Fio da Peste (Antonio Samarone)
A Fome, as Guerras e as Pestes são os três maiores flagelos da humanidade. A Peste bubônica (transmitida pela pulga) deixou sequelas indeléveis. Peste virou nome de todas as epidemias, que dizimaram populações.
O medo das Pestes é atávico, está em nosso inconsciente. Em Sergipe, usamos corruptelas de doenças pestilenciais como xingamento. Fio da peste! Cabrunco, gota serena, bexiguento, estopor balaio, e por aí vai.
Só recentemente as doenças crônicas tiveram esse prestígio. O usual “fio do canso” dos ceboleiros.
Em 1855, na fundação de Aracaju, Sergipe viveu a maior Peste da sua história. A pandemia de Cholera Morbus assolou o nosso estado. Em três meses, 40 mil mortos, numa população de 160 mil habitantes.
No século XIV, durante a Peste Bubônica na Europa, Giovanni Boccaccio ficou de quarentena em Florença, onde aproveitou para escrever Decameron (1356), a sua obra mais famosa.
“Triste e aborrecida é a penosa lembrança da mortandade que a peste causou a pouco tempo. A cada um, e a todos que a viram, ou souberam dela, ela prejudicou”. (Decameron)
“Digo, pois, que os anos da frutífera encarnação do Filho de Deus já haviam chegado ao número de 1348 quando, na insigne cidade de Florença, a mais bela de todas as da Itália, ocorreu uma peste mortífera, que – fosse ela fruto da ação dos corpos celestes, fosse ela enviada aos mortais pela justa ira de Deus pela correção de nossas obras iníquas.” Decameron.
A peste bubônica teve sua origem na Ásia central, onde existia em estado endêmico. Chegou ao ocidente pela rota da seda e atacou a Itália pelos portos. O comércio europeu havia se desenvolvido e os negociantes genoveses e venezianos partiam para negociar até os confins do Mar Negro.
O Papa Clemente IV descreveu com realismo a Peste bubônica do século XIV:
“No ano de Senhor, 1348, aconteceu sobre quase toda a superfície do globo uma tal mortandade que raramente se tinha conhecido semelhante. Os vivos, de fato, quase não conseguiam enterrar os mortos, ou os evitavam com horror.”
“Um terror tão grande tinha-se apoderado de quase todo o mundo, de tal maneira que no momento que aparecia em alguém uma úlcera ou um inchaço, geralmente embaixo da virília ou da axila, a vítima ficava privada de toda assistência, e mesmo abandonada por seus parentes.”
“O pai deixava o filho em seu leito, e o filho fazia o mesmo com o pai.”
O medo do desconhecido leva ao pânico. É o que precisamos evitar na atual Peste do novo coronavírus.
No início da década de 1960, Itabaiana quedou paralisada com medo de uma Peste. A teoria miasmática era bem aceita. Resolveram exumar o cadáver de um líder político. A notícia deixou a cidade em pânico. Quem ousaria desenterrar os mortos? E os risco para a saúde da população?
A primeira exumação em Itabaiana foi executada. A dificuldade foi encontrar um coveiro corajoso. Nelson Tocha e Miguel Patavá, os coveiros oficiais, não aceitaram. E agora? Pagava-se bem, mas ninguém queria correr o risco.
Encontraram Antonio Angico, acostumado a limpar fossa, que aceitou. Antes, ele tomou dois litros de casca de pau, acreditando que a cachaça corta tudo, até mordida de cobra.
Para encurtar a conversa, o médico e o legista que fizeram a exumação morreram em poucos dias. Só escapou Antonio Angico, por causa da cachaça.
Imaginem o medo da Peste que dominou a cidade por um bom tempo. Até hoje em Itabaiana, se alguém encontrar uma sepultura rachando, corre para avisar ao coveiro.
A Peste Negra (por Antonio Samarone, resenhando Joffre)
A Peste Negra está contada na Bíblia, foi a praga que acometeu os Filisteus, descrita por Samuel.
Na História da Guerra do Peloponeso, Tucídides relatou a Peste de Atenas (428 a.C.):
“Nenhum temperamento, robusto ou débil, resistiu à enfermidade. Todos adoeciam, qualquer que fosse o regime adotado. O mais grave era o desespero que se apossava da pessoa ao sentir-se atacado: imediatamente perdia a esperança e, em lugar de resistir, entregava-se inteiramente. Contaminavam-se mutuamente e morriam como rebanhos.”
“A enfermidade desconhecida castigava com tal violência que desconcertava a natureza humana. Os pássaros e os animais carnívoros não tocavam nos cadáveres apesar da infinidade deles que ficavam insepultos. Se algum os tocava caía morto.”
A maior epidemia da história foi a Peste Negra do Século XIV.
Começou na Ásia Central e se espalhou em todas as direções. Em 1334, causou cinco milhões de mortes na Mongólia e na China.
“Em 1347 a epidemia alcançou a Crimeia, o arquipélago grego e a Sicília. Em 1348 embarcações genovesas procedentes da Crimeia aportaram em Marselha, no sul da França, ali disseminando a doença. Em um ano, a maior parte da população de Marselha foi dizimada pela peste.” Joffre
“Em 1349 a peste chegou ao centro e ao norte da Itália e dali se estendeu por toda a Europa. Em sua caminhada devastadora, semeou a desolação e a morte nos campos e nas cidades. Povoados inteiros se transformaram em cemitérios. Calcula-se que a Europa tenha perdido pelo menos um terço de sua população.” Joffre.
Assim descreveu Bocaccio os sintomas da Peste Negra:
“Apareciam, no começo, tanto em homens como nas mulheres, ou na virilha ou nas axilas, algumas inchações. Algumas destas cresciam como maçãs, outras como um ovo; cresciam umas mais, outras menos; chamava-as o povo de bubões.”
“Entre tanta aflição e tanta miséria de nossa cidade, a autoridade das leis, quer divinas quer humanas desmoronara e dissolvera-se. Ministros e executores das leis, tanto quanto outros homens, todos estavam mortos, ou doentes, ou haviam perdido os seus familiares e assim não podiam exercer nenhuma função. Em consequência de tal situação permitia-se a todos fazer aquilo que melhor lhes aprouvesse.” Bocaccio.
Uma das maiores dificuldades era dar sepultura aos mortos!
“A epidemia se apresentou de duas maneiras. Nos primeiros dois meses manifestava-se com febre e expectoração sanguinolenta e os doentes morriam em três dias; decorrido esse tempo manifestou-se com febre contínua e inchação nas axilas e nas virilhas e os doentes morriam em cinco dias. Era tão contagiosa que se propagava rapidamente de uma pessoa a outra; o pai não ia ver seu filho nem o filho a seu pai.” Chauliac.
A caridade desapareceu por completo.
Durante a epidemia, o povo procurava uma explicação. Para alguns tratava-se de castigo divino, punição dos pecados, aproximação do Apocalipse. Para outros, os culpados seriam os judeus, os quais foram perseguidos e trucidados. Somente em Borgonha, na França, foram mortos cerca de cinquenta mil deles.
Muitos médicos se dispuseram a atender aos pestosos com risco da própria vida. Adotavam para isso roupas e máscaras especiais. Alguns dentre eles evitavam aproximar-se dos enfermos. Prescreviam à distância e lancetavam os bubões com facas de até 1,80 m de comprimento.
Frades capuchinhos e jesuítas cuidaram dos pestosos em Marselha, correndo todos os riscos.
São Roque, foi escolhido o padroeiro dos pestosos. Tratava-se de um jovem que havia adquirido a peste em Roma e havia se retirado para um bosque para morrer. Foi alimentado por um cão, que lhe levava pedaços de pão e conseguiu recuperar-se.
São Roque é o padroeiro de Campo do Brito. (Você sabe o motivo?)
As consequências sociais, demográficas, econômicas, culturais e religiosas da Peste Negra foram imensas:
1. As cidades e os campos ficaram despovoados; famílias inteiras se extinguiram; casas e propriedades rurais ficaram vazias e abandonadas, sem herdeiros legais.
2. A produção agrícola e industrial reduziu-se enormemente; houve escassez de alimentos e de bens de consumo; a nobreza se empobreceu; reduziram-se os efetivos militares.
3. Houve ascensão da burguesia que explorava o comércio.
4. O poder da Igreja se enfraqueceu com a redução numérica do clero e houve sensíveis mudanças nos costumes e no comportamento das pessoas.
A Peste Negra permaneceu endêmica por muitos séculos.
Entre 1894 e 1912 houve uma outra pandemia que teve início na Índia (onze milhões de mortes), estendendo-se à China, de onde trasladou-se para a costa do Pacífico, nos Estados Unidos.
No Brasil, a peste entrou pelo porto de Santos em 1899 e propagou-se a outras cidades litorâneas. A partir de 1906 foi banida dos centros urbanos, persistindo como enzootia em pequenos focos endêmicos residuais na zona rural.
Em Sergipe, a Peste Negra teve uma passagem branda no início do século XX. Não causou maiores estragos. As nossas Pestes foram outras.
A Peste Negra foi retratada em quadros notáveis: A Peste em Atenas, do pintor belga Michael Sweerts (1624-1664), A Peste em Nápoles, de Domenico Gargiulo (1612-1679), O Triunfo da Morte, do pintor belga Pieter Bruegel, o Velho (1510-1569), e São Roque, de Bartolomeo Mantegna (1450-1523).
Na literatura, inspirou Albert Camus, prêmio Nobel de Literatura, a escrever uma de suas obras mais conhecidas: A Peste.
Antonio Samarone (resenhando Joffre).
A Peste de Disenteria em Aracaju. (por Antonio Samarone)
No início de 1908, Aracaju viveu uma Peste de disenteria (dejeções sanguinolentas frequentes, tenesmos violentos, cólicas e febre continua). Se levantou a suspeita sobre sua possível difusão pelo resto do Estado.
O tratamento era feito com doses mínimas de “ipeca” (Asclepias curassavica) e uma boa dose de ópio. Tintura de ópio ou elixir paregórico é um medicamento da classe dos narcóticos, de administração oral, utilizado como antidiarreico e analgésico.
Se defecava no mato, nas touceiras de bananeiras, nas praias, nos rios, nos fundos de quintais, ao pé dos muros e até nas praças.
A limpeza pública estava entregue aos urubus e às marés. Aliás, em Aracaju, a maré continua levando e trazendo excrementos para a porta das casas. Pelo menos para os que moram próximo ao Batistão.
Nos conta o Dr. Helvécio Andrade:
“A seca, a fome, a invasão de retirantes, levas de mendigos perambulavam pelas ruas do Aracaju em 1908. A epidemia foi de gravidade comparada ao flagelo da varíola de 1888.”
“A água de beber, que preocupa a população desde a fundação da cidade, continuava a mesma: uma infusão de mangue temperada com o que abunda em todos os quintais. A epidemia se alimenta desse quadro.”
Aconselha o doutor Helvécio Andrade:
“beber água fervida ou filtrada abster-se de frutas, legumes crus, usar os alimentos bem cozinhados, evitando refeições abundantes à noite”.
"O doente deve estar em aposentos vastos, asseados e muito bem ventilado. Todo cuidado com as dejeções dos doentes: o despejo deve ser levado constantemente e conter uma substância anti-séptica. É perigoso atirar no chão, nos quintais as dejeções dos doentes”.
Mesmo a tecnologia dos “water closet” WC, inglês e do bidet francês tendo chegado no Brasil no final do século XIX, o povo demorou a ter acesso a esses avanços sanitários em Aracaju.
Em Aracaju, muitos morreram e muitos escaparam da caganeira de 1908...
Antonio Samarone.
As Pestes em Sergipe. (por Antonio Samarone)
(Varíola - Inicio do Século XX)
A situação sanitária no Estado de Sergipe, no começo do século XX, era dramática. A descrição realizada pelo Dr. Augusto Leite, em discurso durante os trabalhos Constituintes de 1934, é profundamente esclarecedora do quadro:
“Clínico, vezes sem conta, acudi a mulheres pobres, nas aflições de um parto distócico, quando já a feitiçaria esgotara todos os recursos e falharam as mais estrambóticas mezinhas. No casebre, tudo conspira de regra, contra a vida da parturiente e do nascituro.”
“Não alumia o quarto, uma réstia sequer de sol. O chão é úmido e mal batido, as paredes são enegrecidas de fuligem dos ‘pifós’ e dos tições, que fumegam a um passo da enxerga. Dir-se-ia uma ‘câmara escura’, dentro da qual, sol a pino, em pleno Nordeste, médicos trabalham, por vezes, à luz miserável de um candeeiro de querosene.”
“Nesse meio, entre pavores, a parteira é o maior pavor. Lá está o azeite rançoso para as mãos imundas, lá estão o trapo e o sarro de cachimbo com que se liga e pensa o cordão umbilical, e a infecção puerperal aí campeia livremente.”
Sergipe começou a República praticamente com os mesmos problemas sanitários herdados do Império. As epidemias continuavam grassando com desenvoltura e o poder público com as mesmas limitações, para um enfrentamento eficaz.
No final do século XIX, a bexiga (varíola) é o principal problema de saúde pública em Sergipe. As epidemias se sucediam. Em 1888, a varíola matou mais de 2 mil pessoas somente em Aracaju.
A partir de julho de 1895 e durante todo ano 1896, trazidos pelos passageiros do vapor “Santelmo”, ocorreu outra epidemia de varíola de elevada gravidade. As cidades mais atingidas foram Estância, Simão Dias, Aracaju, Riachão e Itaporanga.
Mensagem do Presidente do Estado, Manoel Oliveira Valadão à Assembleia Legislativa, publicada no Diário Oficial do Estado em 14/03/1896:
“Tendo se manifestado a epidemia de varíola em diversos pontos do Estado, nomeei comissões para se encarregarem do tratamento e isolamento dos pacientes, autorizando ao menos as despesas necessárias com os socorros dos indigentes acometidos do temível mal.”
Nada diferente do que acabou de fazer o governador Belivaldo, liberou cem reais para aos mais necessitados, enquanto durar a Peste do Covid – 19.
Em 1896, a violência das pestes em Sergipe atingiu até o centro do poder:
Em 22/03/1896, faleceu aos 33 anos de idade, atingida pela malária, a esposa do próprio Presidente do Estado, D. Joaquina Valadão. Uma equipe de sete médicos acompanhou o caso da defunta ilustre, sem sucesso.
A medicina engatinhava em Sergipe.
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