Foto: Portal Caldeirão do Paulão
Ordep Serra*
Já se tornou uma verdade nua e crua, incontornável, um fato cuja
constatação se impõe até aos mais obtusos, a profunda crise do carnaval
baiano — crise que agora toma jeito de agonia violenta, suja, com
espasmos brutais. Não há como confundir com vitalidade esses estertores
do gigante drogado. O buraco é mais embaixo e não dá para esconder.
Para começo de conversa, o carnaval de Salvador já não é de Salvador.
De acordo com as estatísticas, apenas 22% dos soteropolitanos
participam dele. Mas de modo desigual, é preciso que se diga. Pois
muitos participam da grande festa sem festejar, ou seja, trabalhando em
condições mais que precárias: uns, na condição servil de “cordeiros”;
outros a espremerem-se pelas ruas, vendendo cerveja e petiscos miúdos,
enfeites etc.; ou ainda catando latas dia e noite. A miséria dos
“cordeiros” é explorada de forma obscena e a triste instituição do bloco
de cordas se mantém ano após ano, com o beneplácito das nossas
autoridades, decerto empenhadas em honrar as tradições escravistas da
Bahia. Os amos do bloco até alegam que com isso oferecem uma
oportunidade de ganho a pessoas necessitadas. É verdade que elas o são: a
espantosa pobreza de Salvador, fruto de desgoverno e insensibilidade
social, recruta facilmente homens e mulheres para esse tipo de trabalho.
É ela também que leva famílias inteiras a dormir na rua durante a bela
festa, sacrificando-se para obter um pequeno aumento de suas rendas com
um inseguro comércio. Para isto fazem vigília, no tumulto carnavalesco;
dormem pelas manhãs na promiscuidade e na sujeira, nas calçadas ou nos
escassos gramados, entre bêbados e lixo. Ou em barraquinhas
improvisadas, que tomam calçadas e bloqueiam a entrada de inúmeros
prédios na Barra, por exemplo.
Não vamos negar que o carnaval baiano distribui renda. Ele o faz de
diversas formas. Ladrões e narcotraficantes também têm sua chance. Mas o
grande lucro fica com poucos.
Claro, há o turismo que enche os hotéis; há os promoters, donos de
blocos e de camarotes, as cervejarias e seus propagandistas. Os
trabalhadores qualificados do carnaval têm seu ganho, muito suado…
quando não levam calote, como acontece frequentemente com músicos
contratados pelo município, cujas queixas ecoam por meses na imprensa.
Também os “cordeiros” são com frequência caloteados.
Ao cabo, a festa repete o esquema comum de nossa economia: a alta,
absurda, imoral concentração de renda. O prejuízo sempre fica para a
cidade.
No ano de 2010, o prefeito chegou a declarar, queixando-se do governo
do Estado, que por falta de ajuda ele via-se obrigado a desviar verbas
da saúde e da educação para o carnaval. Desmentiu a declaração, mas os
jornalistas reafirmaram o que tinham ouvido e gravado. Não deu em nada
porque, em nosso incipiente projeto de democracia, nem mesmo quando
confessam cinicamente seus desmandos os governantes precisam
incomodar-se com os rigores da lei.
De qualquer modo, uma coisa é certa: o carnaval de Salvador não dá
grande retorno aos cofres públicos. Dá mesmo é prejuízo. De diversos
tipos.
No ano de 2011, a grande boutade carnavalesca foi uma
declaração da cantora Cláudia Leite, que caracterizou os dois principais
circuitos da folia soteropolitana a partir dos respectivos públicos:
segundo ela, na Avenida Sete – Campo Grande predomina o povo; na Barra (no circuito Barra – Ondina) predomina a gente bonita.
Sórdido racismo e grosseiro preconceito classista transparecem na
declaração, fruto da involuntária e irrefletida sinceridade da
“estrela”, equiparável à inconsciente (e momentânea) franqueza do
prefeito. Mas o que a cantora boquirrota verbalizou está bem arraigado
no modo de pensar da minoria hoje hegemônica no carnaval da Boa Terra. A
“gente bonita” é a que veste os disputados abadás, protege-se com as
cordas e os corpos de pessoas carentes do povo e se diverte seguindo seus enormes trios
nos blocos privilegiados. A propósito, recorde-se o que dizem os
felizes mercadores do carnaval baiano: 80% desses abadás são vendidos
para turistas, para gente de fora da Bahia.
Mais uma evidência de que o famoso carnaval de Salvador já não é de Salvador.
Tampouco se pode dizer que esta é hoje uma festa popular.
Basicamente é uma festa de gente rica que tolera marginalmente uma fatia
do povão. Fotos eloquentes mostram a distribuição desigual da folia
soteropolitana: em camadas espremidas nas margens, gente negra ladeia o
grande rio branco de foliões privilegiados. O nosso vergonhoso apartheid
faz-se transparente nessas cruas imagens.
Salvador é hoje a capital mais suja do Brasil e uma das mais
violentas. Tem uma população miserável vivendo precariamente em
habitações subnormais, na periferia e no chamado miolo. Encontram-se
também aqui áreas onde prevalece um alto IDH e outras, muitas, em que o
índice de desenvolvimento humano compete com o dos países mais pobres da
terra. As chagas da desigualdade obscena, da segregação e da degradação
ambiental corrompem o tecido urbano. A ausência de planejamento e a
infrene ganância imobiliária desfiguram o território, diminuindo a
qualidade de vida dos habitantes; mesmo nas chamadas “áreas nobres” se
percebe a degradação. Basta olhar para a orla progressivamente
desfigurada. Salvador está falida, à beira de um colapso, com um
trânsito caótico, com suas áreas verdes devastadas, os serviços públicos
de saúde e educação comprometidos. Tudo isso se reflete (e se agrava)
no seu carnaval.
Vou considerar apenas o principal circuito carnavalesco de Salvador, o
de Barra – Ondina. É nele que prevalece a tal da “gente bonita”. Sob
vários aspectos, este circuito pode ser considerado o pior. As
estatísticas policiais o denunciam como o mais violento, com 80% dos
delitos registrados. É também um circuito imundo. A quantidade de lixo
aí produzida na semana momesca vem a ser aterradora. O trabalho da
limpeza urbana, por mais ágil que seja, mal pode dar conta de tanta
sujeira. De resto, remove apenas a parte superficial da imundície. Muita
porcaria fica agarrada às calçadas, ou se entranha nas areias da praia,
ou vai poluir as águas do mar. O solo submarino nesta parte da orla se
transforma numa grande lixeira. Os sucessivos clean-ups depois
dos grandes eventos que infestam a área se parecem muito com uma
operação enxuga-gelo. Montanhas de latas de cerveja são recolhidas pelos
mergulhadores; mas nada se faz para que esta poluição não se repita.
Não há campanha pública educativa, não há qualquer restrição à prática
deletéria que degrada uma das mais belas praias urbanas do mundo. A
coisa se repete sistematicamente. Neste carnaval, fotografaram um belo
exemplo: o lixo acumulado no camarote do prefeito.
Sanitários químicos (poucos para a massa de usuários momescos) são
colocados neste trecho da orla (Barra – Ondina) dominado pelo carnaval,
durante a semana festiva. Mas urinar (e até mesmo defecar) na praia, nos
seus rochedos, ou até na calçada, constitui um hábito reforçado pela
indiferença das autoridades. No Porto da Barra, mija-se de preferência
no Marco de Fundação da Cidade do Salvador. Nas areias imundas, nas
calçadas fétidas, muita gente dorme, cedendo ao cansaço, à bebedeira, ao
embalo de drogas. Não é difícil encontrar pessoas que cedem à fadiga ou
à embriaguez estirando-se indiferentemente em meio ao lixo. Disso
também há fotos ilustrativas.
Não falta, tampouco, a poluição visual. A “decoração” carnavalesca de
Barra – Ondina, neste ano de 2011, consistiu em cartazes com formato
aproximado de pandeiros, de colorido berrante, contendo no interior do
seu círculo, em quadrados também multicores, logomarcas de cervejarias;
misturadas a elas, viam-se (em menor número) as da Prefeitura, do
Governo do Estado e da Petrobrás, no mesmo formato e desenho com briga
de cores, de tremendo mau gosto. Um imenso cartaz no alto do edifício
Oceania — um prédio tombado pelo IPAC — explicava tudo: “carnaval é cervejão”.
Com efeito, quem andasse por aí já na quarta pré-carnavalesca,
deslocando-se entre imensos balões de propaganda, poderia pensar que
estava em curso uma estupenda festa da cerveja, e que a elevação do
consumo desta bebida é de interesse máximo do Estado. No morro do
Cristo, os grotescos pandeiros eram enormes e dominavam completamente a
bela paisagem; a estátua que tantos veneram via-se praticamente esmagada
pela dimensão agressiva dos cartazes. Essa decoração poluente que
entrega uma bela paisagem a um marketing grotesco se justifica alegando
que corresponde ao generoso investimento de cervejarias, retribui as
cotas com que financiam, em parte, o carnaval. Ótimo negócio para elas:
investem, no fim das contas, em sua promoção, em um evento de que
auferem grandes lucros. Para a cidade, nem sobras.
Mas isso nada é em face da imensa, espantosa, grotesca poluição
sonora, que passa por coisa inteiramente normal na semana de Momo.
Dezenas de trios elétricos desfilam a noite inteira, a todo volume,
nesse malfadado circuito. A coisa começa de tarde e termina de
madrugada. Só quem tem absoluto desprezo pela verdade pode garantir que
esses tanks sonoros se limitam, então, aos já absurdos 130 decibéis
admitidos oficialmente. O altíssimo volume de som é o grande charme
desses palcos ambulantes, em que, quase sempre, o estrondo substitui a
musicalidade. Desconsidera-se ainda o fato de que são muitos trios a somar, por horas seguidas, o seu impacto sonoro, num pequeno trecho da cidade, densamente habitado.
Para quem quer, aprecia, deseja e se submete de bom grado a isso,
está ótimo. Mas não se leva em conta o fato de que nos bairros do
circuito há também moradores que desejam dormir, querem sossego,
precisam de repouso; que aí há crianças, idosos, enfermos e também gente
adulta, sadia, que não se interessa pela folia, muito menos pelo
barulho.
Para nossas complacentes autoridades, isso não tem importância.
Direitos básicos de quem mora na área carnavalizada são eclipsados,
suspensos, suprimidos, apagados ou violentamente restringidos por longo
período, como se isso tivesse alguma base ética ou jurídica; como se
fosse compatível com a democracia, a liberdade, a decência; como se
fosse coisa normal. Numa cidade em que a mobilidade urbana já é
crítica, o direito de ir e vir dos moradores dessa parte da orla e de
outros trechos da urbe se vê severamente limitado por longo tempo. O
sono é proscrito para muitos; o sossego fica proibido. Quem não quer
ensurdecer que se mude. E se quer paz, dane-se. É carnaval! Quem não
deseja ver danificada sua casa, seu edifício ou seu estabelecimento de
comércio, providencie tapumes e arque com os gastos, pois o poder
público não tem nada com isso. Mas prepare-se direito, pois a coisa
piora dia a dia: daqui a pouco será necessário blindar as janelas,
porquanto os tiroteios entraram em moda nas festas da Barra (neste
último carnaval, a polícia apreendeu várias armas de fogo entre os
foliões, no circuito da gente bonita).
Na lógica dos donos da folia, mais importante que o direito dos
cidadãos é o dinheiro gordo de alguns, o livre crescimento do capital no
mercado da alegria, que não dá nenhum retorno aos bairros explorados:
que os deixa imundos, depredados, arrasados, para glória e lucro de
poucos. O direito à saúde pública desaparece. O valor do patrimônio
histórico e artístico é menosprezado. O gramado do Forte da Barra, há
pouco recomposto, foi brutalmente pisoteado neste último carnaval e
transformado, simultaneamente, em cama e lixeira de muitos. Aqui, pelo
jeito, moradores não contam. Só existem enquanto cidadãos na hora de
pagar o IPTU, sempre muito alto, pois então — mas só então — Barra e
Ondina passam a ser “áreas nobres”. A taxação é pesada e inexorável para
quem sofre os desmandos carnavalescos. Os donos da folia sabem que
podem usar e abusar do espaço público; a conta da depredação nunca lhes
será cobrada. Grandes blocos até já se beneficiaram de gracioso perdão
fiscal.
Os donos da folia caracterizam sua promoção como cultural,
reclamam verbas públicas destinadas à área da cultura. Mas é difícil
encontrar qualquer coisa de criativo e interessante no circuito da gente bonita.
A criatividade e a beleza, o humor, a crítica, a inteligência, são
ainda encontráveis (cada vez menos) no carnaval baiano, mas não no
espaço que se considera o mais privilegiado dessa folia. Os blocos afros
continuam belos, o Filhos de Ghandi ainda encanta, há graça nas
Muquiranas e na Mudança do Garcia — cada vez mais espremida e restrita,
tolerada de má vontade pelos organizadores do festejo carnavalesco —,
assim como no Jegue de Cueca e em outros grupos populares de fato,
marginalizados no atual modelo do momo de Salvador. O trio elétrico
agigantou-se e multiplicou-se cancerosamente, nos currais dos blocos de
cordas; nessa reprodução descontrolada e deformadora, o delicioso
invento de Dodô e Osmar limitou-se à função de palco de estrelas
atléticas de shows do mesmo tipo. Em poucos trios se faz, atualmente,
música de qualidade; e são menos ainda os que seguem o caminho dos
inventores, cuja alegria era animar os pipocas. Parece que neste ano a
grande “inovação” da festa baiana, pelo menos no circuito Barra Ondina
foi… a techno-music. Os disc-jockeys “importados” passam a reger este
carnaval. Em que há pouca dança. Muitos dos foliões passam longas horas a
caminhar de um lado para o outro, à espera de que surja a estrela e dê
seu show, fazendo-os agitar-se quase mecanicamente. Seja como for, os
donos da folia insistem em que o carnaval é o supra-sumo da cultura
baiana. Deve-se concluir que são obras primas da Bahia o rebolation, o
chupa toda etc. Também há quem afirme que a sujeira e o barulho “fazem
parte” da cultura baiana. Mas o povo baiano com certeza não merece o
insulto.
* Graduado em Letras pela UNB, Mestre em Antropologia Social pela UNB e
Doutor em Antropologia pela USP. Professor Associado do Departamento de
Antropologia da FFCH / UFBA. Professor Permanente do Programa de
Pós-Graduação em Antropologia da UFBA; Prof. participante do Programa de
Pós-Graduação em Saúde Coletiva e do Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais da UFBA. Membro da Associação Brasileira de
Antropologia, da SBPC, da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos e da
Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia. Membro fundador do
Grupo de Pesquisa “Encruzilhada dos Saberes”. Fundador e Coordenador do
Grupo Hermes de Pesquisa e Promoção Social e do Movimento Vozes de
Salvador. Produção principal em Antropologia da Religião, Antropologia
das Sociedades Clássicas, Etnobotânica, Teoria Antropológica. Tradutor
de textos científicos e literários. Escritor premiado três vezes em
concursos nacionais de literatura, com obras de ficção (conto, novela).
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