quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Metodologia para o Trabalho de Base

Excertos do livro Como Trabalhar com o Povo de Clodovis Boff. Seleção da Comissão de Formação da Organização Popular Aymberê. O texto contribui com diferentes aspectos para a realização do trabalho de base (social).

“É preferível errar com o povo que acertar sem ele.”
“É melhor dar um passo com mil do que dar mil passos com um.”



A ARTE DO TRABALHO COM O POVO

Não se pretende ditar aqui os mandamentos ou receitas de como trabalhar com o povo de modo concreto. Trata-se apenas de examinar como está se dando hoje esse trabalho e expor as indicações ou tendências mais fecundas que a própria prática está sugerindo. Nada do que é dito aqui deve ser entendido de modo dogmático. Isso, sobretudo, porque o trabalho popular é uma arte e não uma ciência. Não existem propriamente regras fixas de trabalhar com o povo. O que existem são apenas balizas, setas indicadoras. Acerta-se no trabalho popular através de “tentativas e erros”. É impossível dar sempre certo.

Dirigimo-nos aqui ao agente de trabalho popular: educador, profissional liberal, técnico, político, sindicalista, padre, etc. Temos em mente principalmente o chamado “agente externo” – aquela pessoa ou agência que “vai” trabalhar junto ao povo. Contudo, o que se diz aqui vale também para o “agente interno”, o “agente popular mesmo”, isto é, aquele que surge do próprio povo e aí exerce um papel educativo ou político. Na verdade, a distinção entre “agente externo” e “agente interno” se enfraquece e quase desaparece na medida em que o “agente externo” se insere no universo popular tornando-se povo e na medida também em que o “agente interno” ou “popular” cresce em experiência e qualificação no seu trabalho. Aliás, é a própria dinâmica do trabalho popular que leva a essa aproximação progressiva.

Notemos também que nesse texto falaremos normalmente em “povo”, compreendendo por esse termo o conjunto das classes oprimidas ou subalternas. Entenderemos sempre “povo” não no sentido “clássico” (de “nação”), mas no sentido “classista” (de “classes populares”).

Esse texto não deve ser usado como um receituário ou cartilha, mas como uma caixa de ferramentas. Nele se encontram instrumentos de toda sorte, uns mais úteis outros menos. Ora, de uma caixa de ferramentas toma-se o que interessa ao próprio trabalho.

SISTEMA DE DOMINAÇÃO E ESTRUTURA DE CLASSES

Este é o grande dado de entrada a se levar sempre em conta no trabalho popular: a divisão social do trabalho em trabalho intelectual (decisão) e trabalho manual (execução) o seu desdobramento na divisão de classes em classes dominantes e classes dominadas. Esta situação real – aqui apenas indicada – há de permanecer como pano de fundo em todo o trabalho popular. Este, na verdade, arranca dela (quanto à sua forma de organização) e vai na linha de sua superação (sociedade igualitária). Esta constante elementar e geral já fornece a linha de base do trabalho popular: reforçar a posição do povo (seu saber e poder). Pois não é verdade que a existência e a consciência do povo sejam simplesmente as de seus dominadores (alienação absoluta). Não, o povo tem uma existência e consciência próprias, porém dominadas, reprimidas, controladas de fora e de dentro (introjeção), justamente pelas classes dominantes.

O AGENTE EXTERNO E O AGENTE INTERNO

O agente externo necessita de uma “conversão de classe”. O que importa, sobretudo, não é onde se está, mas de que lado se luta. O que conta não é a origem de classe, e nem a situação de classe, mas a posição, opção e prática de classe. Trata-se aqui de “passar para o povo”, de se situar a seu lado na luta por uma sociedade nova.

Fiquemos no agente de “classe média”, que é de onde a maioria dos “agentes externos” provém. Porque essa classe não constitui uma classe essencial em nossa sociedade e porque nem constitui uma classe definida, sua ideologia – como seus interesses – não é igualmente definida. Por isso, a definição ideológica da “classe média” é essencialmente sua indefinição. Eis alguns traços “característicos” de sua ideologia: 1.) Posição em cima do muro, que pode ser expressa nas seguintes atitudes: oscilação ora à direita e ora à esquerda, de onde há pouca firmeza nos compromissos; oportunismo, que faz tomar a posição mais conveniente ao momento; pretensão ao neutralismo político; crença nas soluções negociadas a qualquer preço (colaboracionismo de classe). 2.) Gosto por teorias abstratas, que se exprime em: brigas de idéias e não de práticas (para fugir ao compromisso); tendência à intelectualização dos problemas, a fugir para as nuvens, a adotar um universalismo vazio, a desmaterializar as coisas; revolucionarismo retórico, sem maiores conseqüências; sectarismo político, com traços de fanatismo e ressentimento; pretensão intelectualista de dirigir o processo histórico e guiar o povo; moralismo na compreensão e solução das questões sociais. 3.) Individualismo, manifesto em: isolacionismo social e ideológico (“quantas cabeças tantas sentenças”); egoísmo de interesses (“cada um por si...”); falta de espírito de corpo, de classe (já que não existe como classe definida); privatismo na solução dos problemas (“depende de cada um”); interiorização espiritualista dos conflitos na forma de “crises existenciais”, etc.

É de toda essa mentalidade, e dos interesses que ela esconde/manifesta, que o agente-classe-média deve se despojar se quer se aproximar das classes populares para servi-las. Na verdade, mais que de uma conversão, trata-se de uma definição de classe. É claro, essa definição só pode ser feita no próprio processo de relacionamento com o povo.

Vimos o que o agente deve deixar. E o que deve guardar para repassar ao povo? Deve guardar todos os valores humanos e culturais que são úteis para a luta e a libertação do povo. Ora, entre os valores da classe (sem serem de classe) que o agente de classe media deve guardar podem-se contar: habilidades técnicas úteis a todo o povo: ler, escrever, contar, curar, bater a máquina, encaminhar um processo, etc.; informações de caráter histórico e de atualidade; capacidade teórica para analisar a realidade e sistematizar conhecimentos; valores de caráter humano, como o cultivo da subjetividade (que na classe media só tem de viciado seu lado exclusivo e excludente), etc.

O agente interno também pode ser chamado à conversão, justamente na medida em que tem o opressor introjetado dentro de si e que por isso pensa e age segundo modelos alienados. Ora, tal situação não é rara entre os dirigentes das associações populares (pelegos, etc.). Nesse caso, o próprio agente oprimido necessita de conversão: conversão à própria classe e à sua libertação coletiva. Evidentemente o processo de conversão aqui obedece a uma dinâmica própria. É a dinâmica do próprio trabalho popular de que estamos aqui tratando. Ou seja: é no processo da reflexão/ação que o agente popular alienado pode se converter (sobretudo se for apenas ingênuo) ou então se revelar e desmascarar (se for mal-intencionado). Mas tudo isso se verá melhor mais adiante.

MODELOS DE AGENTES: ANIMADOR E PATERNALISTA

Modelo do agente (animador)

É como um parteiro (maieuta): auxilia a mãe a dar a luz.
É como um agricultor: cuida da terra para que produza bons frutos.
É como um médico: trata do corpo para que conserve ou recupere a saúde.

Expressões de sua Função Específica
Ativar energias internas, despertar, suscitar, estimular.
Induzir, animar, fazer-refazer.
Servir, ajudar, reforçar, contribuir, secundar, assessorar.
Dar condições, propiciar, facilitar, dar lugar, fazer espaço.
Coordenar forças em presença, articular, agenciar.
Estar no meio, animando.

Atitudes ou Qualidades Típicas
Atenção, ausculta, abertura.
Cuidado, respeito, paciência.
Fineza, tato.

Contramodelo do agente (paternalista)

É como um genitor ou pai: engendra realmente o filho.
É como um artesão ou fabricante: manipula as coisas para produzir outras.
É como um general: dá ordens para avançar ou recuar, etc.

Expressões de sua Função Específica
Influir através de uma força de fora e de cima, infundir luz e saber.
Conduzir, levar, fazer-sem-mais.
Fazer no lugar, servir-se de, arrastar, presidir.
Criar, produzir, causar, instaurar, construir.
Ordenar (e condenar), mandar, liderar, administrar.
Estar à frente ou acima, puxando.

Atitudes ou Qualidades Típicas
Intervenção, iniciativa.
Coragem, agressividade.
Esperteza, “táticas”.

Por isso mesmo, todo o esforço do agente é reforçar o poder do povo até que este atinja sua autonomia ou autogestão entendida como o controle de suas próprias condições de vida. Daí que a grande questão do agente educador é se sua ação leva o povo ao crescimento e à liberdade cada vez maior ou ao contrário. Isso supõe que a interferência do agente externo vá diminuindo em proporção inversa, até que o povo possa se aprumar sozinho.

INSERÇÃO SOCIAL

Para que isso tudo possa se realizar, é absolutamente necessário que o agente se insira no meio popular. Quando se fala aqui em inserção, entende-se por esse conceito uma presença ou contato físico com o universo popular. Trata-se aí de participar concretamente da vida do povo, de conviver com ele, de estabelecer com ele um laço orgânico. Sem esta inserção real o agente: não terá condições objetivas de se desfazer de suas taras de classe; não poderá evitar o autoritarismo ou as relações de dominação no exercício de seu papel pedagógico; e também não terá condições de assumir uma mística e uma metodologia realmente libertadoras. É evidente que a inserção física, local mesmo, não basta. Mas é uma condição indispensável e fundamental.

Inserção do agente externo

Podemos aqui identificar esses graus ou formas crescentes de inserção:

1.) Contatos vivos. É a forma mais elementar de sentir a realidade do povo. Trata-se aí de uma presença passageira e descontínua com o mundo da pobreza e opressão. Esse é o nível mínimo necessário para se poder assumir realmente a causa do povo e realizar o próprio engajamento por sua libertação. Mas esse compromisso só pode ser mantido de forma correta e continuada somente à condição de existir uma vinculação orgânica mínima do agente com o povo. Perigo de se tornar apenas uma espécie de turismo.

2) Participação regular. Temos aqui já um modo de inserção mais avançado. Neste, escolhe-se uma comunidade de referência ou de incardinação, cuja vida se acompanha de forma constante ou em cujas práticas concretas (pastoral, sindical, etc.) se toma parte de modo contínuo.

3) Moradia. Morar num bairro popular é uma forma de mergulhar mais a fundo nas condições de vida dos oprimidos. A vantagem desse nível de inserção é a assimilação do universo social, sobretudo cultural, dos oprimidos por efeito de impregnação que ele permite. Aliás, é a esta forma particular que se faz alusão hoje quando se fala em inserção nos meios populares.

4) Trabalho. Eis aí um modo exigente de partilhar da experiência de vida das classes populares. Trata-se aqui de uma inserção no seu mundo de trabalho (produtivo), que marca toda a sua existência de modo determinante. A inserção aqui é tanto mais fecunda quanto mais decisiva e rica a esfera em que se dá.

5) Cultura. A inserção supõe, nesse nível, que se incorpore o estilo de vida de povo na linha do morar, falar, vestir, comer, pensar e até do orar e crer.

Por outro lado, é também a partir da inserção do agente no povo que este poderá elevar seu nível de consciência, organização e luta. Assim, a inserção só pode se entender proximamente dentro da perspectiva da aliança ou diálogo agente-povo e, mais longinquamente, dentro da perspectiva maior da libertação social.

Inserção do agente interno

Contudo, para o agente popular, a questão se coloca também, mas de modo distinto. A necessidade de inserção corresponde para ele à participação nas lutas do povo. É a partir daí que o agente se qualifica como tal e não a partir de designações exteriores. Outra questão do agente popular é, uma vez em função, não se desligar da base, mas continuar enraizado e inserido nela. Pois como estamos vendo, tal é a condição prévia para um correto trabalho popular.

MÍSTICA DO TRABALHO POPULAR

Na raiz do trabalho popular e da própria inserção encontramos um conjunto de convicções e motivações fundamentais que fundam e animam o compromisso do agente com o povo. Sem mística, qualquer método de trabalho popular se torna facilmente técnica de manipulação e as regras metodológicas acabam se transformando em fórmulas rígidas e sem alma.

1. Amor ao povo. Sem amor ao povo, sem simpatia e bem querer para com as pessoas do povo, não é possível um trabalho libertador. Para isso importa um contato vivo com o povo. Só a partir daí pode se estabelecer com ele uma “conexão sentimental” (Gramsci) que seja fecunda. Não é muito difícil perceber quando um agente quer realmente bem ao povo e é, por sua vez, querido por ele: é quando as relações entre um e outro são de igualdade fundamental. O sinal mais evidente disso se encontra na liberdade de palavra que o povo tem diante do agente. O falar franco e mesmo crítico é índice de uma relação fraterna e madura. Passemos por cima do agente autoritário, que odeia e despreza o povo (até seu “cheiro”). Evidentemente, diante dele o povo tem a palavra presa. Mas com o agente paternalista, que parece amar o povo e ser querido por ele, as coisas não se passam de modo muito diferente. A atitude do povo diante dele é de expectativa, de gratidão servil e de dependência. E o sinal mais claro desta dependência é a palavra-eco, a palavra-reflexo: o povo diz o que o agente espera que ele diga e não aquilo que ele mesmo realmente pensa. Quando falamos aqui em amor ao povo, incluímos nessa atitude de fundo uma carga inclusive afetiva. Na verdade, se na base da relação pedagógica (sempre no sentido da Paidéia) não há essa raiz de afeição e ternura, não se vai muito longe. “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás” (Che). O trabalho popular há de ser um “ato amoroso” (Paulo Freire). Ou melhor, há de se desenvolver dentro de um “espaço amoroso”. Sem essa atitude espiritual, toda metodologia cai no behaviorismo, transformando-se em tecnologia da estimulação.

2. Confiança no povo. O agente não ama o povo porque este é oprimido. Isso seria pietismo. O agente o ama porque, sendo livre, está oprimido. Ama-o porque deveria ser reconhecido e se encontra humilhado. Por isso, ao pé do trabalho popular deve haver essa confiança básica no povo. Confiança em sua sabedoria e capacidade de compreensão. Confiança em sua generosidade e capacidade de luta. Confiança em sua palavra. Evidentemente, a confiança no povo não é ingenuidade e irresponsabilidade. Existem as preparações e precauções necessárias. Mas todas essas providências pedagógicas tomam lugar no seio dessa atitude primeira: confiar no povo como sujeito principal da história. O contrário disso é o medo. E medo do povo só o têm os déspotas, por sua força, e os dirigentes paternalistas, por sua pretensa fraqueza. Esta confiança básica na força (potencial) do povo dá ao trabalho popular um tom de esperança e mesmo de alegria fundamentais.

3. Apreço ao que é do povo. Apreciar as coisas do povo tem aqui o sentido, por sinal popular, de observar com simpatia, e olhar degustando o que se está vendo. Não se trata aqui de uma observação curiosa e interesseira, mas de uma atenção afetiva e interessada às coisas da vida do povo. É perceber e valorizar as manifestações positivas da cultura popular. De antemão, o popular merece que seja considerado com simpatia. Usar aqui sistematicamente a presunção da alienação é falsear todo o relacionamento do agente com os modos de vida do povo. Sabemos que o discurso do povo é o discurso da própria vida e que é mais gestual que verbal. Por isso mesmo, importa sobretudo observar. E também escutar. De fato, a intervenção do agente se dá dentro de um processo de luta que já foi desde sempre iniciado pelo povo. O agente não é um inaugurador, mas um continuador. Não um fundador, mas um seguidor. Não um pai, mas um irmão. Não um senhor, mas um companheiro. Desconhecer a luta da comunidade é muitas vezes enganchar a própria contribuição no aéreo dos próprios projetos abstratos. A história não começa com o agente, mas sim com o povo. Em suma, um trabalho popular só é radicalmente libertador quando arranca dessa raiz: uma atitude acolhedora e positiva por toda manifestação do espírito do povo: modos de falar, de educar os filhos, de vestir, de cozinhar, de comer, de ajeitar a casa, de se divertir, de trabalhar, de amar, de cuidar de saúde, de tratar dos velhos, de se relacionar com os poderosos, de imaginar Deus e os santos, de rezar, etc.

4. Serviço ao povo. O agente que vai ao povo só pode ir movido por um espírito de serviço, no sentido de se colocar à disposição do povo e de seus interesses verdadeiros. Essa atitude implica em assumir uma posição hétero-centrada, ou seja, voltada para o outro e para sua libertação. Servir significa assumir um papel subalterno, colocando-se não à frente, mas ao lado ou no meio do povo. Servir jamais pode significar uma relação de condescendência, a qual muitas vezes esconde um desprezo sutil e inconsciente para com o povo. Servir é mais trabalhar com o povo do que para o povo. Servir ao povo facilmente toma a forma de servir-se do povo. Viver pelo povo muitas vezes não passa de um viver do povo. E aqui aparece o vício do paternalismo. Contudo, há um critério infalível para desfazer todos os equívocos do serviço: se com ele se cria mais autonomia ou mais dependência; se ele se liberta ou se amarra. Com a disposição ética e espiritual do serviço, o agente coloca o povo no centro de suas atenções. Mas trata-se, mais uma vez, do povo-sujeito e não do povo objeto. E colocar o povo sujeito no centro é considerá-lo dono de seu destino e artífice de sua caminhada. É, em suma, levar a sério sua liberdade e sua autonomia, sua potencialidade e sua esperança.

5. Respeito à liberdade do povo. Considerar o povo como sujeito, confiar nele e em seu potencial histórico implica em respeitar o povo quanto à sua palavra, sua caminhada e sua iniciativa. Em primeiro lugar, o povo deve ser respeitado em sua palavra. Seja lá o que diga, mesmo de alienado ou conservador, o povo deve ser ouvido com atenção e respeito. Nada mais deseducativo do que, com palavras ou gestos, exprimir desdém, aborrecimento ou aversão a respeito da opinião – qualquer que seja – de alguém do povo. Tal atitude inibe a pessoa, reduz-la ao mutismo e a afasta do trabalho comum. Não que esse respeito implique automaticamente aprovação. Mas qualquer crítica que se possa ou deva fazer a uma palavra do povo só se mostra construtiva na base e a partir de uma atitude fundamental de respeito e escuta anteriores. De fato, a conscientização é um processo de autoconscientização, ou melhor, de interconscientização. Não é inculcação doutrinária ou matracagem ideológica. Ela se dá no diálogo entre todos, agenciado pelo agente. Por isso mesmo a palavra do povo deve ser dita e ouvida em plena liberdade. Em segundo lugar, respeito pela história do povo e por sua prática em curso. [...] Em terceiro lugar, respeito pela iniciativa do povo. Alude-se aqui às propostas ou sugestões do povo (da base) e à sua ação criativa e espontânea.

MÉTODO DO TRABALHO POPULAR

Tomamos aqui método como o conjunto de regras ou diretrizes práticas que servem para orientar uma ação concreta, no caso o trabalho do povo. Essa intenção é, talvez, por demais pretensiosa. Por isso, seria melhor falar em linhas de ação, pistas ou simplesmente de indicações ou de balizas práticas para a ação concreta. É preciso também dizer que o trabalho popular tem aqui um caráter decididamente político. Falando mais claramente, ele visa a transformação da sociedade. Não que a política seja tudo, mas tal é mais premente desafio histórico (não certamente o único nem o principal em si) que o povo oprimido está vivendo hoje. Como se dá o trabalho popular? Ele se dá dentro deste quadro geral: a combinação entre ação e reflexão. Fala-se também na dialética práxis/teoria. De fato, as questões sociais se resolvem através da prática e da compreensão da prática.

Portanto, é nesta articulação entre as mãos (agir) e a cabeça (pensar) que se dá o trabalho com o povo no sentido de mudar as relações sociais. Esta é a “junta” que puxa o carro da história. A união da prática e da teoria é a relação motora do trabalho popular. Uma prática sem teoria é uma prática cega ou, no máximo, míope. Não enxerga bem e não enxerga longe. Enfia os pés pelas mãos e não vai à raiz dos problemas. Isto é: degrada-se em ativismo e, na melhor das hipóteses, em reformismo (muda as coisas do sistema, mas não muda o próprio sistema).

Não se resolvem os problemas apenas com a luta, o esforço e o compromisso, “enfrentando”, “botando pra quebrar”, “na marra”. É preciso ainda a inteligência da situação para ver as possibilidades de ação. Caso contrário, o que se faz é “dar murros em ponta de faca”. É o que se chama “voluntarismo”. Ora, nem tudo depende da boa vontade ou da força de vontade. É evidente: é menos possível ainda resolver os problemas ficando em discussões infindas e propostas “radicais”. Pois nada substitui a ação direta e concreta.

De fato, uma teoria sem prática é ineficaz para mudar o mundo. É como ter olhos e não ter mãos. E só a prática, como ação concreta, que transforma o mundo. E a teoria existe em função da prática. Esta deve ter sempre a primazia sobre toda reflexão. Portanto, todo o trabalho popular necessita dessas duas coisas, ligadas entre si: teoria (reflexão, estudo, análise, compreensão) e práxis (prática, ação, compromisso, luta). Trata-se mais exatamente de dois momentos de um mesmo processo ou de dois tempos de uma mesma caminhada libertadora. Importante é que esses dois momentos estejam sempre articulados ou interligados entre si. Assim, a ação deve estar sempre iluminada e orientada pela reflexão e a reflexão, vinculada e referida à ação (feita ou a se fazer).

COMO INICIAR UM TRABALHO COM O POVO

1. Participar da caminhada. Antes de qualquer trabalho com o povo, importa – e é bom aqui repeti-lo – estar, de alguma forma ou de outra, inserido no meio do povo. É preciso estar participando de sua vida, nem que seja apenas por contatos e visitas. É só a participação na vida e na luta do povo que dá base a uma pessoa ou agência começar um trabalho junto a ele. Pois é só dessa maneira que uma pessoa ou agência ganha a confiança do povo e adquire poder de convocação e mobilização popular. Esse é o primeiro momento do trabalho popular: tomar pé na realidade, banhar-se no ambiente em que vai trabalhar. Esse passo pode tomar a forma mais elaborada de uma sondagem em torno de algum problema (saúde, religião, etc.) sentido pela comunidade em questão. Convém, contudo, que tal empresa envolva, o quanto possível e desde o início, a participação de gente da própria comunidade.

2. Partir dos problemas reais. Os problemas sentidos pela comunidade aparecem como particularmente reais quando tomam a forma de um conflito, de uma necessidade premente, de um anseio ou demanda, de um interesse concreto. É da terra da realidade, especialmente da realidade contraditória, que pode nascer um trabalho popular promissor. Pois é em torno de necessidades ou interesses vitais que o povo pode se mexer, e não a partir de esquemas e propostas de cima ou de fora, por melhores que sejam.

3. Encaixar-se o quanto possível na caminhada do povo. A ação do agente busca se enxertar sobre as iniciativas, lutas e mesmo ações embrionárias já em curso. Daí a importância de descobrir, já desde o primeiro passo, o modo como o povo está reagindo aos problemas que tem. Não se trata, pois, de criar coisas paralelas às do povo ou de começar tudo do zero absoluto, quando já existem respostas ou elementos de resposta para o problema em pauta. O quanto possível, importa aproveitar o que já existe e, a partir de dentro, desdobrar esse primeiro embrião. Pode tratar-se de uma ação dita espontânea porque não ou pouco organizada. Pode ser um grupo já existente, uma associação determinada, com seus dirigentes populares próprios. É evidente que, com respeito a este ou aquele trabalho, é possível que não haja realmente nada numa comunidade definida (alfabetização, creche, sindicato, comunidade eclesial de base, etc.). Então, é preciso começar, mas sempre a partir de algum ponto de inserção, sobre o qual se enxerta a própria proposta.

4. Convocar a comunidade. É preciso, finalmente, tomar a iniciativa e chamar o povo para um encontro. Nada dispensa o chamado à reunião. É a experiência que o diz. Alguém deve começar a levantar a voz. E isso pode fazê-lo só quem vê o problema em questão e consegue exprimir claramente o que um grupo sente indistintamente. É esse o animador e não quem se dá por tal (por isso, essa competência se ganha no processo). Reunidas essas condições e reunido enfim o grupo em torno de um problema definido, está deslanchado o trabalho popular.

METODOLOGIA DA EDUCAÇÃO POPULAR

Trata-se aqui da educação popular. Mais à frente, abordaremos o segundo momento – a da ação direta. Refletir não é agir, mesmo quando se reflete a partir e em função da ação. Igualmente, agir não é refletir, mesmo quando se age a partir da reflexão e se age pensando. Alguns elementos compõem o contexto da parte propriamente educativa do trabalho popular. São as condições que acompanham e enquadram o processo da educação popular.

1. Diálogo. Em primeiro lugar, importa evitar todo endoutrinamento, que é o de enfiar na cabeça do povo sistemas de idéias ou esquemas de ação já montados. Educar não é endoutrinar. Evitar, pois, todo autoritarismo pedagógico. O papel do agente aqui é animar o debate e estimular a participação de todos no mesmo. É facilitar que a palavra corra livre e solta, como a bola num futebol bem entrosado. O povo aprende fazendo. Importa, pois, tirar as lições da vida. Para a maioria do povo, o aprendizado não passa pelos livros, mas pela realidade viva. A mediação não é cultural (escola, biblioteca, leituras, etc.), mas prática. Não é tanto pelo Capital de Marx que o trabalhador saberá o que é exploração, mas, sobretudo, por sua própria experiência de fábrica e sua luta no sindicato. Não é simplesmente por argumentos que o povo se convencerá de que tem força e pode se libertar, mas antes por uma ação concreta e efetiva (uma greve, uma manifestação de rua, etc.). Educar não é convencer. É pensar a própria práxis. Não é com razões que se poderá provar ao povo quem são os opressores, mas com ações concretas e reflexões sobre elas. Claro, a ação por si só, sem reflexão, não educa. Para ser educativa, a ação precisa ser digerida, assimilada. E essa é a função da reflexão. Mas de uma reflexão em “mutirão”, ou seja: dialogada. Seja como for, uma idéia só se fixa na alma do povo quando se enraíza no chão de sua própria vida. Se este chão não está preparado, pouco adianta semear.

2. Participação. Viver em comunidade ou sociedade é participar. Política é basicamente participação. Tudo começa com a participação na palavra, nos diálogos, nas decisões. Numa reflexão não há apenas um treino ou preparação à vida política. Já se dá aí vida política na medida em que acontece a partilha do saber, do pensamento e dos projetos. Independentemente dos conteúdos (se são diretamente políticos ou não), uma reunião deve mostrar, por sua dinâmica participativa, que se trata de democracia, do poder popular. E isso, mesmo quando se cuida de programar uma procissão, ou um piquenique. De fato, a luta não é apenas contra os agentes da opressão, externos ao povo, mas também contra as relações de opressão, internas ao povo, à sua consciência, e à sua prática quotidiana. Política é participar, é lutar contra toda opressão, seja encarnada em agentes concretos, seja em comportamentos determinados. Por isso, a política se dá também na vida quotidiana, desde a conversa à arrumação de uma sala. Desse ponto de vista, é preciso prestar muita atenção na contradição que ocorre freqüentemente entre a proposta libertadora e um processo autoritário que visa implementá-la; entre uma meta democrática e um método impositivo.

3. Comunidade. É junto que o povo se educa. Um é professor do outro. Um é aluno do outro. No grupo se dá a partilha das experiências e das lições que a vida ensinou. Como o povo é “sujeito histórico” do poder, assim é também o “sujeito coletivo do saber”. O grupo de reflexão é como uma “escola popular” em que a gente do povo é ao mesmo tempo educador e educando. Sem dúvida, o agente pode provocar a comunidade a dar um santo em frente. Fazendo parte do grupo e de sua caminhada, ele pode e deve contribuir para o crescimento da comunidade através do que ele mesmo vê e sabe. A comunidade é mediação: a.) de conscientização: nela e por ela se ganha uma consciência cada vez maior e mais crítica da realidade; b.) de participação: nela e por ela aprende-se a entrar no jogo do dar e receber, do falar e escutar, do agir e ser agido, enfim assumir o próprio lugar e papel na transformação coletiva da realidade; c.) de solidariedade: nela e por ela adquire-se consciência de classe e se constrói a união em torno de um mesmo projeto de base; d.) de mobilização: nela e por ela descobrem-se, assumem-se e enfrentam-se os desafios comuns, etc.

MÉTODO DE REFLEXÃO COM O POVO: VER, JULGAR E AGIR

O ritmo em três tempos: ver, julgar e agir não deve ser aplicado de modo rígido. O mais das vezes esses três momentos se superpõem nas diferentes intervenções.

Ver

O primeiro tempo da reflexão em grupo (ver) corresponde justamente à necessidade de partir da realidade. A reflexão engancha exatamente aí: no concreto da vida. O diálogo arranca, portanto, das “questões”, “problemas”, “desafios”, enfim da “vida concreta” do povo. Esta é, aliás, a prática da educação popular. Parte-se sempre da questão: “Qual é o problema?”, “Quais são os maiores desafios sentidos pelo povo do lugar?”, “Quais as lutas”, etc. O método aqui parte “de baixo”, “das bases”. Fala-se também em “método indutivo”, por deslanchar antes de fatos que doutrinas.

“Partir da realidade” parece mais claro do que é. Que é essa “realidade” de que se deve partir e em torno da qual se vai dialogar? É a realidade do povo, isto é, a realidade tal como o povo a vive e sente. “Partir da realidade” é, em primeiro lugar, partir de situações que afetam a vida do povo. Trata-se aqui de problemas que são sentidos como “desafios” e que pedem solução. Trata-se particularmente de “conflitos” que atingem a vida do povo e exigem uma tornada de posição. “Partir da realidade” é, também, partir das respostas que o povo está dando aos problemas e conflitos. São suas lutas: de fuga, resistência ou avanço. Aqui se levam em conta as práticas concretas do povo. Trata-se aqui de perceber o aspecto positivo da realidade: as reações do povo às suas dificuldades reais. “Partir da realidade” pode ser, em certos casos, partir de uma ação determinada em termos de revisão ou avaliação. Nesta se toma uma operação bem definida para ser submetida à crítica e ao discernimento. A importância de avaliar um trabalho e situá-lo dentro de uma trajetória ou de um projeto mais amplo. Pois é aí dentro que ele adquire um sentido; se significa um avanço, um desvio, ou, quem sabe, um recuo. Sem isso, o trabalho arrisca de se perder como algo de isolado e anedótico. A revisão deve evidentemente ser feita em conjunto, com todos os envolvidos, inclusive para se perceber como se deu o envolvimento de cada parte (comissões várias, etc.) no todo.

Uma condição importante quanto às revisões é o agente (mas isso vale a pena para todos) manter a solidariedade a todo preço com o povo, também e, sobretudo, nos momentos de fracasso. Mesmo no erro, a presença do agente é fundamental, não certamente para solidarizar com o erro, mas para ajudar a comunidade a assumi-lo e resgatá-lo.

Julgar

“Julgar”, nesse segundo momento (ou elemento), tem valor de analisar, examinar, refletir o que há “por trás” do que aparece, o que tem “por baixo” do que está acontecendo. Esta tentativa de superar as aparências é que define a “consciência crítica”. Trata-se de ver e captar as causas ou “raízes” da situação. Isso é necessário, porque a realidade social, a partir da qual se arranca, não é simples e transparente. Ela é complexa, contraditória e opaca.

A noção de “consciência possível”, ou do “novo passo” ou “nova luz” no processo de conscientização é importante para se fazer frente a toda tentativa de doutrinarismo que quer enfiar na cabeça do povo todo de um sistema teórico, uma ideologia pré-fabricada. Uma teoria social global (tal a análise dialética) se transforma em dogmatismo quando é usada assim, de modo catequético e dogmático.

É claro que o agente tem por obrigação oferecer ao povo ou colocar à sua disposição instrumentos teóricos de interpretação social. Mas isso deve ser feito pedagogicamente, isto é: segundo o interesse do povo e ao modo dele.

Agir

Quando se fala aqui em “agir”, trata-se naturalmente de propostas de ação e não ainda da ação concreta como tal. Para o agir, é da maior importância ater-se à regra da “ação possível”, ou do “passo possível”. Por outras, há que perceber qual é o “histórico viável”. Não o que se “gostaria” de fazer. Nem o que se “deveria” fazer. Mas o que se “pode” efetivamente fazer. Querer fazer mais que o possível é como querer “dar o passo maior que a perna”. É queimar as etapas. Ora, é nesse perigo que pode cair o agente, mais tentado de idealismo (ou irrealismo) que o povo, em geral.

Querer “forçar a barra” pode ser contraproducente e resultar em recuo. Aqui o revolucionarismo tem o mesmo efeito que o reacionarismo: os extremos se tocam. Isso acontece quando não se analisam corretamente as possibilidades da situação, ou seja: as condições concretas da luta.

Os dois erros nesse sentido são conhecidos: a.) o voluntarismo, quando só se conta com a disposição subjetiva do povo, sem levar em conta as condições reais da ação e a correlação das forças em presença; b.) o espontaneísmo, quando se confia que o processo vai por si só levar a luta de modo determinístico. Para encontrar o caminho certo da ação não se pode nem superestimar e nem subestimar as dificuldades do povo e a força de seus adversários. A apreciação concreta das relações de força em jogo deve ser obra dos que estão em questão.

Em particular, numa situação em que a correlação de forças é extremamente desigual ou desfavorável tomar a ofensiva e atacar é temeridade. Significa buscar o fracasso. E empurrar o povo pra lá é uma irresponsabilidade. Nessas condições, sustentar as posições já conquistadas, resistir, não ceder ou, na pior das hipóteses, recuar um pouco para não ceder de todo, ou seja: adotar uma posição de conservar o quanto possível os passos dados, significa já uma vitória. Qualificar tudo isso de tradicionalismo ou conservadorismo é fruto de uma cabeça idealista, que toma seus sonhos pela realidade.

A caminhada do povo pode ser acelerada, em primeiro lugar, por essas chances ou oportunidades históricas. Trata-se de conjunturas ricas, em que se dá uma espécie de condensação histórica. É uma crise, um fato marcante, uma eleição, uma perseguição, etc. Se aproveitados, esses momentos podem ser uma ocasião propícia par a comunidade dar um salto qualitativo. Existe um segundo elemento que favorece a aceleração da consciência e organização do povo. É o contato com a experiência ou prática viva de outros grupos mais avançados. Tal contato pode se dar na própria prática ou mesmo em encontros de reflexão. Estes marcam para muitos um ponto de arranco ou um salto decisivo. Na verdade, povo não é apenas o povo com quem se trabalha. É uma entidade social maior com o qual se mantém laços históricos. Em terceiro lugar, o que favorece ainda a marcha do povo é o ambiente social que se cria e que impregna de certo modo a todos. É o que sucede nas áreas já mais trabalhadas por todo um processo de luta e em algumas igrejas que têm uma pastoral de conjunto assumida, de corte popular.

Quanto aos tipos de ação concreta, sabe-se que existem: a.) ações autônomas do povo (mutirões, etc.); b.) ações reivindicativas (abaixo-assinados, manifestações, etc.); c.) ações de organização, seja para fundar ou para recuperar algum órgão popular (sindicatos, associações, etc.).

METODOLOGIA DA AÇÃO DIRETA

Agir Corretamente

Aqui colocaremos algumas indicações concretas para o momento da prática direta. São algumas sugestões soltas, que a experiência mesmo ensina. Esta parte – a da ação direta – depende muito mais do tato, da habilidade (a métis grega) e por isso da experiência que de estudos e reflexões. Se a educação já é uma arte (um saber fazer) a política (entendida aqui como toda forma de ação coletiva) o é mais ainda.

Evidentemente a primeira qualidade de uma ação coletiva é sua coesão ou entrosamento interno. O imperativo da união vale para todos, mas mais ainda para o agente. No momento da ação (do “pega”) o agente, mesmo e sobretudo externo, há que estar junto com o povo. Se a reflexão se faz junto, em termos de diálogo ou partilha da palavra, a ação também deve ser executada conjuntamente. Portanto, importa acompanhar o povo em sua caminhada. Com efeito, o agente, embora venha de fora, faz parte do processo e do povo. Ele assumiu a causa dos oprimidos e sua caminhada. Por isso deve acompanhá-los e assumir com eles.

Mas qual é o lugar do agente no processo vivo da ação? É claro, o agente não pode substituir o povo, adiantar-se e se tomar como o representante do povo. O agente externo não deve normalmente ter a liderança da ação popular. Mas isso não quer dizer que não possa e não deva ir junto, participar, acompanhar, enfim, marcar presença. Assim, a ação popular deve ser, e por isso mesmo, parecer uma ação coletiva, assumida por todos. Por isso o lugar normal da direção não é atrás, protegida das balas, mas também nem à frente, exposta facilmente ao ataque, porém, no meio do povo. Claro, não para se defender, mas para animar a luta.

Valorizar cada passo dado

As idéias de “política”, “revolução”, “história” e “práxis”, suscitam imagens de grandeza e excelência inatingíveis. Elas carregam tal conotação de sonho e utopia que condensam todo o desejo de plenitude de uma existência alienada. O agente, por ser um intelectual, é particularmente vulnerável a essa sedução idealista. É que se dá aí mais importância ao projeto que ao processo. Sim, mudança do sistema: é o que se quer, mas é mais ainda o que se faz.

Não há dúvidas: há momentos de ruptura, de saltos em frente. Mas estes só acontecem após um largo período de “acumulação política”. Esta é que cria as condições de uma “revolução”. Por isso mesmo, é preciso começar e seguir em frente. E se começa sempre como a semente. Todos os começos verdadeiros são começos de humildade. Uma comunidade cresce a partir dos pequenos problemas que sente e tem possibilidade de solucionar (“passo possível”). Ora, os “pequenos problemas” não se opõem aos “grandes problemas”. Na dialética social, os “pequenos problemas” não são tanto parte dos grandes – os únicos dignos de atenção. São antes reflexo e tradução dos grandes.

Basta que aqui se sigam dois critérios básicos: 1.) que aquela ação vá na boa direção, isto é, que signifique um passo em frente na linha da mudança do sistema; 2.) que a ação seja assumida pelo povo como sujeito possivelmente protagonista da mesma. Valorizar as pequenas lutas não é nelas se comprazer, mas considerá-las dinamicamente como degraus necessários para uma ascensão maior. É justamente porque a caminhada é longa e o termo luminoso que cada passo, por menor que seja, possui seu valor próprio.

Articular os passos com o objetivo final

Em toda ação popular importa levar em conta esses três níveis: 1.) o objetivo final, que é concretamente a transformação da sociedade, o surgimento de uma nova sociedade. Esse objetivo pode ser mais ou menos definido. Pode ter traços ainda utópicos (ideal de uma sociedade reconciliada) ou já políticos (como o projeto “socialista”). A definição do objetivo ou ideal histórico depende do próprio processo de crescimento da consciência e das lutas de um povo; 2.) as estratégias, que constituem as grandes linhas de ação, ou seja, que traçam o caminho para chegar ao objetivo final; 3.) as táticas, que são os passos concretos dados dentro das estratégias para se chegar à meta ou objetivo. Importa, neste sentido, valorizar as “astúcias” que o povo adota para sobreviver e ludibriar seus opressores. Esta “arte dos fracos” espera ainda um maior reconhecimento e aproveitamento pedagógico e político.

O quanto possível, é preciso ser claro nos objetivos, firme nas estratégias e flexível nas táticas. Flexível nas táticas significa que se pode e deve às vezes alterar a tática e até recuar quando as circunstâncias o exijam. O importante é que qualquer ação se mantenha orientada na direção de seu objetivo final. Mas orientada dialeticamente, como um caminho de montanha que, apesar de todas as suas voltas (táticas), vai fundamentalmente (estratégia) para o cume (objetivo). Ou como o rio, que contornando montanhas ou saltando em cachoeira (tática), segue firme (estratégia) na direção do mar (meta final). Então, o que conta não é o passo como tal, mas sua orientação, isto é, sua articulação com o projeto global da ação. O peso de uma ação lhe é dado por seu rumo ou direção.

Nesse sentido, é falsa a disjuntiva sumária: reforma ou revolução. Pois uma reforma pode ter conteúdo revolucionário. E quando assume orientação revolucionária, isto é, quando significa um passo a mais na linha da transformação social. A disjuntiva real é: reformismo versus revolução, pois aí a reforma não coloca mais em perspectiva a criação de uma nova sociedade, mas a simples continuidade (melhorada) desta.

A relação é, pois, entre uma instância real e uma instância de representação (um projeto, um horizonte, etc.). Donde a importância do ideológico (teoria e projeto) para o prático. A articulação passo-objetivo é uma síntese prático-teórica: é um ato prático porque se dá na ação, mas é também algo de teórico porque essa ação deve se situar dentro de um projeto, o que somente é possível dentro da reflexão.

Por isso, para se manter a continuidade de um trabalho, que arrisca sempre de se satisfazer com suas conquistas parciais, é preciso: 1.) um projeto histórico, que vá se definindo de forma crescente e que constitua a meta da caminhada, como o destino da viagem para o viajante; 2.) uma reflexão, que vá medindo continuamente a distância entre o que está aí e o destino final; 3.) por fim uma organização, que leve à frente de modo constante a caminhada, agindo e refletindo. Faltando um desses três elementos, a luta “cai”.

Somar forças

Para uma comunidade avançar, além de unir as forças dentro, é preciso se unir com outras forças fora dela. Isso se dá em várias direções. 1.) Multiplicar os grupos que têm o mesmo objetivo, seja ele religioso, sindical, partidário, cultural, etc. Grupos homogêneos têm mais facilidade de se unir e lutar por objetivos comuns. Assim acontece com uma rede de CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), uma Federação sindical, etc; 2.) Ligar-se a outros grupos populares: associações de moradores, clubes de mães, sindicatos, CEBs, etc. Claro, tal união só pode se dar em torno de objetivos bem concretos, tal uma luta de interesse comum; 3.) Envolver todo o bairro, ou mesmo o município rural em alguma ação coletiva de interesse comum; 4.) Incorporar no próprio grupo ou movimento frações do povo que ficaram fora, assim: as mulheres no movimento sindical, os homens nas atividades religiosas, partes da grande massa dos esquecidos e anônimos no movimento popular, etc. 5.) Envolver pessoas ou frações de outras classes no próprio movimento, seja em termos de incorporação plena, seja em termos de aliança ou acordo.

Formar animadores

Nos trabalhos que hoje se processam dentro do movimento popular, está surgindo um novo tipo de “dirigente”. É o “coordenador” e não o “ordenador”; é o “animador” e não o “líder”. Essa nova figura executa seu papel como serviço e não como dominação ou paternalismo. Trata-se de um dirigente não dirigista, que trabalha mais com o povo e não para o povo. No trabalho popular, a prioridade cabe à formação não de “quadros”, mas da comunidade. Trata-se de criar comunidades participantes, co-responsáveis, autocoordenadas. É só em seguida, no seio delas e em função das mesmas, que há de se ter também a preocupação de formar os “quadros” ou “os animadores”. Dar prioridade às “lideranças” sobre as comunidades é cair no cupulismo ou dirigismo. Tal é outra tentação dos agentes externos (sendo a primeira o doutrinarismo – a de antepor a teoria à prática).

Para evitar o cupulismo como primazia dos “líderes” sobre a “base” são necessárias algumas precauções: 1.) É preciso que os animadores emirjam e se formem na própria prática. É na medida de sua formação que alguém mostra que tem qualidade de “animador”. Essa não é uma função administrativa que possa se fundar em base burocrática. É nas lutas que alguém ganha tal competência. Nesse sentido é importante reconhecer as “lideranças populares” já existentes no seio do povo. Respeitá-las, valorizá-las e reforçá-las. 2.) Importa também que o “animador” nunca venha a se desenraizar de seu chão de classe e de suas bases. Para isso é preciso que sua função seja renovável ou rotativa. Aqui importa mais a função de “animação” do que o portador da mesma. Pois o que o interesse aqui não é tanto a pessoa individual do “animador” quanto seu trabalho em favor do povo.

O poder tende naturalmente a se concentrar. Contra isso é preciso: 1.) Uma ética pessoal de serviço, autocrítica e autocontrole; 2.) Mecanismos instituídos consensualmente para o controle coletivo do poder: eleições, submissão a um regulamento escrito, divisão das tarefas, prestação de contas, hétero-crítica, reconhecimento de contrapoderes, rotatividade dos cargos, proibição de privilégios, honras e mordomias, etc.

Trata-se, enfim, de criar uma mentalidade nova no exercício do poder e também comunidades novas que saibam tanto se autogerir como resistir, criticar e mudar os responsáveis do poder (mesmo entendido como coordenação).

* Excertos do livro Como Trabalhar com o Povo de Clodovis Boff. Seleção da Comissão de Formação da Organização Popular Aymberê.


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