Eles prometem uma nova esquerda,
indispensável. Mas, como mostra Alexandria Ocasio, talvez seja a hora de
construir programas claros, e uma estrutura orgânica que vá além da
eterna “consulta às bases”
OutrasPalavras
Publicado 19/02/2019 às 18:35 - Atualizado 19/02/2019 às 19:18
O núcleo de qualquer projeto hegemônico efetivo tem que ser uma nova economia política que ancore a revolução nos valores que os populistas de esquerda estão, corretamente, interessados em atingir. Nesse sentido, Margaret Thatcher foi uma gramsciana muito melhor do que muitos de seus epígonos quando explicou as premissas básicas de seu projeto político: “economia é o método; o objeto é mudar o coração e a alma”.
Foi
o trecho acima — de um artigo de Chris Maisano publicado em 11 de
fevereiro passado pela revista Jacobin
— que me levou a aceitar de vez o desafio do editor do Outras
Palavras, Antonio
Martins:
escrever uma coisa meio inusitada, a resenha de uma resenha de um
livro que não li. Ambos havíamos gostado muito do texto de Maisano,
mesmo sem poder confrontá-lo com a obra resenhada – The
Digital Party: Political Organization and Online Democracy,
de Paolo Gerbaudo. Antônio me convenceu que valia a pena tentar. Que
os leitores julguem o resultado da invenção.
O
título da resenha já provoca: The
Party Has Logged On
(O Partido Se Conectou, em tradução muito livre). E Maisano se
dedica, muito bem, a desenvolver ideias próprias, a partir de pontos
de relevância que identifica no trabalho de Gerbaudo. A análise se
concentra no surgimento – e, principalmente, nas contradições e
problemas – de formações políticas com concepções e estruturas
radicalmente diversas dos clássicos partidos de massas e quadros da
esquerda. O foco está nos Partidos Piratas (Escandinávia,
Alemanha, Holanda, Leste europeu); no Movimento Cinco Estrelas
(Itália); no Podemos (Espanha); no França Insubmissa; no Momentum,
do Partido Trabalhista britânico; nos Socialistas Democráticos da
América (EUA).
A
premissa de que parte Gerbaudo, segundo Maisano, é que,
independentemente de seu posicionamento ideológico, esses novos
partidos (que denominam “digitais”) compartilham um compromisso
com a “democracia real”, expressa na transparência, na
participação direta e na “proximidade” viabilizada pelas
plataformas digitais. No entanto, mesmo buscando responder aos
desafios contemporâneos e à insatisfação generalizada com os
partidos tradicionais, os “digitais” compartilham também sérias
fragilidades.
Há
uma consequência não pretendida no uso reiterado de mecanismos de
consulta direta a filiados e simpatizantes por parte dos partidos
“digitais”: a extinção dos quadros intermediários que, nos
partidos tradicionais, sempre fizeram a mediação entre direção
central e bases e, muitas vezes, atuaram como elemento de redução
de tentações “caudilhescas” das principais lideranças
partidárias.
“A
análise de Gerbaudo indica que esses processos, ostensivamente mais
horizontais, participativos e democráticos, frequentemente
fortalecem a posição dos líderes partidários em relação aos
demais membros do partido. (…)
[Sem uma
estrutura intermediária], como Gerbaudo aponta, [os partidos] se
arriscam a criar uma ‘aristocracia da participação’, na qual
membros com mais tempo ou outros recursos disponíveis desfrutam de
influência desproporcional na vida organizativa”, afirma Maisano.
Os
partidos “digitais” se apoiam em uma base social bem diferente
dos partidos tradicionais. “Enquanto os clássicos partidos de
massas estavam umbilicalmente ligados a classes sociais bem
definidas, os partidos digitais buscam uma base de suporte muita mais
amorfa e instável. Gerbaudo os chama de ‘Povo da Rede’, uma
massa de “outsiders
conectados’, cujo níveis de educação relativamente altos são
confrontados com uma precariedade econômica persistente e com uma
sensação generalizada de alienação em relação à política
tradicional e às instituições. Eles tendem a ser jovens, não
organizados em sindicatos, partidos ou outras organizações sociais
e extremamente confiantes nas tecnologias de comunicação digital e
nas plataformas de mídia social.”
A
obsessão pela participação direta, no entanto, tem levado a uma
preponderância de forma sobre conteúdo e mascarado o surgimento de
novas hierarquias internas, ainda mais verticalizadas. “Todos os
novos partidos digitais são intimamente associados a uma liderança
carismática, cujo nome é virtualmente sinônimo da própria
organização. Como Gerbaudo argumenta, esses partidos são definidos
por uma dinâmica organizacional bem distinta, que ele denomina
‘centralização distribuída’: um ‘hiperlíder’ cercado por
uma pequena coterie
no topo e, embaixo, uma ‘superbase’, engajada mas principalmente
reativa. (…) Na visão de Gerbaudo, a mediação, longe de ter sido
eliminada, tornou-se mais disfarçada e
mais centralizada.”
Gerbaudo
argumenta que o carisma pessoal do “hiperlíder’, a despeito de
seus óbvios riscos, pode oferecer uma solução temporária para a
fraqueza – ou mesmo desmonte – das organizações coletivas dos
trabalhadores, provocada pela onda liberal, Diz Maisano: “Atualmente,
figuras de liderança continuarão a jogar um papel decisivo, dando
voz ao descontentamento generalizado e arregimentando pessoas de
posições sociais disparatadas em torno de um projeto político mais
coerente.”
As
novas formações partidárias têm tentado uma “engenharia
reversa”, oposta à tradição de longa construção dos antigos
partidos de massas da esquerda: chegar ao poder de Estado o mais
rapidamente possível para, a partir dele, consolidar sua base de
apoio na sociedade.
Como
escreve Maisano, há lógica nessa estratégia, mas também há um
risco considerável de “deixar suspenso no ar” um governo de
esquerda, sem força social real, como tristemente exemplificado pelo
Syriza na Grécia. As experiências de Jermy
Corbyn (Reino
Unido) e Bernie
Sanders (EUA)
seriam movimentos no
sentido contrário, buscando ter uma base social mais orgânica e com
um núcleo de classe mais definido.
A
“transversalidade” social dos partidos “digitais” busca
ganhar apoio em todo o espectro da sociedade. Tem sido bem sucedida
como tática eleitoral mas, ao dar pouca importância aos interesses
materiais e ao buscar representar “todos que concordam”, torna-se
politicamente incoerente e tem
grande dificuldade em explicitar o que exatamente o partido fará se
e quando chegar ao poder de Estado.
Para
Maisano, apesar dos partidos associados a um “populismo de
esquerda” reivindicarem seguidamente a herança de Gramsci, é
difícil conciliar tais afirmações com a recusa a uma política de
classe. Afinal, foi o sardo quem escreveu, nos Cadernos
do Cárcere: “a
reforma intelectual e moral tem que estar ligada a um programa de
reforma econômica – de fato, o programa de reforma econômica é
precisamente a forma concreta pela qual toda reforma intelectual e
moral se apresenta.”
Como
aspecto positivo, Maisano identifica movimentos no rumo de uma
política de classe mais explícita tanto no Podemos espanhol como,
principalmente, no “New
Deal Verde”,
proposto pela deputada estadunidense Alexandria Ocasio-Cortez, que
articula a luta contra o aquecimento global a um programa econômico
centrado nos interesses materiais dos trabalhadores.
Que
Maisano também feche esta resenha da resenha do livro que não li.
“Os
velhos partidos de massas da Esquerda se enfraqueceram não somente
por terem estruturas organizacionais antiquadas, mas porque
implementaram políticas que atacaram e desorganizaram sua base
tradicional. Atualizar a forma partido, para que se adeque ao momento
presente, é um aspecto indispensável de reconstrução de uma
alternativa política ao capitalismo. Porém, se os novos partidos
digitais da Esquerda não se comprometerem com um projeto de
reorganização da classe trabalhadora que vá ao encontro dos
interesses dela, eles poderão se apagar tão rapidamente quanto
surgiram.”
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