domingo, 11 de agosto de 2013

Otimismo, atitude subversiva

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Novos experimentos culturais brasileiros revelam possibilidade de reinventar democracia, diz Rodrigo Savazoni: falta agora Semana de Arte Moderna da política
Rodrigo Savazoni, entrevistado por Sérgio Cohn

Surgiu, nas últimas semanas, uma interpretação particularmente mórbida para as manifestações que sacudiram o Brasil em junho. Elas teriam, segundo tal viés, rasgado a máscara de um país que “se achou”; que ousou acreditar em si mesmo e nas contribuições civilizatórias que poderia aportar ao mundo. A insatisfação de junho teria demonstrado que estas ilusões são tolas. E somam-se agora as imagens da visita do Papa: a praia de Guaratiba enlameada, as multidões comprimindo-se em Copacabana seriam o sinal definitivo de que nos resta curvar a cabeça, em sinal de humildade, meter o rabo entre as pernas e, quem sabe, orar…
Sairá nos próximos dias um livro que é a antítese desta imagem auto-flagelatória. Chama-se “A Onda Rosa Choque – Reflexões sobre redes, cultura e política contemporânea”. Reúne ensaios do jornalista Rodrigo Savazoni, um dos fundadores da Casa de Cultura Digital (CCD), em São Paulo. Transita entre o debate sobre Políticas Culturais e novas Culturas Políticas. Aborda a gestão de Gilberto Gil e Juca Ferreira no MinC; o declínio desse ministério, no governo Dilma; os Fóruns Sociais Mundiais e sua herança; a CCD e o coletivo Fora do Eixo – que o autor estuda, em sua dissertação de mestrado, e com o qual se diz “identificado politicamente”. Mas o livro vai muito além.
Como jornalista, Savazoni oferece visões instigantes sobre todos estes processos. Porém, é como cientista social e político em formação que ele parece mais ousado e agudo. Do conjunto de ensaios, sobressai uma visão do atual cenário brasileiro que talvez possa ser resumida em três grandes ideias: a) Embora marcada por quinhentos anos de injustiça, nossa sociedade vive desde o início deste século, pela primeira vez, um processo intenso de reconhecimento e valorização de suas singularidades – daquilo que fora sempre reprimido, porque nos “diferencia” do padrão e das medidas brancas e europeias; b) Uma das chaves centrais para compreender estas singularidades é a antropofagia. Ao contrário de muitos pesquisadores ilustres, o livro não a vê apenas como eco distante e abstrato dos “insights” de Oswald de Andrade. Identifica-a viva em processos culturais e políticos contemporâneos. Por exemplo, nas originalidades e contradições do Lulismo; ou na audácia (certamente arriscada…) da CCD e do Fora do Eixo, ao lidar com o Estado e o mercado. c) Refugiarmo-nos, em meio às turbulências, no abrigo seguro da régua eurocêntrica seria a estratégia do avestruz – e a certeza da tragédia. O caminho é o oposto. Ao invés de negar, assumir a potência de “nossa natureza cultural, política, afetiva”. Compreender que nossa afirmação será turbulenta e contraditória – ou não será. Aprofundá-la, ao invés de recuar, reverentes a… um padrão civilizatório em frangalhos.
Para chegar a tais posições, Savazoni constroi, ao longo dos textos, revelações importantes e hipóteses saborosas. Conta, por exemplo, que, em meio a importante polêmica interna, a Casa de Cultura Digital recebeu, certa vez, a diretoria da Pepsi do Brasil – levada até lá por uma “agência de tendências”. O encontro (que muitos temeriam, identificando-o como “rendição ao capital”) teve, ao fim, sentido contrário. Se grandes corporações busvacam na CCD a “liberdade” que apregoam hipocritamente em sua publicidade, é porque seu mundo é, de fato, uma gaiola em que se projetam ilusões de autonomia e poder.
Também são provocadoras as visões sobre o Fora do Eixo. Savazoni identifica no coletivo algo que sequer seus desafetos apontaram: traços de leninismo. Mas, ao invés de condenar a tendência – munido do velho calibre europeu bem-pensante –, indaga-se: será que um pouco de centralização não é essencial para garantir a perenidade de experimentos sociais complexos, que precisam reproduzir-se continuamente, para se manter em pé?
Um dos textos mais inspiradores de “A Onda Rosa Choque” é uma entrevista – espécie de anexo – que Savazoni concede ao poeta e editor Sérgio Cohn. Outras Palavras tem a satisfação de publicá-la, a seguir. Nela, o autor fala de uma forma particular de violência pós-capitalista. É oposta às exibições de machismo dos black-blocks, que reproduzem tão enfadonhamente o mesmo culto à força bruta das tropas de choque.
Numa sociedade de controle e consumo, alegria, otimismo e criação são subversivos, sugere Savazoni. Eles negam, em sua imanência, a ideia paralisante e castradora segundo a qual estamos “condenados” à prisão do mercado. Eles abrem portas para uma dissidência quiçá áspera (é muito mais cômodo entorpecer-se no acalento de que “não há saídas”…) – porém tangível, (auto-)transformadora, prazerosa. Eles são “a prova dos nove”, como sugere o Manifesto Antropofágico. Estaremos preparados? Ou recuaremos ao “porto seguro” contra o qual Gil advertia já no antológico Tropicália? Para ajudar a sondar respostas, fique com o diálogo entre Sérgio Cohn e o autor de “A Onda Rosa Choque”. (A.M.)
savazoni
A célebre frase de Décio Pignatari, “na geléia geral brasileira alguém tem que exercer as funções de medula e osso” foi importantíssima para alguns dos expoentes da tropicália. Ela ressoa, por exemplo, na música “Geléia geral”, do Torquato Neto e Gilberto Gil, e depois no texto “Brasil diarréia”, de Hélio Oiticica. Agora que você está ampliando novamente a sua atuação da rede e da sociedade civil e entrando em uma posição institucional, de trabalhar na Secretaria de Cultura da cidade de São Paulo, tendo que encarar a superestrutura, como pensa essa questão?
É claro que é sempre mais cômodo e mais agradável se banhar no tecido gosmento do que ter que enfrentar as obrigações institucionais. Lembro-me do Mármore e a Murta: A inconstância da alma selvagem, ensaio em que Eduardo Viveiros de Castro recupera o sermão do Padre Antonio Vieira. Naquele texto, Viveiros trata de nossa dificuldade, como sociedade, em constituir formas fixas, estruturais. Ele recupera a ideia de que os gentios recebiam os jesuítas e Deus com uma grande facilidade, mas que rapidamente esqueciam aquele Deus dos jesuítas, aquele mesmo Deus que eles tinham tanto adorado no dia anterior, porque já haviam mudado de ideia e de adoração. Enquanto os europeus, talhados no mármore, demoravam mais para assimilar esse Deus, mas uma vez assimilado não mais deixavam de adorá-lo, os gentios, feitos de murta e encontrados na América, eram facilmente talháveis mas rapidamente perdiam a forma. Talvez daí venha a nossa geleia geral matricial. Sempre olhamos para isso por uma tradição filosófica que tentou fazer com que a gente se enquadrasse nos homens de mármore, sem perceber que a nossa grande potência era o fato de sermos de murta. Qual é a grande dificuldade que eu vejo, quando eu topo esse desafio de trabalhar na Secretaria de Cultura? É trabalhar para forjar institucionalidades que lidem com esses homens de murta, que somos nós. Como criar formas de estimular e fortalecer as forças tropicalistas, antropofágicas, e não querer enquadrar as nossas estruturas ou formatar instituições que tenham que lidar com um modelo mental, com formas de agir que são estranhas à nossa natureza cultural, política, afetiva, isso que nos constitui e nos diferencia? “Ou o mundo se brasilifica ou vira nazista”, como diz de forma fantástica Jorge Mautner. Nós podemos olhar para o que conseguimos desenvolver ao longo desse tempo, dessa tradição toda, e fazer com que isso se torne parte do nosso estado, parte das instituições que regulam nossa cultura, parte das instituições que comandam as nossas políticas. Esse é um desafio que me seduz, eu acredito nessa possibilidade, pois quando criamos da sociedade civil instituições como a Casa da Cultura Digital, ou participamos das redes que emergiram nos últimos anos, estamos a criar micro instituições, ainda que efêmeras, nômades, mas que possam dar conta do nosso tempo. A questão é de que maneira podemos fazer isso dentro das grandes estruturas, e fazer de uma maneira que permaneça? É possível? Pelo menos, que criemos instrumentos de fomento às dissidências.
O que Gilberto Gil e Juca Ferreira criaram no MinC foi determinante para as escolhas de toda uma geração. No contexto do governo Lula, surge um ministro e um grupo que se propõe a criar novos espaços políticos, baseados nessa dimensão antropofágica, voltados a reconhecer, fomentar e fortalecer essa diretriz longeva e clandestina da nossa cultura, não tornando-a oficial, mas dizendo: “bom, é isso que nos constitui, é essa a nossa força”. Acho um desafio fascinante, vem daí minha vontade de entender como é que se processam essas redes, essas dinâmicas políticas, que sujeito social é esse e como é que ele pode dialogar com essas outras estruturas, sejam os movimentos mais antigos, os partidos, as instituições. Ao fim, fica a pergunta: de que maneira que possamos avançar com essa compreensão num plano democrático, de repente até constituir uma nova esquerda desse caldo?
Ao mesmo tempo, o Brasil tem que lidar sempre com certo elogio da precariedade, transformada em potência em alguns momentos, como na maravilhosa “estética da fome” de Glauber Rocha, ou utilizada como afirmação da nossa incapacidade de lidar com projetos de longo prazo. Como criar políticas que não enrijeçam as regras, mas que não façam com que as experiências sejam sempre efêmeras e precárias?
Que elas sejam efêmeras e precárias o tanto quanto elas precisam para continuar sendo mananciais de renovação estética e cultural. Pois quer queria, quer não, Glauber filmou em um contexto e teve algumas condições para realizar seu projeto estético. Por mais que fosse “uma câmera na mão e uma ideia da cabeça”, era uma câmera 35mm que custava caríssimo, era preciso obter celulóide, era preciso ter os equipamentos para levá-los até o extremo. O Cinema Novo desemboca na Embrafilme. Essas estruturas, essas relações, permitiram à geração do Cinema Novo realizar seu projeto político e cultural. Até os milicos tiveram um papel fundamental naquele momento. Não é à toa que o Glauber delirante do fim da vida chega a tecer elogios aos seus algozes. Até para estressar as estruturas é preciso ter acesso a elas. De repente, a partir da redemocratização, o Brasil foi ficando careta, e o neoliberalismo à brasileira foi encaretando os processos político-culturais, a cultura seria, no máximo, um bom negócio, ou um adereço de perfumaria. Aí vem um ministro tropicalista no meio do governo Lula e retoma a possibilidade de criarmos políticas que permitam que as nossas maluquices se expressem continuamente. Isso é sensacional.
Em uma entrevista que fiz com o Arto Lindsay, ele comparou a relação das produções culturais no Brasil e EUA nos anos 1970, dizendo que aqui os equipamentos tinham que ser preservados, porque eram escassos. E nos Estados Unidos, como os equipamentos eram muito acessíveis, quando um artista tinha acesso a alguma novidade, podia ter o direito de forçá-la ao limite, para conhecê-la, saber até onde ela alcançava – podia inclusive quebrá-la. E dessa fartura advinha parte da estética punk.
Aí se cria a relação entre a infraestrutura e a estética. É desse caldo essencial que a ética hacker surge: a possibilidade de você modificar o equipamento por dentro, hackeá-lo, abrir essa caixa preta e dar a ela outro significado, outro sentido, outro uso, que faz com que você possa gerar inovação. Agora, até para isso é preciso ter equipamentos e a possibilidade de abri-los. Quando vamos distribuir i-pads nas escolas, as crianças aprendem basicamente a ficar mexendo nos aplicativos e baixá-los na Apple Store. Com isso, estamos formando bons consumidores de produtos da Apple, e não sujeitos que podem pensar novos processos tecnológicos e informacionais. Essa dinâmica dos objetos que nos perpassam e nos definem, se não pudermos mexer dentro deles, repensar os seus usos, não criaremos inovação. Na estética punk, o do it yourself era isso: pegavam um pedal de guitarra, juntavam uma coisa na outra, e em vez de ter uma distorção limpinha se criava uma distorção pesadona. Isso gera uma sonoridade, gera uma estética, um modo de vida e forja uma geração. É nossa obrigação chegar a esse nível de investimento na capacidade crítica do cidadão, e não manter uma estrutura de estado que simplesmente reproduz as dinâmicas de consumo. É preciso fomentar os espaços de invenção reais, e que já estão acontecendo, a despeito dos governos e governantes. Não é o estado achar que vai criá-los, mas identificar e dizer que apoia os processos da sociedade.
Lá no porão da Casa da Cultura Digital, um grupo de engenheiros ligados ao software livre construiu um hackerspace. Por que a gente não pode partir da experiência desses caras e criar laboratórios de garagens espalhados por toda a cidade, onde crianças e aficionados por tecnologia terão acesso aos excedentes do nosso consumo digital, e aprenderão a desmontar e remontar os equipamentos e criar sobre essa base material, que é uma das características mais importantes do nosso tempo? E a partir daí poder desenvolver tecnologias adequadas às realidades sociais específicas. Isso precisa do Estado para se popularizar, para se tornar amplo e generalizado. Da outra ponta, partindo das iniciativas individuais, isso já acontece, mas numa escala menor. Se o governo estiver comprometido com isso, é possível pegar as experiências da sociedade civil, processar e amplificar. Aí o desafio é como adequar as instituições para serem capazes de se relacionar de forma qualificada com esses processos, sem matar a experiência original.
Para isso as formas de controle estatal têm que ser muito mais livres.
Muito mais. As formas regulatórias precisam ser muito mais claras. E também é preciso pensar em institucionalidades mais flexíveis, que estejam em comum acordo com o nosso tempo. O efêmero, que é umas das características mais fortes da nossa época, onde as coisas começam e acabam com grande facilidade, tem que ser contemplado. E temos as estruturas monolíticas e históricas que não mudam nunca, o que gera uma contradição profunda. Por exemplo, a obsolescência tecnológica que temos dentro do Estado. A maior parte das pessoas operando com equipamentos de dez anos atrás. No mundo da tecnologia, viver há dez anos é como viver na pré-história. Temos coletivos, grupos, jovens trabalhando com ultraconexão, mundial, global, e um Estado absolutamente apartado de tudo isso. Resolver isso é fundamental, senão não é possível acompanhar, fica obsoleto, fica desnecessário, e a sensação da população é de que aquilo não funciona. E não funciona mesmo! Porque está numa situação de tal sucateamento que não foi feito para funcionar. E aí há um choque muito pesado, que é a relação entre as estruturas centralizadas e as estruturas horizontais. E existem grandes corporações que processaram essa cultura para dentro delas e conseguiram estabelecer seus diferenciais justamente ao criar simulacros de liberdade. No fundo, sabemos, são grandes gaiolas, mas criam uma sensação de que somos livres e podemos tudo.
Em função da experiência da Casa da Cultura Digital, e isso foi extensivo também ao Fora do Eixo, fomos “denunciados” por alguns grupos da esquerda radical como raptores de capital cultural, de fazermos o mesmo que faz a Google e outras grandes empresas. Chega a ser engraçado. Justo nós, que nunca tivemos capital, sempre vendemos janta para pagar o almoço, trabalhando com produção cultural, sermos comparados a gigantes da internet global. O que nós produzimos sempre foi aberto, livre, apropriável, os códigos-fonte disponíveis em sua integralidade. Muitas vezes por conta dessa condição nossos projetos nem sequer puderam ter continuidade, porque foram tão assimilados e desenvolvidos pelos pares que perderam o valor de troca. A gente queria anular a condição de mercadoria, e de repente somos comparados com ao Google e ao Facebook, megacorporações que dominam o mercado global funcionando como dragas de propriedade simbólica, portanto de recursos da sociedade do conhecimento. Essa crítica de um pequeno grupo, organizado e importante, que nos coloca no mesmo lugar dessas grandes empresas, levou-me à seguinte reflexão: “Será que se tivéssemos investido um pouquinho mais, nós realmente estaríamos em condições de criar algo da proporção de uma Google?” Não seria mau. Mas não é isso que buscamos.
Vocês foram observados por grandes empresas como sabedores de construção de rede.
Sim. Isso ocorreu e ocorre. Na Casa da Cultura Digital, que é uma multiplicidade, houve, por exemplo, reunião com a Pepsi. Eles levaram a diretoria inteira lá. Pararam um ônibus em frente da casa, levados por uma agência de tendências chamada Box 1824, numa excursão para conhecer os nossos pufes sujos, que ocupavam o espaço de convivência. Os diretores queriam ver como vive e trabalha a juventude de hoje. Eles queriam saber como associar a marca a esse “lifestyle”, para ganharem mais dinheiro vendendo Pepsi Cola. Nós não nos furtamos a esse diálogo, e isso foi uma das coisas que fez com que os outros se perguntassem: “Mas esses caras são mesmo de esquerda? Pois a diretoria da Coca-Cola, da Pepsi vai conversar com eles, a diretoria da Vale vai conversar e eles se expõem a isso?” Nunca foi algo totalmente naturalizado. Internamente, na lista de discussão, sempre nos batemos sobre isso. Mas eu acredito que dessa fricção você começa a estabelecer outros fluxos de entendimento. Nós passamos a nos entender melhor a partir daquilo, e aqueles que tinham algum sonho de que talvez a vida corporativa pudesse redimi-los viram que as pessoas presas dentro de um contexto corporativo estavam em busca de uma flexibilidade para os seus negócios que nós já tínhamos. Olhávamos uns para os outros e percebíamos que faltava dinheiro no dia a dia, mas que de repente estávamos vivendo bem. De repente, parte da nossa luta passou a ser criar condições de viver de forma flexível.
Essa posição, obviamente, gera conflitos. Passamos a ter acesso a textos em que somos tidos como arautos de uma renovação do capital, escritos por pessoas como Bruno Cava, Giuseppe Cocco, caras que obviamente não leram o que eu escrevi e me criticaram sem ter lido. Em janeiro de 2012, apresentei em inglês um texto num seminário chamado Marxism and New Media, organizado pelo Michael Hardt, na Universidade de Duke. O pessoal da Universidade Nômade criticou o artigo sem nem sequer ter lido. Tudo bem, entendo que eles possam discordar, achar que conceitualmente eu possa estar sendo equivocado, mas eu fui aceito para apresentar um texto num seminário organizado pelo Hardt, que supostamente junto com Toni Negri é o ídolo-mor de todos eles, então alguma coisa correta devo ter feito para os caras terem aceito meu artigo e permitido que eu apresentasse lá. Também não fui pedir permissão para eles para poder apresentar o artigo, talvez tenha sido isso que tenha incomodado. Ao fazerem essa crítica, localizarem nosso trabalho como um rapto, não me sinto mal. Tento compreender. Gosto do embate, de pensar. Passei a me perguntar: bom, o que será que tem de razão nisso que estão apontando? Vamos lá buscar na essência.
Essa polêmica ficou no ar e nunca aconteceu de verdade. Seria importante que fosse aprofundada. Eles colocam a Casa da Cultura Digital e principalmente o Fora do Eixo como réplicas pouco transparentes do que seriam as grandes corporações, como se fossem uma empresa fingindo que é uma rede.
E que no fundo o nosso negócio seria reproduzir capital simbólico e capturar esse capital gerado em rede, torná-lo mais flexível e vendê-lo, seja por editais do Estado, seja para patrocínio de corporações, em projetos culturais.
Além disso, dizem que vocês são uma rede autoreprodutiva que nem gera capital simbólico…
Só deslocamos. Essa é a análise deles. E é um exercício retórico interessantíssimo. O que seria então o resultante dessa produção que nós trocaríamos, que estaríamos capturando, negociando, vendendo, extraindo do comum? Seria o compartilhamento, as produções em rede. Essa captura funcionaria como se apenas um pequeno grupo se apropriasse desses excedentes, por saber produzir relações cujo valor organiza a produção capitalista no mundo atual. Não digo que isso não exista. Mas não posso concordar que esse seja o foco da ação da Casa da Cultura Digital, que foi uma experiência que eu ajudei diretamente a construir, ou mesmo do Fora do Eixo, rede que estudo e da qual sou politicamente próximo. Aliás, algo que fica obliterado nesse processo são as diferenças entre, por exemplo, essas duas experiências, a CCD e o Fora do Eixo. Nos demais artigos deste livro eu falo bastante dos dois fenômenos. Talvez ajude a entendê-los melhor.
Para ir mais fundo nesse debate, acredito que precisamos entender que topologia as redes possuem. Existe um diagrama do Paul Baran, muito interessante, sobre modelos distintos de redes: descentralizadas, centralizadas e distribuídas. Vejo que existe uma convivência destes vários tipos de redes, em uma sociedade enredada. Aliás, não existe nenhuma rede “pura”. Vivemos um mundo de híbridos e inclusive de redes híbridas, que em momentos operam com maior ou menor centralização ou horizontalidade, e que operam entre si inclusive com dinâmicas distintas, e ao mesmo tempo com diferentes capacidades de incidência e de articulação.
Que tamanho queremos ter? Que tamanhos essas redes podem constituir e, consequentemente, dependendo do tamanho que elas assumem, que resultados elas podem gerar? O que assusta esse pessoal muitas vezes é o tamanho que o Fora do Eixo atingiu, pois conseguiu se constituir em todo o país, em todos os estados, em 200 cidades, mais de duas mil pessoas. Esse grupo está vivendo em comunidades de autoprodução, que são as casas onde as pessoas passam a viver, em um drop in, não mais em um drop out, uma entrada profunda em outro modelo de vida que não é fora da sociedade mas é dentro dessa rede, de maneira extremamente orgânica e que está acontecendo com a experiência específica do Fora do Eixo. A Casa da Cultura Digital é diferente. Inclusive, agora, são casas. A primeira que foi criada ainda está lá, na mesma vila, com algumas pessoas que participaram da primeira dentição, mas outro grupo já criou uma outra casa em São Paulo, e há experiências se organizando no Rio Grande do Sul e no Pará, por exemplo.
Para aprofundar o debate, é preciso alguns passos atrás, me parece. Começar pela seguinte indagação: o que é feito desse recurso acumulado? Quem se beneficia disso? Uma empresa existe para ser empresa, tudo que ela captura ou é para gerar lucro para seus sócios, ou é reinvestimento no seu próprio negócio. No caso do Google, a produção serve para que, por meio de publicidade. os cofres da empresa inchem e remunerem seus acionistas. E no caso do Fora do Eixo? O que é feito com o excedente e com os resultados dessa circulação gerada pelos trabalhos por eles articulados? Em parte, é reinvestido integralmente no financiamento dessa vida “alternativa” que ocorre nas casas, por meio dos caixas coletivos; outra parte fundamental é devolvida por meio de infra-estrutura organizada para ações de maximização das lutas político-culturais que estão ocorrendo; uma parte disso, menor, eu diria, ficaria para investimento em novos projetos, que possam fazer com que a rede aumente seu potencial de incidência. Se há lucro, ele é reutilizado, partilhado. E isso ocorre de forma totalmente transparente, com planilhas abertas e publicadas online, onde é possível saber o que ficou para cada um dos agentes dentro desse processo. Ou seja o processo de redistribuição dos recursos gerados, sejam eles calculados em dinheiro corrente ou moeda social, é de conhecimento comum.
Se fossem entidades que captam exclusivamente em benefício próprio, empresas que vivem para empreender seu próprio negócio permanentemente, haveria duas saídas desses recursos, claramente: uma seria a contabilização disso como lucro, para alguns, e a outra como investimento para gerar mais dentro do negócio, e não são essas as duas formas de saída. Há assimilação dos ganhos e transformação em meios de produção próprios que possam permitir que outros projetos sejam fomentados dentro dessa rede. Há, portanto, fragmentação desse ganho em novos projetos, de perfil semelhante. Eu vejo o Fora do Eixo explodindo-se permanentemente por dentro e pipocando outras frentes. E isso ocorria também dentro da Casa da Cultura Digital. Corta-se a cabeça e dez novas surgem. Esse movimento, que tem várias outros exemplos, está fomentando a ampliação de experiências comuns em todo território nacional. Mais que tudo é para financiar um modelo de vida, um modelo que inclusive passa por criar uma nova economia.
Onde está o desafio? É ampliar o tempo livre e o tempo destinado às relações, ao afeto, às trocas, diminuindo o tempo necessário à produção, o tempo do trabalho propriamente dito. Vai-se aos poucos anulando esse tempo do trabalho e fica um tempo que é a vida sendo vivida, aproveitando-se dessa produção que é capaz de ser distribuída para que se viva muito bem e que se tenha tempo para usufruir daquilo que nos constitui, que são as expressões culturais, estéticas, políticas, a vida na pólis, a vida da construção da coletividade e tudo mais. É o que acho que o Gorz escreve em Adeus o proletariado, em 1980, dizendo que a luta dos movimentos de esquerda não deveria mais ser a distribuição do excedente de produção na relação do trabalho, mas pelo tempo livre, pela redução das jornadas, pelo aumento do tempo livre, e consequentemente pela sua oportunidade de educação, de cultura, de lazer. Porque a distribuição feita corretamente, a partir de outra visão de sociedade, nos garantiria vida qualificada para todos. Não sei se a CCD ou o Fora do Eixo são exatamente isso, mas eu diria que é o que nós devemos perseguir.
A outra crítica é que alguns nomes seriam lançados como poderes nessas redes enquanto outros nomes se manteriam no anonimato. Haveria uma catapulta política para alguns em detrimento de outros.
Pode ser que isso ocorra. No caso da Casa da Cultura Digital, nós reunimos algumas lideranças que já tinham uma trajetória antes de sua existência, como é o caso do professor Sergio Amadeu da Silveira, dos grandes defensores do software livre no Brasil, ou de Cláudio Prado, que articulou os projetos de políticas de cultura digital na gestão de Gil no Ministério da Cultura. Ao mesmo tempo, outras lideranças foram emergindo, gente importante, que é referência desse debate no Brasil, como Daniela Silva e Pedro Markun, do Transparência Hacker; Lia Rangel, André Deak, Bianca Santana, destaque no debate sobre recursos educacionais abertos; Gabriela Agustini, Georgia Nicolau, Dalva Santos, à frente do Festival CulturaDigital.Br; Lucas Pretti, Andressa Viana, Thiago Carrapatoso, entre tantos outros, que pariram inicialmente o Baixo Centro. No caso do Fora do Eixo, eles também foram criando inúmeras lideranças, como Pablo Capilé, Felipe Altenfelder, Talles Lopes, Carol Tokuyo, Lenissa Lenza, Bruno Torturra, isso mais recentemente, mas tem aí o Daniel Zen, o Ricardo Rodrigues, gente do Brasil inteiro. Há muitas lideranças surgindo, gente qualificada que foi formada nessa luta. Pessoas extremamente capazes de desenvolver projetos ultraqualificados, de atuar com maturidade emocional, cultural, política. Vemos quadros na boa tradição dos processos políticos sendo formados, gente muito boa surgindo de dentro. Muita gente reinvestigando sua formação e percebendo como pode viver uma vida inteiramente distinta. O papel de liderança, dentro de processos políticos vigorosos, se forma não pela sua capacidade de ser você mesmo, mas pela capacidade de localizar desejo para muito mais pessoas além de você. Vejo como um ato generoso, de se colocar, muitas vezes, como o instrumento de um processo. Erro é esquecer que, por trás de um nome, de um porta-voz, há todo um processo que o constitui.
Pensei no Gilberto Gil falando do Lula. Gil faz a metáfora do cavalo de santo, aquele que vai para a linha de frente e se coloca à disposição, coloca a sua individualidade guiada por coletivos, não guiada pela sua necessidade de satisfazer o seu ego. A grande liderança é forjada dessa maneira. Lula é um cavalo de santo, incorpora-se nele o povo brasileiro. Pode parecer uma análise complicada, que apontaria para o populismo, porque fica parecendo que um homem é o povo. Mas isso toca muito fundo no nosso tipo de sociedade, que sempre busca alguém que seja o responsável, o representante. E precisamos lidar com isso. Mesmo agora, entre os coletivos aunomistas, como o Passe Livre, eles elegem um porta-voz para lidar com a sociedade tal como ela está organizada, porque não é possível, a cada vez que se precisar negociar com uma empresa, com a mídia ou com o Estado, que se envie uma pessoa diferente. É necessária uma continuidade na conversa. Essa é a questão: qual é a relação que se quer ter com a sociedade tal como ela é? Porque às vezes o que parte da maioria das críticas é que querem que façamos da política um exercício abstrato, que não dialogue com a realidade e o contexto social ao qual nós estamos inseridos. Dentro das estruturas, há horizontalidade, tarefas, responsabilidades partilhadas. Para fora, muitas vezes, isso não fica claro, e o que aparece é a verticalidade.
O que se anuncia quando nos propomos a pensar novas estruturas políticas e culturais?
Essa pergunta é fundamental, porque eu realmente acredito que estamos construindo uma nova cultura política. Estávamos falando um pouco antes da política cultural, agora entramos na dimensão da cultura política. Ou seja, nas relações de convivência, das maneiras como nós podemos vivenciar essa experiência terrestre – e digo isso inclusive em relação à dimensão espiritual, que é algo que a gente exclui em geral das nossas reflexões sobre o desafio do nosso tempo, em uma separação entre corpo, mente e espírito. Eu diria que a mudança da cultura política é um dos aspectos que deveríamos observar mais atentamente, porque sem isso acabamos não conseguindo promover a transformação individual tão necessária para que geremos de fato uma nova sociedade.
Pode-se fazer toda a crítica que for a mim, mas não a minha disposição de tentar compreender a relação com o outro. Penso muito nisso: que tipo de generosidade cada um de nós deve guardar consigo, quanto nós devemos ser capazes de ir além de nossas vontades, quanto temos que ser capazes de lidar com nossos processos de formação, com nossas decepções, incapacidades, incoerências, nossas inseguranças, dentro de um contexto em que a vida em coletividade nos exige?
E o que se vê muitas vezes, dentro desses contextos de rede, é o oposto do altruísmo, da generosidade, da entrega, da anulação do ego exacerbado. Você vê gente falando em colaboração e disputando espaço permanentemente, não sendo capaz de dividir com o outro o mínimo para que a gente possa dizer que de fato estamos vivendo uma relação política de outra natureza.
Como normatizar a experiência da colaboração? O que cada um deve e pode oferecer, e o que cada um deve e pode retirar? O Fora do Eixo, por exemplo, por meio dos Cards, faz em parte essa normatização. E isso incomoda muita gente, por consequentemente parecer que existe uma doutrina nos seus processos, e talvez até exista mesmo. Há uma centralização interna, que parece reproduzir os modelos de organizações leninistas, onde temos uma cúpula e a base. Mas essa foi a forma que encontraram para que a ação de um não dilua a força coletiva. Essa é a experiência deles. Outras que vivi não chegaram a um acordo, eram mais descentralizadas, pareciam mais oxigenadas e, ao fim e ao cabo, produziram insatisfação generalizada, por não proporcionarem um lugar comum de solução das divergências e dos conflitos, que a vida em coletividade fatalmente produz. Estou dizendo tudo isso para dizer o seguinte: o que experienciamos nesses contextos são toda a precariedade e complexidade humanas. Alguns estão estabelecendo um desafio político no macro, de constituir novas políticas culturais, sociais, ambientais, e se debruçando sobre a dinâmica do micro, a cultura política, comportamental, das formas de relações e de sociabilidade que se pretendem gerar dentro desses espaços.
É possível partilhar muitas dimensões da vida. Talvez a mais delicada que se possa partilhar é a de sonhar em conjunto; partilhar nossa capacidade de produzir linguagem em conjunto, criar em conjunto, coisa que os coletivos artísticos vêm fazendo ao longo do último século. Não necessariamente você precisa ir para uma comuna de caixa coletivo, mas você vai viver a criação conjunta, colaborativamente, dividir esse ato humano por excelência, aquilo que nos diferencia e ao mesmo tempo nos toca mais profundamente. Essa troca talvez seja a mais profunda e é extremamente fortuita. Quando se vai para um coletivo que propõe e experimenta isso, como eu experimentei na Casa de Cultura Digital com vários parceiros, toca-se numa dimensão de compartilhamento e colaboração que faz repensar as relações, repensar como vivemos nossas vidas. Isso é muito potente.
Infelizmente, nem todo mundo, porém, sai dessas experiências melhorado. Um monte de gente fica pelo caminho. Ou não consegue chegar ao ponto em que os demais se encontravam, e aí volta, retrocede. Muitos viram críticos radicais daquele processo. Ou porque não entendeu, ou porque teve uma experiência ruim, por muitos fatores. Tem um lado casuístico nisso tudo. Muito erro. E um lado caótico, porque não é um diagrama exato, bem pensado, onde cada uma das funções é pré-determinada. As variáveis são dinâmicas.
Tenho visto tudo isso como um grande laboratório, e nos laboratórios sabemos que vamos fazer um experimento, mas não sabemos qual será o resultado. No máximo, temos uma hipótese. Algo que gostaríamos que ocorresse. Mas o erro está à espreita. Não sabemos se o produto gerado será único ou poderá ser reproduzido em escala. Essas experiências me interessam. Temos de buscar as saídas. No fundo é isso, estamos laboratoriando a existência, a vida, o que viemos fazer nesse plano em várias camadas. E se expor a isso exige de nós um tipo de preparo emocional que nem todos possuem.
Mas acho que devemos reconher que essas experiências são importantes. Não sabemos se elas vão durar. Nem se elas precisam durar. Talvez sobrevivam, mas certamente diferentes, com outras características. Pode ser que vejamos a sociedade se transformar de tal forma que, por exemplo, o Fora do Eixo não precise mais existir. Talvez a utopia venha daí. Viver comunitariamente, como você falava outro dia a respeito das arquiteturas coletivas dentro das cidades. De repente daqui a vinte anos teremos centro urbanos como o de São Paulo, com vários quarteirões de arquiteturas coletivas, com as juventudes e as pessoas da nossa geração, já seremos velhinhos, ou pré-velhinhos, ou middle age, porque as pessoas vivem até os 90 anos, convivendo. E nós estaremos ali no meio do caminho, mas como já viemos forjados dessa experiência, também cairemos para dentro dessas arquiteturas coletivas. E de repente o Centro de São Paulo vai ser um grande caixa coletivo, por que não? Aí não fará mais sentido discutir o Fora do Eixo, mas sim por que a sociedade caminhou nessa direção de ser um embrião de uma coisa que se realizou, e teremos outros modelos para experimentar. Estou brincando um pouco, porque outro dia estava conversando com a Ivana Bentes sobre não conseguirmos hoje fabular e criar ficções positivas a respeito do que vivenciamos. E um desafio é começar a refazer as ficções, porque se pegamos as ficções científicas, as coisas que foram feitas nas últimas décadas, muitas delas são distópicas.
O Colin Wilson, que escreveu O Outsider, fala muito sobre isso. Ele remete ao biólogo Rupert Sheldrake, e diz: “Se Sheldrake estiver certo – e os biólogos estão brigando com ele a cada passo do caminho –, as consequências serão óbvias e extraordinárias. Inicialmente, teríamos que reconhecer que nossos escritores e artistas têm grande parte da culpa pelo estado caótico da sociedade. A maior característica de um vencedor do Prêmio Nobel parece ser acreditar que a vida é fútil e sem sentido, e dizer isso em livros e peças que terminam com a derrota do herói. Nós empurramos esse lixo para nossas crianças na escola e na universidade e acreditamos estar preparando-os para encarar a vida. Se existir mesmo uma verdade na teoria da ressonância mórfica, isso é o equivalente a despejar germes no reservatório de água da cidade.” Ou seja, ele está falando de um inconsciente coletivo forjado por universos distópicos e isso estaria alimentando as novas gerações de forma absolutamente negativa. É meio místico, mas tem algo interessante aí.
De certa maneira, o Cláudio Prado com o pós-rancor também entra um pouco por aí. Esse peso que parte da esquerda se impõe. A estratégia da vitimização. Não acho que temos de esquecer. Tem sim de lembrar, disputar a memória, não dá para passar uma régua no passado, mas acho que tem uma carga de negatividade que é imposta para alguns grupos e que mobiliza a juventude, mas não nos permite ver outros caminhos, outras possibilidades de vida. É interessante pensar sobre um movimento que prega o amor, a diversidade, outras relações possíveis, se veste de rosa choque… Por que incomoda tanto? O otimismo é violento.
O otimismo e a felicidade são mais violentos do que a violência cotidiana que já está assegurada pela grande mídia.
E “a alegria é a prova nos nove”, não é? De alguma maneira, não houve na política nada semelhante ao que foi a Semana de Arte Moderna para as artes, e muito menos tivemos na nossa política uma experiência na nossa política tão radical como o neoconcretismo, o tropicalismo, derivações da antropofagia oswaldiana.
Estão entre o moderno e o contemporâneo, esse jogo é interessante.
E se nos anos 1980 o PT representou a renovação, o moderno, tem que vir o contemporâneo agora. E acho que ele vem de outro PT, que pode nascer de dentro do próprio PT. Ou não. Tenho para mim que não existe saída fora do acordo lulista para o Brasil nos próximos anos. Acho que o acordo que o Lula construiu trará de dentro dele o próximo salto. Mas é esse outro PT, esse Partido Tropicalista que existe aqui ebulindo dentro dessas estruturas, que pode trazer a política para o contemporâneo. Isso sem recusar a experiência acumulada, pois a resposta não vai sair de fora. E aí quando eu falo lulista, não falo necessariamente do Partido dos Trabalhadores. No caso das políticas culturais, Lula foi muito mais longe do que o PT foi capaz. Dentro do Lulismo cabe esse campo que se constituiu incorporando Gilberto Gil e Juca Ferreira em um primeiro momento e cabe, por exemplo, o surgimento de uma nova liderança proveniente da universidade e do pensamento crítico uspiano como Fernando Haddad. Tenho me colocado à disposição, como vários de nós, para fazer emergir esse contemporâneo de dentro da experiência moderna. Ela se atualiza por aí.
O contemporâneo trouxe nas artes visuais a inserção do corpo, assim como a contracultura para a política. O que ainda precisa ser institucionalizado.
É a bioluta. As lutas pela vida. Está na análise foucaultiana sobre o poder: o biopoder. O Deleuze traz isso para a sociedade do controle, o Negri reelabora e inverte o sentido do biopoder, já não mais como um diagnóstico, mas um processo ativo de disputa da sociedade, que passa a se organizar em torno de biolutas. Esses referenciais estão todos postos e de alguma maneira passamos por experiências semelhantes, de estéticas relacionais, de processos de pós-produção, de dinâmicas que incorporam o corpo para dentro, e de alguma maneira também a espiritualidade, que traz para dentro dessa dimensão as reflexões rituais. Nesse caldeirão há um contingente que não estava dado dentro da política tradicional. Acredito que pode aparecer outro caminho, um novo rumo, e dele pode vir a experiência de construir instituições e uma democracia baseada na nossa flexibilidade histórica e da nossa capacidade de deglutição das nossas próprias experiências, referências, não mais tentando reproduzir modelos eurocentricos, mas sim nos colocando o desafio de inventar novos caminhos. E aí talvez, sem ser arrogante, dar de fato respostas para o mundo. Talvez o século que virá seja não o da democracia americana, mas o dá democracia brasileira.
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Sobre o mesmo tema:

  Por que ler Cidades Rebeldes

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Coletânea recém-lançada de textos sobre manifestações de junho debate crise da representação, papel das ruas e retomada do Direito à Cidade

Por Raquel Rolnik, em seu blog
Refletindo sobre como escrever o texto de apresentação deste livro [Cidades Rebeldes - Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil], deparei-me com o editorial de um semanário francês com a seguinte pérola:
Como na Turquia, as manifestações violentas que lançaram às ruas mais de um milhão de pessoas nas cidades brasileiras ecoaram como um trovão em um céu aparentemente sereno. Entretanto, elas demonstram, para além dos protestos contra a alta das tarifas nos transportes públicos, a débâcle do m ilagre brasileiro, q ue, após uma década de crescimento excepcional (5% ao ano), que aumentou a renda per capita de 7.500 para 11.800 dólares e fez emergir uma classe média de 90 milhões de pessoas, cresceu apenas 0,9% em 2012, por conta da política estatista e protecionista da presidenta Dilma Rousseff. (Editorial de Le Point, 27 jun. 2013. Tradução minha.)
O artigo prossegue com a ladainha do fundamentalismo neoliberal, apontando o elevado custo do trabalho, a alta carga tributária e a corrupção como os responsáveis pelo grande descontentamento manifesto nas ruas. Explicações como essas, que soam no mínimo patéticas para o grupo de autores que compõe esta bela e forte tentativa de interpretação das chamadas revoltas de junho, estiveram presentes não apenas nas leituras sobre os eventos, mas nas próprias manifestações. No decorrer dos protestos, houve uma disputa nos cartazes empunhados pelo conjunto heterogêneo que ocupou as ruas e uma guerra de interpretações das vozes rebeldes. Nesse sentido, esta iniciativa da Boitempo, que convoca o pensamento crítico independente para interpretar os fatos recentes no Brasil no calor do momento, é mais do que bem-vinda, e fazer a apresentação deste livro é, para mim, um enorme privilégio.
Podemos pensar essas manifestações como um terremoto – uma metáfora mais adequada do que o trovão mencionado no editorial do semanário francês –, que perturbou a ordem de um país que parecia viver uma espécie de vertigem benfazeja de prosperidade e paz, e fez emergir não uma, mas uma infinidade de agendas mal resolvidas, contradições e paradoxos. Mas, sobretudo – e isso é o mais importante –, fez renascer entre nós a utopia… No campo imediato da política, o sismo introduziu fissuras na perversa aliança entre o que há de mais atrasado/excludente/prepotente no Brasil e os impulsos de mudança que conduziram o país na luta contra a ditadura e o processo de redemocratização; uma aliança que tem bloqueado o desenvolvimento de um país não apenas próspero, mas cidadão.
Os autores desta coletânea apontam várias agendas como o epicentro do terremoto. Para Ruy Braga, “a questão da efetivação e ampliação dos direitos sociais é chave para interpretarmos a maior revolta popular da história brasileira”. O direito a ter direitos, que alimentou as lutas dos anos 1970 e 1980 e inspirou a Constituição e a emergência de novos atores no cenário político, parecia esvanecido no contexto da formação de uma espécie de hibridismo de Estado, desenvolvimentista e neoliberal, com uma cultura política e um modelo político-eleitoral herdados da ditadura. Nas palavras de Carlos Vainer (parafraseando Mao Tse-Tung), “uma fagulha pode incendiar uma pradaria” e, no nosso caso, essa fagulha foi a mobilização contra o aumento da tarifa nos transportes públicos convocada pelo Movimento Passe Livre (MPL). O MPL-SP formula a questão da tarifa em seu ensaio neste livro como uma afirmação do direito à cidade. De acordo com o texto/manifesto, a circulação livre e irrestrita é um componente essencial desse direito que as catracas – expressão da lógica do transporte como circulação de valor – bloqueiam. João Alexandre Peschanski, compartilhando dessa visão, analisa a proposta da tarifa zero, sua apropriação possível pelo sistema capitalista e, ao mesmo tempo, seu potencial transformador da sociedade.
A situação da mobilidade nas cidades brasileiras assemelha-se muito à de Los Angeles, descrita por Mike Davis. Nas nossas ruas, o direito à mobilidade se entrelaçou fortemente com outras pautas e agendas constitutivas da questão urbana, como o tema dos megaeventos e suas lógicas de gentrificação e limpeza social. As palavras de Ermínia Maricato – “os capitais se assanham na pilhagem dos fundos públicos deixando inúmeros elefantes brancos para trás” – me lembraram um cartaz que vi em uma das passeatas: “Quando meu filho ficar doente vou levá-lo ao estádio”. A questão urbana e, particularmente, a agenda da reforma urbana, constitutiva da pauta das lutas sociais e fragilmente experimentada em esferas municipais nos anos 1980 e início dos anos 1990, foram abandonadas pelo poder político dominante no país, em todas as esferas. Isso se deu em prol de uma coalizão pelo crescimento que articulou estratégias keynesianas de geração de emprego e aumentos salariais a um modelo de desenvolvimento urbano neoliberal, voltado única e exclusivamente para facilitar a ação do mercado e abrir frentes de expansão do capital financeirizado, do qual o projeto Copa/Olimpíadas é a expressão mais recente… e radical.
Entretanto, não se compra o direito à cidade em concessionárias de automóveis e no Feirão da Caixa: o aumento de renda, que possibilita o crescimento do consumo, não “resolve” nem o problema da falta de urbanidade nem a precariedade dos serviços públicos de educação e saúde, muito menos a inexistência total de sistemas integrados eficientes e acessíveis de transporte ou a enorme fragmentação representada pela dualidade da nossa condição urbana (favela versus asfalto, legal versus ilegal, permanente versus provisório). A “fagulha” das manifestações de junho não surgiu do nada: foram anos de constituição de uma nova geração de movimentos urbanos – o MPL, a resistência urbana, os movimentos sem- -teto, os movimentos estudantis –, que, entre “catracaços”, ocupações e manifestações foram se articulando em redes mais amplas, como os Comitês Populares da Copa e sua articulação nacional, a Ancop.
O direito à cidade é também reivindicado por coletivos ligados à produção cultural, como relata Silvia Viana, que colocam a ocupação do espaço público como agenda e prática. As cidades brasileiras são cada vez mais e em vários momentos não apenas palco, mas objeto de intervenções desses coletivos, como no caso da ocupação Prestes Maia, em São Paulo, que articulou os grupos de produção cultural aos dos sem-teto e outros movimentos. O texto de Silvia Viana aponta para uma diferença substantiva que se estabeleceu nas interpretações – e apresentações – das manifestações: a clivagem entre “pacíficos” e “baderneiros”. Como em outros snapshots da guerra de significados, a ocupação da cidade foi disputada por diferentes sentidos. A tropa de choque, que no cotidiano executa pessoas sumariamente nas favelas e realiza despejos jogando bombas de gás nos moradores, entrou e saiu de cena ao longo das manifestações, lembrando que, no país próspero e feliz, a linguagem da violência ainda é parte importantíssima do léxico político. O artigo de Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira sobre o Rio de Janeiro demonstra a relação entre um projeto excludente de cidade e a militarização dos territórios populares. Ao lê-lo, ecoou em minha memória um dos slogans ouvidos nas ruas: “Que coincidência! Não tem polícia, não tem violência”.
Para a linguagem da polícia – e da ordem – a ocupação das ruas é baderna; porém, amparados pela Constituição, como nos lembra Jorge Luiz Souto Maior, para vários movimentos sociais ali presentes, a retomada do espaço urbano aparece como o objetivo e o método, que determina diretamente os fluxos e os usos da cidade. Nas palavras do MPL-SP:
A cidade é usada como arma para sua própria retomada: sabendo que o bloqueio de um mero cruzamento compromete toda a circulação, a população lança contra si mesma o sistema de transporte caótico das metrópoles, que prioriza o transporte individual e as deixa à beira de um colapso. Nesse processo, as pessoas assumem coletivamente as rédeas da organização de seu próprio cotidiano.
Outros temas – e outras agendas, igualmente presentes nas ruas – podem ser lidos e interpretados a partir dessa fala do MPL: a participação, através de sua expressão mais radical, a autogestão, e as novas maneiras e métodos de fazer política tomaram as ruas como forma de expressar revolta, indignação e protesto. Isso não é novo na política. Mas hoje o tema da ocupação – no sentido do controle do espaço, mesmo que por um certo período, e, a partir daí, a ação direta na gestão de seus fluxos – tem forte ressonância no sentimento, que parece generalizado, do alheamento em relação aos processos decisórios na política e da falta de expressão pública de parte significativa da população. Ocupando as ruas, reorganizando os espaços e reapropriando suas formas, seguindo a linha teórica avançada por David Harvey em seu artigo, aqueles que são alijados do poder de decisão sobre seu destino tomam esse destino com seu próprio corpo, por meio da ação direta.
Desilusão/denúncia em relação à democracia e as formas de expressão pública? Na chamada agenda da “crise de representação” novamente convergem pautas e leituras contraditórias. Venício A. de Lima aponta como os grandes meios de comunicação, conglomerados empresariais monopolistas, investem sistematicamente na desqualificação dos políticos e da política e, nos últimos anos, insistem na pauta da corrupção como grande responsável pelas mazelas do país. Embora, de fato, o pacto de governabilidade tenha influenciado o distanciamento dos atuais partidos e políticos em relação à população e embora os chamados partidos de esquerda, uma vez conquistada a hegemonia na coalizão governante, tenham enterrado a pauta da participação popular e da gestão participativa direta, caracterizar a origem da crise atual no campo moral “corrupção”, do qual só os políticos participam, é, no mínimo, altamente reducionista e pode também resvalar para diversas formas de fascismo, no estilo “Melhor sem os políticos”.
A questão da representação não envolve apenas a crise dos partidos e da política e, portanto, a necessidade de uma reforma política, uma das principais agendas das ruas. Segundo Venício, “os jovens manifestantes se consideram ‘sem voz pública’, isto é, sem canais para se expressar”. Twitter, Facebook e as demais redes sociais, outros personagens dessa trama, não garantem a inclusão dos jovens – e de vários outros segmentos da população brasileira – na chamada “formação da opinião pública”, cujo monopólio é exercido pela grande mídia. É o que nos lembra Lincoln Secco: “Apesar de a maioria dos jovens manifestantes usar a internet para combinar os protestos, os temas continuam sendo produzidos pelos monopólios de comunicação”. Assim, entende-se também por que redes de TV foram, e continuam sendo, atacadas pelos manifestantes.
Qual a conexão entre o movimento no Brasil e outros tantos do planeta, como o que ocorreu ao mesmo tempo em Istambul, a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street, os Indignados da Espanha? Esses movimentos transformaram da praça Tahrir, no Egito, à praça do Sol, em Madri, da praça Syntagma, na Grécia, ao parque Zuccotti, nos Estados Unidos, passando pela praça Taksim, na Turquia, em palcos de protestos majoritariamente compostos por jovens, convocados por meio de redes sociais, sem a presença de partidos, sindicatos e organizações de massa tradicionais. Slavoj Žižek analisa essa questão com maestria em seu ensaio. Voltando ao semanário francês que citei no início: até a eclosão das manifestações na praça Taksim (e das revoltas de junho no Brasil) o discurso hegemônico dos representantes do fundamentalismo de mercado enquadrava esses movimentos basicamente como protestos pela falta de emprego, renda e democracia representativa, ou de uma combinação desses elementos, ignorando os inúmeros conteúdos e agendas trazidos para as ruas, sobretudo o questionamento do “sistema”, essa velha palavra que sintetiza o modo de produção econômico-político da sociedade.
Nos diversos países que citei, assim como nas cidades brasileiras, os modelos de desenvolvimento e as formas de fazer política estão em questão. De acordo com Leonardo Sakamoto, a “civilização representada por fuzis, colheitadeiras, motosserras, terno e paletó [...] mais cedo ou mais tarde terá de mudar”. O velho modelo de república representativa, formulado no século XVIII e finalmente implementado como modelo único em praticamente todo o planeta, dá sinais claros de esgotamento.
Contra esse modelo baseado em estruturas verticais e centralizadas, movimentos como o Occupy e outros propõem formas horizontais de decisão, sem personificação de lideranças nem comando de partidos e comitês centrais. Esta foi também parte da “surpresa” das ruas: onde estão as bandeiras e os carros de som com os megafones? Quem são os líderes? Quem manda? O apartidarismo ganhou sua versão fascista, antipartidária, quando militantes de partidos quiseram aderir às manifestações e foram espancados… pelos próprios manifestantes.
O leitor deste conjunto de artigos provavelmente concordará comigo que a voz das ruas não é uníssona. Trata-se de um concerto dissonante, múltiplo, com elementos progressistas e de liberdade, mas também de conservadorismo e brutalidade, aliás presentes na própria sociedade brasileira. Como diz Sakamoto: “Uma vez posto em marcha, um movimento horizontal, sem lideranças claras, tem suas delícias – assim como as tem um rio difícil de controlar – e suas dores – assim como as tem um rio difícil de controlar”.
As propostas alternativas ao modelo dominante precisarão ter seu tempo de formulação e experimentação. Aos aflitos com a falta de novos modelos, eu perguntaria como teriam se sentido após a Revolução de 1848, na França… Temos que aprender a não nos assustar com isso também e, como diz Mauro Luis Iasi: “Devemos apostar na rebelião do desejo. Aqueles que se apegarem às velhas formas serão enterrados com elas”.
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O livro Cidades Rebeldes – Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, já se encontra disponível em nossa livraria, por apenas R$ 7,00

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 A mobilização que você faz dentro de si
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Num mundo em crise, multiplicam-se também iniciativas para repensar atitudes pessoais, questionar conceitos como “conquistas” e “sucesso” e valorizar sensibilidade
Por Katia Marko, na coluna Outro Viver | Imagem: @rafael_grampa no Ideafixa
“Quem de dentro de si não sai, vai morrer sem amar ninguém”. Essa pequena frase da música Berimbau, do poetinha Vinícius de Moraes, tem me feito refletir muito. Principalmente nestes tempos de ressignificação da vida e busca de maior liberdade. Acredito que o mundo está em transformação, mas o que será ainda não dá para saber. Porém, podemos capturar algumas experiências e ir arriscando palpites.
Quando decidi morar em uma comunidade, o maior conflito era abandonar o “eu”, ou seja, a minha casa, o meu carro, os meus interesses, o meu umbigo. E continua sendo, de alguma forma, pois não é fácil soltar condicionamentos. Vivemos em uma cultura narcisista, na qual a imagem é mais importante do que a realidade. A idéia de rendição e entrega é muito impopular, pois consideramos a vida uma luta, uma batalha. O objetivo é vencer, obter conquistas, algum sucesso. O fazer é mais importante do que o ser. O sucesso proporciona auto-estima, mas somente porque inflaciona o ego. Já o fracasso surte o efeito oposto. Nesse cenário, os termos rendição e entrega, equivalem a ser derrotado, mas, na realidade, é apenas a derrota do ego narcisista. E sem essa rendição, é difícil entregar-se ao amor.
Leonardo Boff defende que o grande desafio atual é conferir centralidade ao que é mais ancestral em nós, o afeto e a sensibilidade. “Numa palavra, importa resgatar o coração. Nele está nosso centro, nossa capacidade de sentir em profundidade, a sede dos afetos e o nicho dos valores.” Arrisco enveredar por um caminho não muito fácil, para afirmar que iniciativas cá e acolá me fazem acreditar que estamos resgatando a confiança no ser humano. Bem, na minha visão, é isso que significa as novas formas de viver que estão pipocando pelo mundo.
Notícias como a que “1200 catalães praticam a autogestão com moeda, educação e saúde próprias”, com a expansão para a França e a Itália, ou de que a  “Crise na Grécia estimula criação de comunidades sustentáveis”, ou ainda a experiência vivida pelos jovens organizados nas casas do Fora do Eixo, no Brasil, demonstram que formas alternativas estão sendo buscadas. Claro que existem problemas, contradições e insatisfeitos. E isso acontece em qualquer ação. Mas o importante é que existem pessoas que querem furar o “esquema”.
“Jamais a humanidade dispôs de tantos recursos materiais e competências técnicas e científicas (…) Mas, por outro lado, ninguém pode mais acreditar que essa acumulação de poder possa prosseguir indefinidamente, tal qual em uma lógica de progresso técnico inalterada, sem se voltar contra ela mesma e sem ameaçar a sobrevivência física e moral da humanidade”. Essas são as primeiras frases do Manifesto do Convivialismo, outra descoberta que fiz recentemente.
O seu idealizador é Alain Caillé, sociólogo fundador do MAUSS (Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais), que conseguiu reunir e fazer trabalhar junto um grupo de 64 pesquisadores e universitários procedentes do mundo inteiro, de sensibilidade altermundista, ecologista, ou oriundos do cristianismo social, como Edgar Morin, Susan George, Patrick Viveret, Serge Latouche, Elena Lassida, Jean Baptiste de Foucauld, Jean Pierre Dupuy, Jean Claude Guillebaud, entre outros. O resultado é a elaboração de uma nova base doutrinal filosófica, o convivialismo, para responder às quatro grandes crises – moral, política, econômica e ecológica – vividas pelas nossas sociedades nesse início do século XXI.
Segundo o manifesto, para além do liberalismo, do socialismo ou do comunismo, devemos inventar um convivialismo, uma convivialidade, dito em outras palavras, a arte de viver juntos mesmo nos opondo, mas sem nos massacrarmos e levando em conta a finitude e a fragilidade do mundo.
É claro que tenho a noção de que são iniciativas ínfimas, mas são passos na direção da invenção do novo. Voltando ao Leonardo Boff, vou reproduzir dez pontos cruciais, apontados no livro “Cuidar da Terra, proteger a Vida, como evitar o fim do mundo”. Segundo ele, representam experiências humanas que não podem ser desperdiçadas, pois incorporam valores que poderão alimentar novos sonhos, nutrir nossa imaginário e, principalmente, fomentar práticas alternativas.
O primeiro é reconhecer que a Terra é Mãe (Magna Mater, Pacha Mama), um superorganismo vivo, chamado Gaia, que combina todos os elementos físicos, químicos e biológicos para manter-se apta a produzir e reproduzir, mas que é finito, com recursos escassos.
O segundo é resgatar o princípio da re-ligação: todos os seres, especialmente, os vivos, são interdependentes e são expressão da vitalidade do Todo que é o sistema-Terra. Por isso todos temos um destino compartilhado e comum.
O terceiro é entender que a sustentabilidade global só será garantida mediante o respeito aos ciclos naturais, consumindo com racionalidade os recursos não renováveis e dar tempo à natureza para regenerar os renováveis.
O quarto é o valor da biodiversidade, pois é ela que garante a vida como um todo, pois propicia a cooperação de todos com todos em vista da sobrevivência comum.
O quinto é o valor das diferenças culturais, pois todas elas mostram a versatilidade da essência humana e nos enriquecem a todos, pois tudo no humano é complementar.
O sexto é exigir que a ciência se faça com consciência e seja submetida a critérios éticos para que suas conquistas beneficiam mais à vida e à humanidade que ao mercado.
O sétimo é superar o pensamento único da ciência e valorizar os saberes cotidianos, das culturas originárias e do mundo agrário porque ajudam na busca de soluções globais.
O oitavo é valorizar as virtualidades contidas no pequeno e no que vem de baixo, pois nelas podem estar contidas soluções globais, bem explicadas pelo efeito borboleta.
O nono é dar centralidade à equidade e ao bem comum, pois as conquistas humanas devem beneficiar a todos e não como atualmente, a apenas 18% da humanidade.
O décimo, o mais importante, é resgatar os direitos do coração, os afetos e a razão cordial que foram relegados pelo modelo racionalista e é onde reside o nicho dos valores.
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