mantém uma grande e cativa audiência construída ao longo dos anos, a ponto de ser uma espécie de coringa na programação do grupo Jovem Pan.

Esse é o motivo pelo qual, atualmente, o Pânico é veiculado simultaneamente no rádio, no YouTube e na TV. É interessante destacar que, segundo o jornalista Guilherme Ravache escreveu em sua coluna no Notícias da TV, no portal UOL, no dia 24 de junho deste ano, a Jovem Pan tem boa parte de seus anunciantes constituídos por empresários bolsonaristas.

Isso significa que setores privados financiam a formação, o compartilhamento e a legitimação de sentidos e significados de algo que podemos chamar de campo simbólico bolsonarista ou, simplesmente, cultura bolsonarista. Mas, não custa repetir, o programa Pânico é só mais um dos veículos de comunicação de massa que compõem esse verdadeiro arsenal de uma guerra cultural.

Por fim, a religião

Não é de agora que a religião é politizada. O próprio termo “guerra cultural” surge quando a Igreja Católica assume uma posição política conservadora e se opõe à modernização da sociedade, fenômeno que se inicia com a ascensão e a consolidação da burguesia e, logo depois, com a emergência do socialismo.

Esse posicionamento da Igreja começa com o papa Gregório XVI, que assume o trono de Pedro em 1831. Na ocasião, a Igreja estava enfraquecida, perdendo fiéis e, ainda, tendo suas representações submetidas aos governos dos Estados-nação. No ano seguinte à sua posse, Gregório XVI publicou a encíclica Mirari Vos, em que condena o liberalismo, a liberdade de expressão e de imprensa.

Seus sucessores, Pio IX e Leão XIII mantiveram a luta pelo reerguimento da fé católica e em oposição ao liberalismo e ao socialismo. Leão XIII, em particular, foi quem publicou a encíclica Rerum Novarum, em 1891, e nela condena o socialismo e conclama a burguesia a se esforçar em garantir o bem estar da classe trabalhadora por meio do corporativismo e do assistencialismo.

Esse amplo movimento que se inicia com Gregório XVI não apenas levou a Igreja Católica a reencontrar seus fiéis, mas sobretudo, a encontrar ressonância junto a políticos e organizações conservadoras. 

O que é mais marcante nesse processo é que ele é um ponto de inflexão numa luta que só se acirrou desde então, entre o que podemos chamar genericamente de progressistas e conservadores, como fez o sociólogo Karl Mannheim. Essa separação é um fenômeno moderno que envolveu o fim do monopólio da Igreja Católica como único organizador dos aparelhos ideológicos de Estado, a hegemonização burguesa da sociedade, o surgimento da moderna classe trabalhadora e suas organizações políticas e o início dos processos revolucionários. Tudo isso em ambientes de urbanização das sociedades e de democratização da cultura de massa, permitindo que mais e mais pessoas, inclusive trabalhadores, tivessem acesso à leitura de jornais e revistas. Assim, àqueles que viam a possibilidade de drásticas transformações da sociedade, os conservadores opunham-se cada vez mais entrincheirados e organizados.

Para finalizar

A cultura é mais que produções artísticas, patrimônios ou organização e preservação da memória. Nos termos de Williams, cultura é o conjunto de significados e sentidos elaborados na vida comunitária, geração após geração, e que, ao fim e ao cabo, estruturam as mais profundas relações cotidianas. E o bolsonarismo tem investido demais nesse universo, moldando as formas de ver, pensar e sentir o mundo de gerações futuras.

Se hoje nos horrorizamos com quase um terço da população que incondicionalmente defende Bolsonaro, essa margem de pessoas pode ser ainda maior em um futuro próximo. A única forma de evitar esse devir desastroso e nos armamos de conhecimento acerca da guerra cultural bolsonarista e disputarmos o campo simbólico. Afinal de contas, é nele, no campo simbólico, que se forja continuadamente os significados e sentidos do Brasil que virá.

Luiz Carlos Checchia é historiador, mestre e doutorando em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades pela FFLCH-USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo), dramaturgo,  diretor teatral, co-fundador e integrante da Cia Teatro dos Ventos e membro da Ação Revolucionária Comunista.


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