Qualquer ser humano que se interesse pelo catolicismo contemporâneo no Brasil, em particular, de pós-2013 para cá e numa abordagem sócio-histórica, será levado a entender uma ofensiva de extrema direita que entrou com bastante força e eficácia simbólica na Igreja Católica.
Uma "linguagem nova" perfilou todo um comportamento de uma série de padres, bispos, freiras, leigos... Coisas como: "marxismo cultural", "ideologia de gênero" e "infiltração comunista" virou uma paranoia e se alastrou como um rastilho de pólvora nas mentes e corações de toda uma geração de católicos/católicas e que em 2023 já estão "adultos" e calibrados na sua fé com todo um conjunto ideológico de termos de direita que as fazem viver (se é que isto pode ser chamado de vida).
Acho pouco provável que se possa fazer algo para mudar isto em curto prazo. Nem Deus conseguiria, se por um caso tivesse interesse. Trata-se de algo consolidado e alimentado diariamente em paróquias, dioceses, cursos em plataformas fechadas, no youtube ou nos grupos de WhatsApp, facebook, Instagram.
Foi feito já nos "anos de ouro" do neoliberalismo nos anos 90 brasileiro quando todo um anticomunismo entrou sorrateiramente na Igreja ainda por uma figura desconhecida então, chamado Olavo de Carvalho. O Pe. José Comblin em seu clássico do final dos anos 90 já nos dava régua e compasso para compreender estas coisas na Igreja Católica. Trata-se de "O neoliberalismo: a ideologia do século XXI" (Editora Vozes, 1999). O capítulo deste livro onde o autor fala da cultura neoliberal na religião cristã é impressionantemente atual.
Entre 2012 e 2013, Olavo de Carvalho em seus cursos "fechados" e "abertos" em forma remota começava a falar de um tal "marxismo cultural". Citava sempre uma lista de filósofos responsável por toda uma "cultura" que se infiltrou nas Igrejas de maneira quase imperceptível e que se tornou "hegemônica" (termo que vem de um dos filósofos demonizados por Carvalho e sua turminha).
Parecia um mantra diário falarem de Lukács, Gramsci (o pior de todos para essa gente), Escola de Frankfurt (sempre acredito que Olavo e sua turma nunca leram nada de Adorno, Horkheimer, Marcuse e Benjamin (nunca citam nada preciso). Se eles, de fato, leram ou não esses filósofos, têm pouca importância. Aqui, o trabalho é a mais pura e cristalina doutrinação com objetivo estratégico de desqualificar esses nomes e criar toda uma detalhada demonização. Nos cristianismos qualquer coisa ligada ao demônio deve ser apedrejada a priori. Ou seja, "odeie e virá o bem". Isto virou roteiro de vida.
Não foi gratuito todo um processo de calúnias com pessoas como Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder (acompanhei de perto a trajetória de elaboração de ódio aos dois filósofos brasileiros). O nome deles estão ligados aos filósofos que se deveriam odiar, se afastar e condenar sempre. Começaram a inventar uma teoria tosca e a partir de frases colhidas à esmo do grupo de filósofos citados para justificar a ideia de que eles queria e defendia a "destruição do ocidente cristão". Que eles odiavam a cultura cristã.
Segundo toda essa gente: Gramsci/Lukács/Escola de Frankfurt foram adotados em todas as universidades brasileiras, pelas esquerdas partidárias, pelos movimentos sociais, pela teologia da libertação (!?). A partir de todo esse movimento (que só aconteceu no cérebro dessa gente e com pouca realidade), crianças, adolescentes, homens, mulheres e religiosos foram atingidos por toda uma avalanche que queria destruir família, instalar ditadura gay e trans, defender uma guerra entre negros e brancos, relativizar tudo... Pronto. Estava armada a plataforma ideológica presente em todos os livros de Olavo de Carvalho, nos cursos do Pe. Paulo Ricardo (youtuber carro-chefe da direita católica virulenta), Bernardo Kuster, Centro Dom Bosco, Instituto Borborema e toda uma récua de padres, leigos de impacto menor, mas com presença constante nas redes sociais (na verdade, redes digitais. Porque de "sociais" têm muito pouco).
O privilégio-Gramsci. Foi construído todo um movimento desde 2012 para eleger Gramsci o maior inimigo do cristianismo (católico, em particular) e para isto tinham que "provar" a afirmação. A "prova" veio na invenção de um termo que não significa nada e passa a ser tudo na cabeça de toda uma geração: "Marxismo cultural".
Que o marxismo tem uma concepção de cultura, isto vem desde o próprio Marx. Com arrematou bem Raymond Williams ao chamar de "materialismo cultural". Mas não se trata de nada disto. Trata-se do que o pe. Paulo Ricardo em seu canal no Youtube sistematizou a partir do "esquema Olavo de Carvalho" numa série de "aulas" sobre as "origens do marxismo cultural" numa arrogância ao falar que esconde toda sua incompetência para o tema. Não passa de frases de orelha de livros. Tão profundo quanto um pires.
Mas isto, como foi dito, não tem nenhuma importância. Não se trata de pesquisa, estudo ou qualquer coisa próxima a um projeto acadêmico. Nada disto. Trata-se de doutrinar da maneira mais rebaixada e clara possível. Pensemos com nossos botões toda essa garrafada intelectual dosada quase que diariamente nestas redes digitais durante 15 anos, no mínimo. Pensemos? Nesses anos formou-se uma geração de jovens e adultos com essa mentalidade e que se jogaram no mundo a reproduzir essas ideias e caíram matando para formar vários grupos pelo Brasil afora. Dentro das Igrejas, nas universidades, nas escolas privadas e públicas, nas plataformas digitais, em rádios, em grupos de estudos e até no parlamento (alguns se elegeram parlamentar com esse discurso).
E o Gramsci da cabeça dessa gente de extrema direita com tudo isto? É com tudo isto mesmo. Para eles, Gramsci percebeu que a revolução em sentido violento e armado não era mais possível no Ocidente (de onde tiraram isto, não saberia informar aqui!!!) e a partir desta compreensão, seria o campo da cultura a trincheira a se guerrear. Era ganhar "corações" e "mentes". Gramsci teria uma teoria da "hegemonia cultural" que poderia se espalhar em toda a sociedade a partir do trabalho árduo de comunistas que não se apresentam enquanto tal.
Essa "rede de comunistas" se infiltrou em tudo e em todas as instituições onde conseguem "inocular" no inconsciente das pessoas esse "marxismo cultural". Quando essa "cultura" se tornar hegemônica, estará feita a revolução. Sem armas. Sem violência. Nessa lógica (?) quase tudo pode ser "marxismo cultural". Da rede globo a Lula. De João Pedro Stédile ao PSOL. Do PSTU a Anitta. E o delírio pode seguir ao infinito. Não se trata de rigor, mas de propagação em série. O resultado mais articulado de tudo é uma coisa como "brasil paralelo" (em bem paralelo mesmo!!!). E assim, entendemos porque figuras como Bolsonaro e família prosperaram em terra fertilizada por todo esse caldo cultural disseminado.
UM CONVITE. Neste setembro que se avizinha, nos dia 11 e 12, a partir das 20h. na TV A Comuna (toda dominada pelas trevas do "marxismo cultural!!!) vamos ter um breve curso sobre "Gramsci e a crítica do catolicismo". Diferente da paranoia dos olavistas e sua turma, vamos ao texto do Gramsci. Mais precisamente: "Cadernos do Cárcere" volume 4 onde temos o caderno 20: "Ação católica, católicos integristas, Jesuítas, modernistas". Devidamente comentado por um ensaio extraordinário de Giuseppe Staccone e que tem como título: "Antonio Gramsci: reavaliação marxista do fenômeno religioso". Na verdade, o longo ensaio é capítulo final do livro: "Filosofia da Religião" publicado pelo autor em 1989 pela editora Vozes. Iniciaremos o curso demonstrando essa relação entre "marxismo cultural" e "crítica da religião" e como empurraram um Gramsci nessa parada toda.
Romero Venâncio (UFS
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