Volta às aulas de 2019 é um
retorno ao nosso passado ditatorial nas escolas
Eliana Alves Cruz
11 de Fevereiro de 2019, 18h10
O retorno às aulas no Distrito
Federal aconteceu nesta segunda-feira com uma “velha novidade”: militares no
comando. Quatro escolas terão gestão compartilhada, num projeto da Secretaria
de Educação em parceria com a Polícia Militar. Novo uniforme, regras mais
rígidas de horários e comportamento e aulas de civismo estão entre ações do
modelo que deve se expandir para outras escolas em breve.
O ministro da Educação, o
professor colombiano Ricardo Vélez Rodríguez, mal havia sentado em sua cadeira,
quando se apressou a dizer que as prefeituras que se mostrarem interessadas em
militarizar a administração das escolas municipais terão todo o apoio da pasta.
O próprio Ministério da Educação já tem a sua parcela de militarização com
membros das Forças Armadas e dos Bombeiros em postos chave – o coordenador do
Fies e do Fundeb, por exemplo, será o coronel dos bombeiros aposentado Luiz
Tadeu Vilela Blumm. O Fundeb repassa recursos para as redes públicas de ensino
municipais e estaduais.
Considerando que o novo grupo no
comando da nação elegeu o ambiente escolar como um dos principais campos de
embates “contra o viés ideológico”, é impossível não enxergar neste incentivo
uma tentativa de vigilância de conteúdos e controle muito similares ao ocorrido
na ditadura que comandou o país de 1964 a 1985. E é este cenário que
enfrentarão os mais de 56 milhões de estudantes do ensino fundamental e do
ensino médio na rede pública de todo o país que retornaram às aulas.
Nasci em meio à ditadura e estudei
em escola pública do subúrbio carioca até o fim do que hoje é o ensino
fundamental. Todos os dias, nossa primeira tarefa ao chegar à escola era fazer
uma formação no pátio, cantar o hino nacional e responder em coro a pergunta da
diretora: “Quem é o presidente do Brasil?” No caso, tratava-se de Emílio
Garrastazu Médici. Todos os dias, sem exceção. Isto não seria nada, se
acompanhada da repetição mecânica sobre quem realmente manda na nação não
viesse todo um discurso e atitudes legitimando algumas formas de pensamento,
como a exclusão de obras da aula e de biblioteca.
Tive a oportunidade de retornar a
essa mesma escola no final de 2018, convidada para falar na programação de
novembro, mês da consciência negra. No mesmo pátio em que me vi muito pequena repetindo
o nome de um ditador, estudantes do grupo Favela Fashion, coordenado por
Juliana Henrik, realizaram um desfile surpreendente. Usando vestidos pretos,
com saltos altos e maquiadas com marcas pelo corpo, apresentaram em cartazes as
tenebrosas estatísticas de feminicídio e de assassinato de jovens negros e
negras no Brasil, conscientizando os mais novos e as mais novas da realidade e
expressando de forma muito contundente e criativa o desejo de mudança.
Não pude deixar de me admirar com
a radical mudança no clima escolar em quatro décadas e me perguntei: “Mesmo em
2018, esse desfile seria possível sob uma administração militar?” A contar com
as declarações dos que agora comandam a educação brasileira, não. Na posse do
engenheiro Marcus Vinícius Carvalho Rodrigues, no Inep, Velez afirmou: “Nós
estamos vivendo um ciclo a partir de 1946 em que alguns momentos são de volta
ao esquema centralizador, como é o ciclo de 64-85, que foi querido pela
sociedade brasileira”.
Já o engenheiro Marcus Vinícius,
indicado por grupo ligado aos militares para o comando do MEC, em seu discurso
de posse, chamou atenção por dois fatores: 1) afirmou que irá revisar as provas
para detectar “postura ideológica” e 2) errou por duas vezes o plural da
palavra “cidadão”. Segundo ele, o Brasil precisa de uma nova escola, uma escola
“eficaz para a formação de cidadões (sic)”. Eduardo Bolsonaro, filho do
presidente e deputado federal mais votado do país, orientou os professores a
evitarem “… feminismo, linguagens outras que não a língua portuguesa ou a
história conforme a esquerda”. Sua justificativa para tanto é que tais assuntos
não serão abordados no Enem.
Em um país que ocupa o posto de
5º do mundo que mais mata mulheres, que tem seu idioma totalmente influenciado
pelas línguas indígenas, bantas e iorubás e que tem uma trajetória ainda por
ser contada sobre longos períodos apagados da historiografia oficial, as novas
posturas e diretrizes para a educação soam para educadores gabaritados de todo
o país como excludentes e sem base científica.
A sedução pelo militarismo
Ainda recordando a experiência na
escola da minha infância, falei sobre como é ser uma escritora e sobre a
importância de buscar saber mais sobre a própria história, valorizá-la e se
orgulhar dela. Éramos quatro mulheres falando e uma delas era Anielle Franco,
irmã de Marielle.
O olhar de identificação
especialmente das meninas com a nossa fala foi algo emocionante, pois nós fomos
o que elas hoje são – meninas de periferia –, e nós somos o que elas sonham se
tornar – profissionais reconhecidas pelo que produzem, pessoas independentes e
que seguem suas vidas buscando a igualdade de oportunidades para todos. Mais
uma vez a dúvida me assaltou: “Teríamos a conversa franca e enriquecedora que
tivemos sob o olhar de um administrador das forças de segurança?”
No intervalo da nossa conversa na
escola, entraram algumas pessoas para fazer propaganda aos alunos de um curso
preparatório para escolas militares. Chamou a atenção a argumentação de um
deles que disse: “Vocês ganham alguma coisa para estudar aqui? Pois na escola
militar vocês ganharão”.
Esse discurso soa sedutor em uma
escola onde a maioria vive em comunidades carentes e a única refeição do dia
talvez seja a que é oferecida no refeitório abaixo do auditório onde estávamos.
O imediato burburinho entre os alunos foi quebrado pelo professor Luiz Espírito
Santo, que sentiu-se na obrigação de dizer aos jovens que não deveriam enxergar
o ato de estudar como um “bico”, uma chance de ganhar um dinheiro extra, mas
como a fonte genuína do conhecimento que dará acesso às carreiras que
garantirão um salário, mas também realização e a chance de contribuir com a
sociedade em que vivem.
O professor Luiz seguiu em sua
argumentação dizendo que a busca pela realização profissional poderá levá-los –
por que não? – inclusive a carreiras militares se assim sentissem vontade e
vocação. Considerando que o atual governo tanto se preocupa com a doutrinação
política e o “viés ideológico”, mais um questionamento me veio à mente: qual
dos dois discursos – o dos funcionários do curso ou o do professor – poderíamos
considerar “doutrinador”?
O aceno ao militarismo faz da
milenar profissão de professor um desafio ainda maior hoje no Brasil. Taxar as
informações que desagradam ao atual governo como “doutrinação” ou “marxismo
ideológico” é, por si só, uma tentativa de doutrinar, de direcionar. Estas
expressões vazias também jogam para confundir e abrem para que se atribua a
elas tudo o que não se quer debater.
Não sou mais estudante do ensino
médio ou fundamental. Sou mãe de uma aluna da rede pública e exatamente hoje
vivi algo muito impactante. Uma criança desmaiou de fome, na formação do pátio
de entrada. Pode ser que a criança, teimosa, não tenha se alimentado direito
apesar da insistência dos responsáveis a ponto de desmaiar em frente a toda a
escola reunida, mas pode ser também que ela não tenha se nutrido de forma
adequada porque lhe faltava com o quê se alimentar. Talvez existam coisas mais
importantes e vitais com o que se preocupar quando o assunto é a educação no
Brasil.
Dependemos do apoio de leitores
como você para continuar fazendo jornalismo independente e investigativo.
Junte-se a nós
Conteúdo relacionado
Nenhum comentário:
Postar um comentário