“Há vidros que separam o mundo, e há asas que não sabem disso.”
(verso anônimo recolhido na mata que avisto de meu quintal)
Até que...
Silvana avista a passarinha no chão. A passarinha golpeava o vidro com o bico, firme, determinada, como se buscasse arrebentar a parede invisível que separa o dentro e o fora. A ave estava no chão do quintal de nossa casa. O olhar dela, que não se via, mas se sentia, era de quem queria entrar. O que haveria em minha biblioteca que tanto a chamava? O reflexo do céu, talvez. Ou um corpo imóvel do outro lado.
Até que...
Silvana vê o reflexo: um passarinho, estático, refletido no vidro. Ou estaria dentro dele? Parecia morto. Talvez sonhando. Imóvel. Entre o reflexo e a sombra, não sabíamos se era espelho ou passagem. Ilusão ou lamento. A imagem era o resumo de uma transparência cega.
Até que...
Descobrimos o corpo do pássaro pequenino encolhido entre a estante e o vidro. Era real. Como chegara ali? Talvez tivesse entrado por uma fresta, atraído pela luz, pela promessa de liberdade e voado em direção à amoreira. No voo rasante e sem amarras encontrara a parede invisível batendo o corpo com força até cair entre os livros e a parede de vidro. E ficou ali, um dia, dois. Estático em um fosso onde as asas não conseguem se abrir e o saber não consola.
Até que...
A mãe, a pássara maior, veio em socorro. Com o bico, ela batia.
Batida após batida, sem pausa, sem descanso. Era dor transformada em ritmo, amor transformado em fúria. Queria romper o invisível, libertar o filho, restaurar o voo. Batia contra o vidro como quem enfrenta o impossível. Ou a injustiça.
Arrastamos a estante. Antes retirando meus livros de história, sociologia, filosofia, memórias de um mundo que insiste em se repetir. Livros ganhados também, de gente cuja vida não se detém. Livros sobre a natureza, um deles sobre aves, as águas, os ventos e as infâncias, brincadeiras. Livros a falarem da vida, que, naquele instante, se calavam diante da morte. Movemos a estante.
Até que...
Com cuidado. Com respeito. Retiramos o pequeno corpo e o depositamos sob a amoreira, no quintal de nossa casa, onde o vento é mais leve e o chão é mais macio. Ali jaz o passarinho, envolto pelo canto da mãe que ainda o procura. O corpo do passarinho ficará em nosso quintal até que sua mãe complete o luto.
Isso aconteceu um dia após a chacina que ensurdeceu o país. Enquanto lá, corpos jaziam sem rito ou consolo, aqui, uma mãe alada batia contra o vidro. E nós, vivendo no interior, atônitos, tentávamos entender o reflexo invisível do amor.
Escrevo essa crônica sob o impacto do fato. Da mãe-passarinha e das mães da favela. Inspirado por Silvana, que não disse nada além do que fez. Ela foi atitude. De quem observa e de quem age. A partir dos fatos procurei dialogar entre o simbólico e o real, O vidro, fronteira entre mundos, adquiriu densidade moral e metafísica como transparência opaca que separa o saber, da vida, a palavra, da ação, o humano, do seu reflexo.
O gesto instintivo da mãe-pássara a bicar o vidro espelha o luto coletivo diante da barbárie quando a dor busca fissurar o que o poder e o saber cegam e blindam.
Escrever essa crônica foi meu modo de fusão com a ternura insurgente, que não se insurge, todavia. Fábula trágica contemporânea onde o pequeno se torna universal e o íntimo se abre em denúncia silenciosa. Como a força-ternura da mãe-pássara, que mesmo ferida, continua a bicar o vidro.


Um comentário:
Mães...passarinhas de todas as espécies, cortejam seus lutos e seguem avante...
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