terça-feira, 24 de março de 2020

Em tempos de Coronavirus oremos pelas putas também.

Aquelas que precederão a muito de nós no reino dos céus. 


ABILIO NETO
No tempo em que o Coronavírus se tornou uma pandemia é bem propício escolher para orar não somente pelos nossos familiares e profissionais de saúde, mas também por aqueles que estão impedidos de ganhar o pão de cada dia. Eu decidi orar pelas putas porque elas também são filhas de Deus e resolvi escrever uma crônica, dividida em três partes, dedicada a elas. Se a doença me pegar, talvez seja meu último trabalho. 



PROSTITUTAS – MULHERES DE VIDA ALEGRE E AMARGA VIDA – Parte 1 

Corria o ano de 1955, num começo de noite de abril, quando enjeitaram um menino dentro de um balaio forrado, bem em frente de uma pensão decaída em pleno baixo meretrício de Caruaru, que ficava no centro da cidade. Duas quengas da zona, conhecidas por Maria Seio de Pão Doce e Zefa do Tempero Bom, em pleno vigor da idade, tiveram piedade em seus corações e resolveram criar o garoto ensinando-lhe somente coisas boas e voltadas para o bem. Se bem que, quando ele tinha 13 anos e Zefa do Tempero Bom (cozinheira e trepadeira) estava a dois passos de se aposentar como rapariga, ela comeu o menino para instruí-lo na ciência de dar prazer a uma mulher. E falam que o menino aprendeu direitinho. Neste tempo chato em que vivemos, ela seria acusada de pedofilia. Naquele foi ótima professora!   
  
Antes, quando pegaram a criança, elas mandaram batizar o menino com o nome Cícero em homenagem ao Padim do Juazeiro, mas crescido, todos o chamavam de Ciço Gato, graças aos olhos que mudavam de azuis para verdes, dependendo do clima do agreste e do humor do rapazola. Com Maria Seio de Pão Doce aprendeu a amar o próximo e a cantar; com Zefa do Tempero Bom, conforme já afirmei, aprendeu todos os truques de uma boa trepada; com os clientes da zona aprendeu a ler, escrever, fumar, beber, jogar cartas e capoeira. Aos 15 anos, já era malandro feito, ostentando terno de linho branco, sapatos ao estilo do malandro carioca e um coração tatuado no peito com os dizeres: “Amor Só de Mãe”. Escrevia poesia, fumava charutos cubanos e só bebia Campari, por gostar da cor e do gosto meio amargoso na boca. Aos 18, era amado por todas as quengas e temido por todos os gigolôs. Além disso, nunca se embebedava ou perdia no jogo. Punia xexêros e gigolôs violentos riscando-os na carne com a ponta da sua faca peixeira sempre afiada. Corria a fama de que ele era veloz feito um raio. Certa vez, venceu um valente paraibano armado de navalha que queria ferir uma dona de pensão porque ela lhe chamara publicamente de "rola mole".  
  
A Rua Almirante Barroso, Zona do Baixo Meretrício de Caruaru, fervilhava nas noites de sexta-feira e de sábado. Em todos os bordéis, a fauna de boêmios e a flora de meretrizes nunca fora tão rica como no fim da década de 50 até 1968. Maria Seio de Pão Doce e Zefa do Tempero Bom, graças à sorte do filho, tinham agora seu próprio bordel, ao qual Cícero deu o nome "Pensão Coração de Mãe", lógico que em homenagem as duas mães que o criaram e educaram. 





Pernambucano, 70 anos, é memorialista e pesquisador musical, além de pequeno colecionador de discos. Seu arquivo contém algumas obras que se tornaram preciosas na música brasileira diante do mau gosto popular nessas duas primeiras décadas do século XXI. São frevos, sambas, maracatus, forrós, xotes, polcas, toadas, marchinhas, merengues e choros. Tem mais de 400 artigos escritos sobre música que foram publicados em sites da internet, ‘terreno’ que se notabiliza pela impermanência. Seus artigos provam que a História também se conta através da música.
Música e sociedade, música e política, música e afeto, amizade, alegria e prazer. Uma delícia quando lemos o texto de uma pessoa que sabe fazer essa combinação. É o que faz Abilio Neto, o qual conhecemos nos anos do Overmundo, entre 2006 e 2011, primeiro portal nacional de internet dedicado a difusão da cultura independente, das periferias, dos sertões, dos que mesmo produzindo com qualidade e compromisso, não conseguiam espaços para fazer divulgação nos cadernos culturais dos grandes jornais.
Ler o texto do Abilio Neto é como conversar ao cair da tarde em um alpendre de varanda das casas coloniais, cercados pela brisa suave que sopra das árvores, grandes e pequenas que cercam o redor da casa. Ou então, é como conversar em uma barraca de praia, sentindo o vento que vem do mar soprando em nossas caras, bebendo uma boa caipirinha, intercalando com água de coco.



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