LANÇAMENTO - MAIS UM E-BOOK DA EAD FREIRIANA DO INSTITUTO PAULO FREIRE
Publicação reúne artigos de cursistas que participaram das duas edições do curso ‘Aprenda a dizer
a sua palavra’, em 2017 e 2019. São 27 textos, nos quais cada autor(a) exercitou a reinvenção
do legado de Paulo Freire, “dizendo sua própria palavra”.
VIVENCIANDO
A PEDAGOGIA DA AUTONOMIA COM A BANDA AFRO MENINOS DO B.A.
RESUMO
O objetivo deste artigo é apresentar o
potencial da arte como mediação para crianças e adolescentes exercerem uma
experiência de participação, protagonismo e autonomia. Com base em depoimentos,
retomamos a trajetória da banda afro percussiva Meninos do B.A. (1988 a 2000),
criada por iniciativa de alguns adolescentes do bairro América, localizado na
periferia de Aracaju. Através dessa sistematização, é possível compreender
outras maneiras com que a arte e a cultura podem estimular crianças e jovens a
dizerem suas palavras de forma positiva e construtiva.
Palavras-chave: música
afro, adolescentes, comunidade, educação popular.
O início da banda afro mirim Meninos do B.A
Ser criança ou adolescente no bairro América,
periferia de Aracaju, no ano de 1988, significava morar com muitas pessoas em
casas pequenas ou quartos de vilas, muitas vezes imerso em situações de
conflitos familiares. O que fazer antes ou depois de sair da escola? Ficar
dentro das casas ou quartos apertados? Nem pensar! A rua era, então, a melhor
opção, porque ali se podia correr, brincar, jogar futebol e bola de gude, de
forma a esquecer por um tempo a dura realidade dentro de casa.
E... ouvir música, pois era nas ruas que
muitos conheciam os artistas baianos, através das ondas das emissoras de rádio
que espalhavam as canções dos precursores do movimento posteriormente conhecido
como “axé music”.
A palavra “axé” é uma saudação religiosa usada
no candomblé,
que significa energia positiva. (...) ela foi anexada à palavra em inglês
“music” pelo
jornalista Hagamenon Brito em 1987 para formar um termo que designaria
pejorativamente aquela música dançante com aspirações internacionais. (AXÉ,
2019).
Uma dessas bandas era o Olodum, verdadeira explosão
musical dos anos 1990, um grande estímulo para os meninos iniciarem a jornada
de músicos, por conta da base de percussão melódica e rítmica sustentada
fortemente pelo uso de tambores.
Daí, um grupo de residentes das ruas
Groelândia e Costa Rica, principalmente, localizadas no bairro América, tiveram
a ideia de criar uma banda de lata ao estilo Olodum. E, para representar os
instrumentos oficiais, saíram à cata de baldes de
plástico e de latas de tinta. Pronto! Eis que surge a banda de lata, cujos ensaios eram realizados na esquina da casa do
maestro mirim Ito Evangelista e nos quintais de algumas outras. Sobre os tempos
iniciais e a evolução da banda de lata, Ildevan Vicente da Silva, conhecido
como Idelvan “Birro”, um dos fundadores da banda, conta:
No começo, um dos locais onde ensaiávamos era em
cima da caixa d’água lá de casa, que não ficava muito alto. Assim, subíamos
pela escada e, de lá, nos comportávamos como se estivéssemos em cima de um trio
elétrico. Havia até cobranças de ingressos, coisa de centavos. Lá de cima,
erámos meninos brincando de ser artistas, tocando com instrumentos construídos
por nós, na verdade, imitando guitarras e violões, assim como a bateria de
lata, de onde era tirado o som verdadeiro. Os primeiros eram só enfeites. Em
algumas vezes, até jatos d’água era jogado com mangueira em cima dos foliões.
Depois de poucos anos, quando já tocava na banda afro de instrumentos oficial
integrante da Amaba/Projeto Reculturarte, isso chegou perto de se tornar
realidade, quando cheguei a dar autógrafos para um bocado de gente, após uma
apresentação da Banda Meninos do B.A., com palco e som oficial, encerrando uma
programação cujo destaque foi um show da banda Timbalada, apresentado antes de
nós. Isso foi no Parque da Sementeira, em Aracaju. (Informação verbal)[1].
O apoio da Amaba/Projeto Reculturarte
Certo dia, em 1991, ao passar tocando e cantando em
frente ao prédio da Associação dos Moradores e Amigos do Bairro América (Amaba),
os meninos da banda de lata chamaram a atenção de educadores do Projeto Reeducação,
Cultura e Arte (Reculturarte), que os convidaram para conversar sobre como começaram,
como era a organização, a rotina dos ensaios etc. Em seguida, foi realizado um
convite para que a banda ensaiasse na sede da Amaba, com a promessa de que o Projeto
Reculturarte, que estava começando, compraria instrumentos oficiais para formar
uma banda ao estilo Olodum.
Os meninos aceitaram, e, depois de um ano, quanta
alegria! Chegaram os instrumentos oficiais: caixas, surdos, repiniques e
atabaques. Com o tempo, a banda foi atraindo mais jovens, chegando ao total de
80 componentes. A banda de lata, que tinha entre dez e quinze componentes, não
deixou de existir, mesmo com a chegada dos instrumentos oficiais. Ito
Evangelista, participante do grupo, dizia, em 1994[2]:
“Foi difícil, as pessoas não acreditavam
na gente, mas descobri a AMABA e fui bem recebido com meus amiguinhos, e até
hoje estou aqui e não quero sair nunca."
Criada em 1983,
na cidade de Aracaju, a Amaba é uma organização da sociedade civil extinta no
ano de 2012. Ela existiu em três
fases. A primeira, de 1983 até 1989, foi marcada principalmente pela luta vitoriosa da transferência da fábrica de cimento (1985), conquista da sede permanente (1987), e pela campanha por drenagem e pavimentação das ruas
do bairro.
O
encerramento dessa fase se dá após uma disputadíssima eleição em 1989, cuja
vitória coube a uma chapa formada por uma maioria de jovens. Aqui, destaca-se a
conquista de financiamento internacional para o Projeto Reculturarte (1991), possibilitada
pela importância da Amaba como um autêntico “círculo de cultura”, embora essa expressão
não fosse utilizada à época para se referir à iniciativa.
Para Brandão (2008), a proposta do círculo
de cultura apresentada por Paulo Freire é algo que bebe em uma tradição
educativa presente em iniciativas práticas grupais de uso comunitário ou
pedagógico. No caso do círculo de cultura, as pessoas são dispostas de modo que
ninguém ocupe um lugar de destaque.
No círculo de cultura o diálogo deixa de ser uma
simples metodologia ou uma técnica de ação grupal e passa a ser a própria
diretriz de uma ação didática centrada no suposto de que aprender é aprender a
“dizer a sua palavra”. (BRANDÃO, 2008, p. 69).
A
segunda fase é encerrada no ano de 1996, após algumas saídas e rachas iniciados
em 1993, o que culmina no afastamento dos últimos eleitos na chapa de 1989 e
alguns sócios. A partir daí,
tem início a terceira e última fase, que durou até 2012 e foi marcada
pela continuidade da banda afro Meninos do B.A., pela criação da rádio
comunitária Carcará, do pré-vestibular comunitário e das
tentativas de criação de alguns empreendimentos no campo da inclusão produtiva.
Os ensaios da banda na Amaba eram realizados no
tempo contrário ao da escola, com uma média de duas horas de duração, de três a
cinco vezes por semana, variando de acordo com o “tipo” de banda. Tinha início
com conversas, incluindo a questão de como estavam na escola, discussões de
cunho social, comportamental e de saúde, além de dinâmicas de grupo. Depois,
era a vez de aprender a tocar os instrumentos.
Tudo isso contribuía para favorecer uma
ampliação do repertório cultural e educacional dos meninos envolvidos, segundo
os princípios freirianos, como bem resume Sonia Couto:
Aquele conhecimento que a gente vai
adquirindo, nas primeiras interações que fazemos, no caso das crianças, as
interações que são feitas com os pais, com seus coleguinhas, tudo isso vai
preenchendo uma bagagem de conhecimento, e a escola precisa partir desse
conhecimento. (INSTITUTO, 2019a).
Ampliando este raciocínio, Ângela Antunes (INSTITUTO, 2019b) afirma:
Pensar certo significa respeitar o saber por experiência
feito dos educandos, respeitar os saberes socialmente construídos na prática comunitária
e, por outro [lado], estimular essa curiosidade que permite uma compreensão
mais aprofundada do objeto de estudo, que permite o aprofundamento do
conhecimento.
No caso dos Meninos do B.A., a divisão dos grupos era
a seguinte: banda de lata (para iniciantes), banda de aperfeiçoamento (estágio
intermediário) e banda profissional. Quem se destacava na segunda, passava a
tocar na banda profissional, de forma plena ou como reserva substituto.
A educadora Crécia dos Anjos, escolhida aos doze
anos para essa função em razão das suas qualidades de liderança, recorda:
Atuei como educadora na banda de lata, sendo Ito
Evangelista o maestro. Como vivíamos dentro de uma realidade adversa, com
convivência difícil dentro das famílias, gerando violência em muitos casos,
isso acabava chegando aos ensaios da banda, gerando desentendimentos entre os
meninos algumas vezes. E Ito era um maestro de ouvido absoluto, mas impaciente
com algumas situações. Isso porque também era uma pessoa que estava dentro
daquela realidade adversa. O meu papel como educadora mirim era orientar a
disciplina, fazendo mediação de conflitos, e organizar a entrega e o recolhimento
dos instrumentos, entre outras questões de apoio à organização da atividade.
Era um trabalho voluntário. (Informação verbal)[3].
E, como não poderia deixar de acontecer, a banda
afro mirim Meninos do B.A. acabou por revelar lideranças juvenis e talentos
artísticos, alguns chegando mesmo a fazer carreira musical.
Uma questão triste que aconteceu, e bastante
lamentada, foi a doença mental do maestro mirim Ito Evangelista, acompanhada do
alcoolismo, o que acabou incapacitando-o para o estudo e o trabalho regular,
além de afastá-lo do convívio social mais produtivo e virtuoso.
Apresentações públicas
Em termos de apresentações públicas, além dos
ensaios abertos, a banda era uma das principais atrações das mostras anuais
denominadas Festival Infantil. Estas aconteciam na concha acústica da Praça dos
Capuchinhos. Era o momento de apresentar a produção artística das oficinas e
dos grupos culturais do Projeto Reculturarte.
Além disso, a banda afro fez inúmeras apresentações
em eventos de cunho cultural, social e político em diversos locais de Aracaju,
incluindo a Universidade Federal de Sergipe e algumas cidades do interior do
estado.
Entre as dificuldades e os conflitos internos
enfrentados pela banda, o que levou ao seu fim em 2004, destacou-se a questão
da necessidade de colocar instrumentos elétricos para juntar com os
instrumentos de percussão e, com isso, possibilitar a formação de um grupo
menor para fazer shows profissionais,
uma tendência adotada pelos blocos afros baianos, como Araketu e Olodum. Essa
medida visava a tornar a atividade autossustentável financeiramente, porém, por
questões de choque de visão e de poder, isso não foi em frente.
Segundo José Cosme Santos, conhecido como “Nano”,
integrante da banda “profissional”,
Essa
proposta foi bombardeada por um educador de
grande influência sobre os meninos, quando apresentada. Ele foi na casa de
alguns meninos, os que tinham mais liderança e que não reagiam muito às ideias
dele. Este educador dizia não ser interessante, que ia tirar a essência da
banda. (Informação verbal)[4].
Além dessa questão, houve
muitos conflitos em função dos cachês, porque havia uma discussão se estes
deveriam ficar com os meninos ou ser reinvestidos na banda.
O fim da banda é descrito de forma emotiva e poética por Valtenisson dos
Santos, hoje músico profissional e trabalhador da construção civil.
Um dia cheguei na porta da Amaba e vi tudo fechado,
aí o meu coração veio de água abaixo, porque tinha vida ali, tinha amizade, e o
meu foco estava ali. Olhei para um lado e para o outro, e nada. Como é que uma
coisa tão boa assim pode acabar? Lá dentro, eu me sentia alegre e em harmonia.
Hoje estou muito triste, procuro a Amaba e não encontro mais, procuro porque me
lembra coisas boas, grandes recordações. Certa vez, ao passar em frente, fiquei
quase meia hora em pé, em silêncio, olhando para o prédio. Era um dia de manhã
bem cedo, poucas pessoas passavam pela rua naquele momento. Depois de algum
tempo, os meus olhos se encheram de lágrimas. (Informação verbal)[5].
Considerações finais
Sob alguns aspectos, nos tempos atuais, a situação
do bairro América e das famílias melhorou. Não existem mais ruas com lamas,
empoeiradas, cheias de buracos. A região onde o bairro está localizado, área
que já crescia em termos econômicos e urbanos nos anos de 1980 e 1990, passou a
evoluir ainda mais nesses termos, como é o caso da ampliação do maior hospital
público de Aracaju e do centro administrativo do governo do estado, localizados
próximo ao bairro, além do terminal de ônibus interestadual e a construção/ampliação
de pousadas, restaurantes e supermercados localizados no entorno, sem falar da
melhoria do padrão socioeconômico da população residente.
Porém, a situação de muitas crianças, adolescentes
e jovens nas esquinas prossegue, com falta de opções sadias, divertidas,
educativas, críticas, afetivas e efetivas, como o que a Amaba/Projeto
Reculturarte ofereciam, já que, além da banda afro mirim, também se podia ter
acesso a outras atividades socioculturais: o contrário dos tempos atuais, em
que os espaços principais de aprendizagem e convívio sociocultural se limitam
às escolas e às igrejas.
Todos os que foram entrevistados para a composição
desse artigo e do futuro livro sobre a banda afro mirim e outras atividades da Amaba/Projeto
Reculturarte revelam o desejo de retomada da iniciativa, a fim de que seus
filhos e sobrinhos pudessem ter a mesma vivência emancipadora que eles tiveram,
proporcionada pela arte, pelo esporte, pelo afeto e pelas experiências
dialógicas e de participação comunitária.
Algo a lamentar é a pouca interação que esse trabalho teve com as
escolas, assim como o pouco interesse de professores e diretores das escolas
localizadas no bairro em buscar uma relação mais estreita em termos de troca de
conhecimentos. Apesar disso, o acesso para a divulgação das atividades e dos
eventos da banda afro Meninos do B.A era tranquilo, havendo mesmo alguns
convites para apresentação da banda dentro das escolas.
A banda afro Meninos do B.A. foi uma iniciativa de educação popular, mas
as lições que ela nos deixou podem ser utilizadas no seio da educação formal, que
tem uma dificuldade cada vez maior em conseguir atrair o interesse e a adesão
plena de crianças, adolescentes e jovens.
Segundo Brandão (2006, p. 46),
A partir
de uma crítica feita ao sistema vigente de educação [...] a educação popular: 1) constitui passo a passo (“aos
tropeços”, dirão os seus críticos) uma nova teoria, não apenas de educação, mas
das relações que, considerando-a a partir da cultura, estabelecem novas
articulações entre a sua prática e um trabalho político progressivamente
popular das trocas entre o homem e a sociedade, e de condições de transformação
das estruturas opressoras desta pelo trabalho libertador daquele; 2) pretende
fundar não apenas um novo método de trabalho “com o povo” através da educação,
mas toda uma nova educação libertadora, através do trabalho do/com o povo sobre
ela – este é o sentido em que a educação popular projeta transformar todo o
sistema de educação, em todos os seus níveis, como uma educação popular; 3)
define a educação como instrumento político de conscientização e politização,
através da construção de um novo saber, ao invés de ser apenas um meio de
transferência seletiva, a sujeitos e grupos populares, de um “saber dominante”
de efeito “ajustador” à ordem vigente – este é o sentido em que ela se propõe
como uma ampla ação cultural para a liberdade a partir da prática
pedagógica no momento de encontro entre educadores-educandos e
educandos-educadores.
Referências
AXÉ(gênero musical). In: Wikipédia: a enciclopédia livre. Wikimedia, 2019. Disponível
em: Acesso em: 1º out. 2019.
BRANDÃO,
Carlos Rodrigues. Círculo de Cultura. In: ZITKOSKI, Jaime José; REDIN,
Euclides; STRECK, Danilo R. (Orgs.).
Dicionário Paulo Freire. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
_______.
O que é Educação Popular. 1 ed. São Paulo:
Brasiliense, 2006.
INSTITUTO
PAULO FREIRE. Ensinar exige Apreensão da Realidade. Docente: Sonia Couto. Curso
Aprenda a Dizer a sua Palavra. Produção: EAD Freiriana, São Paulo: Coordenação
Geral: Paulo Roberto Padilha, 2019(a). Videoaula 3/12.
_______.
Ensinar exige Rigorosidade Metódica e Pesquisa. Docente: Angela Biz Antunes.
Curso Aprenda a Dizer a sua Palavra. Produção: EAD Freiriana, São Paulo:
Coordenação Geral: Paulo Roberto Padilha, 2019(b). Videoaula 7/12.
SANTOS, José de
Oliveira[6]
[1] Entrevista concedida ao autor deste
artigo em setembro de 2018.
[2] Depoimento registrado em um folheto
informativo publicado à época.
[3] Entrevista concedida a autor deste
artigo em outubro de 2018.
[4] Entrevista concedida ao autor deste
artigo em janeiro de 2019.
[6] Licenciado em História pela
Universidade Federal de Sergipe, especialista em Arte-Educação pela Faculdade
São Luís de França, professor de História na rede pública de ensino e
agente/produtor/assessor de iniciativas culturais de base comunitária. Contato:
zezitodeoliveira@gmail.com.
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quinta-feira, 5 de março de 2020
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