domingo, 3 de fevereiro de 2013

AGONIA DO CARNAVAL BAIANO

 Foto: Portal Caldeirão do Paulão

Ordep Serra*
Já se tornou uma verdade nua e crua, incontornável, um fato cuja constatação se impõe até aos mais obtusos, a profunda crise do carnaval baiano — crise que agora toma jeito de agonia violenta, suja, com espasmos brutais. Não há como confundir com vitalidade esses estertores do gigante drogado.  O buraco é mais embaixo e não dá para esconder.
Para começo de conversa, o carnaval de Salvador já não é de Salvador. De acordo com as estatísticas, apenas 22% dos soteropolitanos participam dele. Mas de modo desigual, é preciso que se diga. Pois muitos participam da grande festa sem festejar, ou seja, trabalhando em condições mais que precárias: uns, na condição servil de “cordeiros”; outros a espremerem-se pelas ruas, vendendo cerveja e petiscos miúdos, enfeites etc.; ou ainda catando latas dia e noite. A miséria dos “cordeiros” é explorada de forma obscena e a triste instituição do bloco de cordas se mantém ano após ano, com o beneplácito das nossas autoridades, decerto empenhadas em honrar as tradições escravistas da Bahia. Os amos do bloco até alegam que com isso oferecem uma oportunidade de ganho a pessoas necessitadas. É verdade que elas o são: a espantosa pobreza de Salvador, fruto de desgoverno e insensibilidade social, recruta facilmente homens e mulheres para esse tipo de trabalho. É ela também que leva famílias inteiras a dormir na rua durante a bela festa, sacrificando-se para obter um pequeno aumento de suas rendas com um inseguro comércio. Para isto fazem vigília, no tumulto carnavalesco; dormem pelas manhãs na promiscuidade e na sujeira, nas calçadas ou nos escassos gramados, entre bêbados e lixo.  Ou em barraquinhas improvisadas, que tomam calçadas e bloqueiam a entrada de inúmeros prédios na Barra, por exemplo.
Não vamos negar que o carnaval baiano distribui renda. Ele o faz de diversas formas. Ladrões e narcotraficantes também têm sua chance. Mas o grande lucro fica com poucos.
Claro, há o turismo que enche os hotéis; há os promoters, donos de blocos e de camarotes, as cervejarias e seus propagandistas. Os trabalhadores qualificados do carnaval têm seu ganho, muito suado… quando não levam calote, como acontece frequentemente com músicos contratados pelo município, cujas queixas ecoam por meses na imprensa. Também os “cordeiros” são com frequência caloteados.
Ao cabo, a festa repete o esquema comum de nossa economia: a alta, absurda, imoral concentração de renda. O prejuízo sempre fica para a cidade.
No ano de 2010, o prefeito chegou a declarar, queixando-se do governo do Estado, que por falta de ajuda ele via-se obrigado a desviar verbas da saúde e da educação para o carnaval. Desmentiu a declaração, mas os jornalistas reafirmaram o que tinham ouvido e gravado.  Não deu em nada porque, em nosso incipiente projeto de democracia, nem mesmo quando confessam cinicamente seus desmandos os governantes precisam incomodar-se com os rigores da lei.
De qualquer modo, uma coisa é certa: o carnaval de Salvador não dá grande retorno aos cofres públicos. Dá mesmo é prejuízo.  De diversos tipos.
No ano de 2011, a grande boutade carnavalesca foi uma declaração da cantora Cláudia Leite, que caracterizou os dois principais circuitos da folia soteropolitana a partir dos respectivos públicos: segundo ela, na Avenida Sete – Campo Grande predomina o povo; na Barra (no circuito Barra – Ondina) predomina a gente bonita. Sórdido racismo e grosseiro preconceito classista transparecem na declaração, fruto da involuntária e irrefletida sinceridade da “estrela”, equiparável à inconsciente (e momentânea) franqueza do prefeito. Mas o que a cantora boquirrota verbalizou está bem arraigado no modo de pensar da minoria hoje hegemônica no carnaval da Boa Terra. A “gente bonita” é a que veste os disputados abadás, protege-se com as cordas e os corpos de pessoas carentes do povo e se diverte seguindo seus enormes trios nos blocos privilegiados. A propósito, recorde-se o que dizem os felizes mercadores do carnaval baiano: 80% desses abadás são vendidos para turistas, para gente de fora da Bahia.
Mais uma evidência de que o famoso carnaval de Salvador já não é de Salvador.
Tampouco se pode dizer que esta é hoje uma festa popular.  Basicamente é uma festa de gente rica que tolera marginalmente uma fatia do povão. Fotos eloquentes mostram a distribuição desigual da folia soteropolitana: em camadas espremidas nas margens, gente negra ladeia o grande rio branco de foliões privilegiados. O nosso vergonhoso apartheid faz-se transparente nessas cruas imagens.
Salvador é hoje a capital mais suja do Brasil e uma das mais violentas. Tem uma população miserável vivendo precariamente em habitações subnormais, na periferia e no chamado miolo. Encontram-se também aqui áreas onde prevalece um alto IDH e outras, muitas, em que o índice de desenvolvimento humano compete com o dos países mais pobres da terra. As chagas da desigualdade obscena, da segregação e da degradação ambiental corrompem o tecido urbano. A ausência de planejamento e a infrene ganância imobiliária desfiguram o território, diminuindo a qualidade de vida dos habitantes; mesmo nas chamadas “áreas nobres” se percebe a degradação. Basta olhar para a orla progressivamente desfigurada. Salvador está falida, à beira de um colapso, com um trânsito caótico, com suas áreas verdes devastadas, os serviços públicos de saúde e educação comprometidos.  Tudo isso se reflete (e se agrava) no seu carnaval.
Vou considerar apenas o principal circuito carnavalesco de Salvador, o de Barra – Ondina. É nele que prevalece a tal da “gente bonita”. Sob vários aspectos, este circuito pode ser considerado o pior.  As estatísticas policiais o denunciam como o mais violento, com 80% dos delitos registrados. É também um circuito imundo. A quantidade de lixo aí produzida na semana momesca vem a ser aterradora. O trabalho da limpeza urbana, por mais ágil que seja, mal pode dar conta de tanta sujeira. De resto, remove apenas a parte superficial da imundície. Muita porcaria fica agarrada às calçadas, ou se entranha nas areias da praia, ou vai poluir as águas do mar. O solo submarino nesta parte da orla se transforma numa grande lixeira. Os sucessivos clean-ups depois dos grandes eventos que infestam a área se parecem muito com uma operação enxuga-gelo. Montanhas de latas de cerveja são recolhidas pelos mergulhadores; mas nada se faz para que esta poluição não se repita. Não há campanha pública educativa, não há qualquer restrição à prática deletéria que degrada uma das mais belas praias urbanas do mundo.  A coisa se repete sistematicamente. Neste carnaval, fotografaram um belo exemplo: o lixo acumulado no camarote do prefeito.
Sanitários químicos (poucos para a massa de usuários momescos) são colocados neste trecho da orla (Barra – Ondina) dominado pelo carnaval, durante a semana festiva. Mas urinar (e até mesmo defecar) na praia, nos seus rochedos, ou até na calçada, constitui um hábito reforçado pela indiferença das autoridades. No Porto da Barra, mija-se de preferência no Marco de Fundação da Cidade do Salvador. Nas areias imundas, nas calçadas fétidas, muita gente dorme, cedendo ao cansaço, à bebedeira, ao embalo de drogas. Não é difícil encontrar pessoas que cedem à fadiga ou à embriaguez estirando-se indiferentemente em meio ao lixo.  Disso também há fotos ilustrativas.
Não falta, tampouco, a poluição visual. A “decoração” carnavalesca de Barra – Ondina, neste ano de 2011, consistiu em cartazes com formato aproximado de pandeiros, de colorido berrante, contendo no interior do seu círculo, em quadrados também multicores, logomarcas  de cervejarias; misturadas a elas, viam-se (em menor número) as da Prefeitura, do Governo do Estado e da Petrobrás, no mesmo formato e desenho com briga de cores, de tremendo mau gosto. Um imenso cartaz no alto do edifício Oceania — um prédio tombado pelo IPAC — explicava tudo: “carnaval é cervejão”.
Com efeito, quem andasse por aí já na quarta pré-carnavalesca, deslocando-se entre imensos balões de propaganda, poderia pensar que estava em curso uma estupenda festa da cerveja, e que a elevação do consumo desta bebida é de interesse máximo do Estado. No morro do Cristo, os grotescos pandeiros eram enormes e dominavam completamente a bela paisagem; a estátua que tantos veneram via-se praticamente esmagada pela dimensão agressiva dos cartazes. Essa decoração poluente que entrega uma bela paisagem a um marketing grotesco se justifica alegando que corresponde ao generoso investimento de cervejarias, retribui as cotas com que financiam, em parte, o carnaval. Ótimo negócio para elas: investem, no fim das contas, em sua promoção, em um evento de que auferem grandes lucros.   Para a cidade, nem sobras.
Mas isso nada é em face da imensa, espantosa, grotesca poluição sonora, que passa por coisa inteiramente normal na semana de Momo.  Dezenas de trios elétricos desfilam a noite inteira, a todo volume, nesse malfadado circuito. A coisa começa de tarde e termina de madrugada. Só quem tem absoluto desprezo pela verdade pode garantir que esses tanks sonoros se limitam, então, aos já absurdos 130 decibéis admitidos oficialmente. O altíssimo volume de som é o grande charme desses palcos ambulantes, em que, quase sempre, o estrondo substitui a musicalidade. Desconsidera-se ainda o fato de que são muitos trios a somar, por horas seguidas, o seu impacto sonoro, num pequeno trecho da cidade, densamente habitado.
Para quem quer, aprecia, deseja e se submete de bom grado a isso, está ótimo. Mas não se leva em conta o fato de que nos bairros do circuito há também moradores que desejam dormir, querem sossego, precisam de repouso; que aí há crianças, idosos, enfermos e também gente adulta, sadia, que não se interessa pela folia, muito menos pelo barulho.
Para nossas complacentes autoridades, isso não tem importância. Direitos básicos de quem mora na área carnavalizada são eclipsados, suspensos, suprimidos, apagados ou violentamente restringidos por longo período, como se isso tivesse alguma base ética ou jurídica; como se fosse compatível com a democracia, a liberdade, a decência; como se  fosse coisa normal.  Numa cidade em que a mobilidade urbana já é crítica, o direito de ir e vir dos moradores dessa parte da orla e de outros trechos da urbe se vê severamente limitado por longo tempo. O sono é proscrito para muitos; o sossego fica proibido. Quem não quer ensurdecer que se mude.  E se quer paz, dane-se. É carnaval! Quem não deseja ver danificada sua casa, seu edifício ou seu estabelecimento de comércio, providencie tapumes e arque com os gastos, pois o poder público não tem nada com isso. Mas prepare-se direito, pois a coisa piora dia a dia: daqui a pouco será necessário blindar as janelas, porquanto os tiroteios entraram em moda nas festas da Barra (neste último carnaval, a polícia apreendeu várias armas de fogo entre os foliões, no circuito da gente bonita).
Na lógica dos donos da folia, mais importante que o direito dos cidadãos é o dinheiro gordo de alguns, o livre crescimento do capital no mercado da alegria, que não dá nenhum retorno aos bairros explorados: que os deixa imundos, depredados, arrasados, para glória e lucro de poucos. O direito à saúde pública desaparece.  O valor do patrimônio histórico e artístico é menosprezado. O gramado do Forte da Barra, há pouco recomposto, foi brutalmente pisoteado neste último carnaval e transformado, simultaneamente, em cama e lixeira de muitos.   Aqui, pelo jeito, moradores não contam. Só existem enquanto cidadãos na hora de pagar o IPTU, sempre muito alto, pois então — mas só então — Barra e Ondina passam a ser “áreas nobres”. A taxação é pesada e inexorável para quem sofre os desmandos carnavalescos. Os donos da folia sabem que podem usar e abusar do espaço público; a conta da depredação nunca lhes será cobrada. Grandes blocos até já se beneficiaram de gracioso perdão fiscal.
Os donos da folia caracterizam sua promoção como cultural, reclamam verbas públicas destinadas à área da cultura. Mas é difícil encontrar qualquer coisa de criativo e interessante no circuito da gente bonita. A criatividade e a beleza, o humor, a crítica, a inteligência, são ainda encontráveis (cada vez menos) no carnaval baiano, mas não no espaço que se considera o mais privilegiado dessa folia. Os blocos afros continuam belos, o Filhos de Ghandi ainda encanta, há graça nas Muquiranas e na Mudança do Garcia — cada vez mais espremida e restrita, tolerada de má vontade pelos organizadores do festejo carnavalesco —, assim como no Jegue de Cueca e em outros grupos populares de fato, marginalizados no atual modelo do momo de Salvador. O trio elétrico agigantou-se e multiplicou-se cancerosamente, nos currais dos blocos de cordas; nessa reprodução descontrolada e deformadora, o delicioso invento de Dodô e Osmar limitou-se à função de palco de estrelas atléticas de shows do mesmo tipo. Em poucos trios se faz, atualmente, música de qualidade; e são menos ainda os que seguem o caminho dos inventores, cuja alegria era animar os pipocas. Parece que neste ano a grande “inovação” da festa baiana, pelo menos no circuito Barra Ondina foi… a techno-music. Os disc-jockeys “importados” passam a reger este carnaval. Em que há pouca dança. Muitos dos foliões passam longas horas a caminhar de um lado para o outro, à espera de que surja a estrela e dê seu show, fazendo-os agitar-se quase mecanicamente. Seja como for, os donos da folia insistem em que o carnaval é o supra-sumo da cultura baiana. Deve-se concluir que são obras primas da Bahia o rebolation, o chupa toda etc. Também há quem afirme que a sujeira e o barulho “fazem parte” da cultura baiana.  Mas o povo baiano com certeza não merece o insulto.

* Graduado em Letras pela UNB, Mestre em Antropologia Social pela UNB e Doutor em Antropologia pela USP. Professor Associado do Departamento de Antropologia da FFCH / UFBA. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFBA; Prof. participante do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFBA. Membro da Associação Brasileira de Antropologia, da SBPC, da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos e da Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia. Membro fundador do Grupo de Pesquisa “Encruzilhada dos Saberes”. Fundador e Coordenador do Grupo Hermes de Pesquisa e Promoção Social e do Movimento Vozes de Salvador. Produção principal em Antropologia da Religião, Antropologia das Sociedades Clássicas, Etnobotânica, Teoria Antropológica. Tradutor de textos científicos e literários. Escritor premiado três vezes em concursos nacionais de literatura, com obras de ficção (conto, novela).


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