quinta-feira, 28 de maio de 2020

Os paradoxos da sociedade do medo | Francisco Louçã

O mundo está fragmentado e não voltará a unificar-se. A política ocupará novos territórios. Os atores do passado passaram. Na oportunidade da crise, figuras assustadoras exigem o poder absoluto.

Agradecemos a Francisco Louçã a autorização para reprodução deste ensaio. Foi publicado originalmente no EXPRESSO de Portugal no dia 25 de abril deste ano.

Esta espécie de maldição bíblica que sobre nós caiu será somente um delírio das nossas vidas frágeis? Não, não é uma assombração, o risco de contaminação e a letalidade do Covid19 são imensos. Se nos Estados Unidos se admite a possibilidade de uma mortandade e se a vaga pandémica ainda crescerá no hemisfério sul (Malawi e Uganda, com quase o dobro e o quíntuplo da população portuguesa, têm 25 e 12 camas de cuidados intensivos), os próximos meses serão mais duros. No entanto, devemos perguntar: e não foi assim noutros casos? De facto, embora já não haja ninguém com memória direta da gripe devastadora de 1918, somos contemporâneos de uma outra epidemia da mesma ordem de grandeza, a do HIV, que fez 36 milhões de vítimas em quarenta anos. Talvez a primeira esteja perdida nas memórias e a segunda sempre tenha sido sussurrada como uma impronunciável punição, mas nem isso nos liberta desse passado que tolda o nosso presente. O que há então de novo ou diferente no Covid19? Será só o perigo, que já não é pouco, de passarmos do estado de necessidade para o estado de excepção permanente? Mais do que isso. O novo é a sociedade do medo. Essa é a linguagem dos nossos dias, que discuto neste ensaio.

O medo que é um susto

As sociedades modernas sempre conviveram com o medo, fazendo dele uma forma de comunicação. Foi esse procedimento de banalização, aliás, que buscou a sua domesticação. Aceitou-se assim o medo absoluto, desde que referido ao impensável e restrito a acontecimentos únicos, descrevendo momentos de pânico como um choque que nos é imposto a partir de fora e que, até por isso, pode ser dramatizável como um espetáculo.

O exemplo mais marcante desse medo no dealbar da modernidade foi o terramoto de 1755. Havia então o optimismo da conquista e um fulgor novo, as ideias chamavam-se a si mesmas “luzes”, mas a desgraça que se abateu sobre Lisboa, inesperada, mesmo inimaginável, obrigou a reconsiderar os riscos da vida. No entanto, não era possível atribuir uma razão à mortandade, dado a causa ser indiferente à mão humana e até ao conhecimento da época: seria porventura ou um castigo ou um fracasso da providência, a ira de um deus ou a sua demissão, mas esse cosmos estaria sempre para além da culpa. Mesmo assim, o que a humanidade não podia aceitar era alhear-se: “Lisboa está arruinada e dança-se em Paris”, protestou Voltaire no seu poema-manifesto sobre o desastre, enquanto Kant se afadigava a sugerir hipóteses sobre a sismologia dos abismos que se tinham revoltado. Rousseau escreveu a Voltaire para lhe sugerir que, se nisto havia uma lição, era que o mal está instalado entre nós. Radicais, o que em todo o caso nenhum deles favorecia era a condescendência desses outros filósofos para quem “o que existe, está certo”, uma justificação circular que condenaram e combateram.

Por causa da notícia crua, mais do que devido a esse debate nos salões filosóficos, o terramoto de Lisboa obrigou a Europa a abdicar da comodidade da vida idealizada sob a proteção de uma causalidade celestial e a procurar entender o seu medo. No entanto, era uma reposta fácil, só nos remetia para o surpreendente. O medo alimentava-se desse acaso em que o céu desabou sobre a terra.

E se o perigo somos nós?

Só que agora, de repente, apercebemo-nos de que desta vez não foi um simples acaso que nos atingiu. A pandemia não é um terramoto, inesperado e momentâneo. Também não é uma guerra, com exércitos ordenados e territórios conhecidos, por mais que metáforas desesperadas por uma imagem figurem esse “inimigo invisível” e as suas “frentes de batalha”. O que nela aterroriza é maior do que uma guerra ou um terramoto, é que aqui o medo somos nós, é a nossa doença. A doença torna o nosso próprio corpo no foco do inconcebível. Nós somos o perigo, ele não vem das profundezas dos mares ou terras, ou de um exército invasor. Então, se somos nós os portadores do mal, temos que nos perguntar como é que nos tornámos no nosso maior pavor.

Tucídides, na sua “História da Guerra do Peloponeso”, que descreve o confronto entre Esparta e Atenas, de 430 a 429 antes da nossa era comum, contou como a peste dizimou um quarto de população de Atenas e instalou o medo. “Enquanto durou a peste, ninguém se queixava de outras doenças, pois se alguma se manifestava, logo evoluía para aquela. Às vezes a morte decorria de negligência, mas de um modo geral ela sobrevinha apesar de todos os cuidados. Não se encontrou remédio algum, pode-se dizer, que contribuísse para o alívio de quem o tomasse – o que beneficiava um doente prejudicava outro – e nenhuma compleição foi por si mesma capaz de resistir ao mal, fosse ela forte ou fraca; ele atingiu a todos sem distinção, mesmo àqueles cercados de todos os cuidados médicos”. Sem remédios eficazes, a população ateniense morria. E havia pior: “Mas o aspecto mais terrível da doença era a apatia das pessoas atingidas por ela, pois seu espírito se rendia imediatamente ao desespero e elas se consideravam perdidas, incapazes de reagir. Havia também o problema do contágio, que ocorria através dos cuidados de uns doentes para com os outros, e os matava como a um rebanho; esta foi a causa da maior mortandade, pois se de um lado os doentes se abstinham por medo de se visitarem uns aos outros, acabavam todos perecendo por falta de cuidados, de tal forma que muitas casas ficaram vazias por falta de alguém que cuidasse deles; ou se, de outro lado, eles se visitavam, também pereciam, sobretudo os altruístas, que por respeito humano entravam nas casas dos amigos sem se preocuparem com suas próprias vidas, numa ocasião em que mesmo os parentes dos moribundos, esmagados pela dimensão da calamidade, já não tinham forças sequer para chorar por eles”. A doença contagiava-se de todas as formas, a morte batia à porta de todos os lares.

Traduzida e divulgada por Thomas Hobbes, um século antes do terramoto de Lisboa, esta história confirmava a memória das pestes medievais (dando indicações médicas preciosas, que confirmavam a imunização dos contaminados sobreviventes, no segundo surto), além de lembrar a imensidão das ameaças e, antes de mais, os seus efeitos sociais: “a desgraça que os atingia era tão avassaladora que as pessoas, não sabendo o que as esperava, tornavam-se indiferentes a todas as leis, quer sagradas, quer profanas”. Ou seja, o medo gera o caos, que para Tucídides era a indiferença perante a lei. O caos é a sociedade do medo.

Cada pessoa é uma rocha?

A pandemia suscita medo, mas é um medo particular. Medo de nós próprios e dos outros, mas não são todos os outros ou todos da mesma forma: os mais perigosos são os que nos são mais próximos, que nos podem trazer o “inimigo desconhecido” num beijo. Por isso, a primeira perplexidade sobre como vamos reconhecer-nos no pós-apocalipse é esta: a ameaça nunca acabará? Repare que o princípio do confinamento, como medida essencial para a saúde pública, não pressupõe a perpetuação do isolamento, antes é apresentado como a condição para o seu fim. Quando Manuel Alegre nos fala dessas “praças cheias de ninguém”, ou quando notamos a gente escondida atrás dos postigos e janelas, sente-se a aspiração à liberdade que quer vencer a emergência e restabelecer o contacto social. Ora, e se não for assim? Se nos disserem que devemos olhar sempre com medo para quem está ao nosso lado?

Uma resposta vem do século passado, é a do individualismo radical de Hayek: assim é que deve ser, somos mesmo únicos, cada um por si. Nessa narrativa, a liberdade é, aliás, dispensável, e daí a sua cumplicidade com a ditadura de Pinochet, pois Hayek entendia que bastaria a sociedade erguer-se sobre o pilar do egoísmo total. Só que não se pode viver em regime do “homem lobo do homem” e se alguma vez foi exaltada a solidão, porventura sob licença poética, nunca se tratou de mais do que um lamento. Quando Simon e Garfunkel cantavam “Eu sou uma rocha, eu sou uma ilha”, pediam uma proteção mágica e o afastamento dos outros, o exílio, eu quero estar sozinho. Mas era somente o choro do amor perdido, o drama de uma pessoa: “ergui muros/ que ninguém penetrará/ não necessito de amizade/ a amizade causa dor/ desdenho o riso e o amor”. O canto era então uma falsidade, de facto eu não sou uma rocha ou uma ilha, as cruéis palavras do desespero não me protegem. Não há para onde fugir. Ninguém vive sozinho, nem mesmo na sociedade do medo. Assim, a segunda perplexidade é esta: e como serão as novas fronteiras desse medo?

A resposta a estas duas perplexidades ainda está a ser esboçada nas sombras da emergência. A bem dizer, ninguém sabe o que se segue. Os dias da calamidade são frenéticos: as bolsas da maior potência económica tiveram a sua maior queda dos últimos cinquenta anos e também os seus três dias mais felizes dos últimos oitenta anos. Vão continuar em sobressalto. Nos Estados Unidos, acumularam-se vinte milhões de novos desempregados em quatro semanas e estima-se que o número possa duplicar. Em Portugal, a recessão só em 2020 pode ser mais grave do que a acumulada em todos os sofridos anos da troika. Nos países do sul, as consequências podem ser gigantescas. Suspeitamos por isso que o que vai ficar depois desta tempestade poderá ser pior do que o que agora pressentimos. Essa é a própria definição do medo.

No entanto, talvez haja já alguma resposta a estas inquietações. Pois mesmo o temor do inimaginável é lido pelos nossos olhos. Sabemos como aqui chegámos e como vivemos. Compreendemos quem somos. Só que, na verdade, esta certeza não é tranquilizadora. Antes mesmo da pandemia atropelar as nossas vidas, eram abundantes os motivos de preocupação a respeito do predomínio de uma sociabilidade maquinal e de uma forma de comunicação que corrói a democracia. E, quando se esboçam futuros distópicos, todos eles parecem identificáveis nos traços do que já existe: trabalho sem emprego, precariedade com vida isolada no computador, pessoas alimentadas por nuvens de Ubereats, mobilidade vigiada, sistemas de pontuação comportamental controlados por inteligência artificial, política baseada na mentira, informação paranóica. Para um permanente estado de excepção, não parece ser preciso inventar muito. Como dizia Dominic Cummings, o profeta de Boris Johnson, uma “crise benéfica” é a oportunidade para impor uma nova agenda. Já vimos de tudo.

O contacto é perigoso na sociedade do contacto?

O que assim se nos apresenta é o risco da vida em caos, que é a ordem do medo. Esta forma de viver é, contudo, paradoxal. O remédio que previne é o isolamento e, em consequência, a sociedade fica espartilhada entre duas dimensões paralelas, numa vivemos em confinamento, na outra vivemos em máxima intensidade de contacto, por via da sociabilidade virtual. Uma alimenta a outra. Parece que o efeito imediato da pandemia foi transferir-nos da vida para as redes sociais, abdicando do efeito de simetria entre estes mundos paralelos que tenuamente equilibrava a nossa sanidade. O Youtube multiplicou por sete as visualizações diárias totais desde 15 de março. Os posts no Facebook cresceram 50% nos países mais atingidos. Nestes dias, habituamo-nos a viver do outro lado do espelho.

Também desse mergulho no virtual se dirá que é o velho normal. Antes da era pandémica, já esse mundo começara a mudar o mundo, reconstruindo as linguagens e, sobretudo, popularizando a dissimulação detrás de estatutos projetados. Na rede, eu posso ser o meu avatar, uma ilusão confortável para todos os recalcamentos. Assim, neste modelo Facebook de identidade, eu posso ser outro, projetando de mim uma imagem arbitrária, até heróica. No entanto, ela é artificial ou, como Diderot comentava a propósito dos flâneurs do seu tempo, este é um café em que alguns se dedicam a “um teatro em que ser acreditado é o prémio”. Ora, sendo a individualidade falsificável e premiável, também é fantasiosa a sociabilidade que a reproduz, aliás tanto mais mirabolante quanto mais densa. Cisme neste exemplo: se, numa pequena comunidade de 1234 “amigos”, cada um partilha por dia dois posts, um video e uma foto, essa rede movimenta quotidianamente mais de seis milhões de mensagens e na página de cada qual desaguam quase cinco mil, quatro por segundo. O problema é que esta explosão comunicacional, com o seu efeito da aglomeração, não é senão uma forma específica de isolamento, sob o fingimento da popularidade. Por outro lado, a “comunidade” desconhece-se entre si e, quanto maior, mais opaca.

Sim, o mergulho no novo normal ocorreu há anos, mas a sociedade do medo está a ampliá-lo em dois sentidos precisos. O primeiro é que esta forma de vida isola mas comunica, e fá-lo intensamente em regime de pânico. O segundo é que a fantasia, que é o modo de ser da rede social, fabrica a sua própria realidade, como notava já em 1928 o teorema de Thomas, que constatava que, “se as pessoas definem situações como reais, são reais nas suas consequências”. Ambos têm profundas consequências para a sociedade do medo.

O que fica e o que muda

Para analisar estas duas mudanças poderosas, a intensidade comunicativa e a realidade das ilusões no mundo novo, devo acrescentar um outro argumento para explicar o seu sucesso. É que o terreno estava preparado, há algum tempo, pelo modelo social baseado no consumismo, a regra que atribui um estatuto social a quem exibe os objetos de desejo reconhecíveis por todos. Ora, o desejo é infinito. A chamada Lei do Erotismo, que Proust terá formulado ou repetido, lembra que, quanto mais inacessível, mais desejável é o objeto da nossa paixão, razão pela qual a erotização da mercadoria é a estratégia publicitária triunfante. Portanto, o consumismo não tem limite, não aceita nenhuma barreira de capacidade material, sempre se inventarão desejos novos.

Também não mudou outra forma dessa comunicação sôfrega: as redes sociais já eram dispositivos em que a máquina intermedeia a amizade. Curiosamente, o Facebook, a maior dessas redes, que abrange agora um terço da população do planeta, é um caso em que a criatura se inventa a si própria, pois, quando foi concebido por estudantes de Harvard, servia para promover encontros pessoais, não para os encenar. Transformou-se entretanto numa mecânica de simulacro e foi assim que passou a ser uma rede global, a mais poderosa multinacional da história do nosso planeta.

Portanto, o desejo consumista e a máquina que padroniza a comunicação organizavam, já antes da pandemia, a continuidade do quotidiano. E foi nesse mapa que se impuseram as mudanças: se esta civilização tinha universalizado discursos de tensão permanente, com a explosão da comunicação iterativa amplificou a angústia. Esse é o caldo de cultura para se instalar o medo. Descobrimos agora que os dois caminhos por onde esse medo se naturalizou foram o frenesim da comunicação e a deslocação da política para o espetáculo.

A sociedade como ansiedade

Uma sociedade absorvida pela sua própria representação virtual exige a produção contínua de uma combinação exuberante de informação e entretenimento, colonizando o espaço público. Isso só é possível se essa produção se basear na imagem, pois só a imagem monopoliza em absoluto a atenção. Registo, antes de continuar, que uma das consequências desse processo é que estabelece novas formas de dependência e desigualdade. Num livro sobre “Crianças Consumistas”, um cooperativista, Ed Mayo, e uma professora da universidade de Bristol, Agnes Nairn, demonstraram que, no Reino Unido, as crianças pobres têm uma probabilidade nove vezes superior à das de famílias médias de comerem a ver televisão. O inquérito PISA revelou que 60% dos adolescentes de 15 e 16 anos na OCDE liam jornais em 2009, hoje reduziram-se a menos de 20%. Quatro em cinco jovens árabes de 18 a 24 anos só se informam nas redes sociais, um número que triplicou em quatro anos. No século XXI, o parente mais respeitado é o ecrã.

O uso absorvente da imagem para uniformizar o discurso contemporâneo promove uma nova forma de consumismo, cuja norma já não é o objeto usado, mas o tempo de atenção que se lhe dedica. Para todas as empresas de tecnologias de informação, o resultado passou a ser medido pelo tempo que é capturado aos milhares de milhões de utilizadores. Assim, o valor da empresa é estabelecido pela dependência de cada pessoa em relação aos seus serviços. O virtual canibaliza o real. A consequência é que a massa do investimento das empresas (e dos Estados) se dirige predominantemente para engrenagens de controlo e de identificação dos utilizadores, organizando a oferta de serviços para cada segmento do consumo. O ecrã passa a ser o confidente, o tutor e o parceiro do consumidor carente.

Em todo o caso, ao consumidor é dado um instrumento de sublimação e é por isso que este sistema lhe é tão atrativo: cria a sua própria representação, sente-se livre, mas para tanto precisa de teatralizar a sua personalidade, de se fazer ouvir. É-lhe sugerido que tem poder, que é o poder. A consequência, comentava a ensaísta Sarah Bakewell, é que “o século XXI está cheio de pessoas cheias de si mesmas e fascinadas pela sua própria personalidade, a gritar por atenção”. Naturalmente, este modo de comunicação potencia o comportamento agressivo e, em particular, impõe uma condição de sucesso a esta gritaria, tão necessária para se ser escutado: é preciso mostrar-se indignado. Para o verificar, uma investigadora fez a seguinte experiência numa das redes sociais mais populares na extrema-direita portuguesa: publicou, perante a indiferença geral, um post (sobre a exploração dos trabalhadores por turnos) e, algum tempo depois, republicou o mesmo texto, mas desta vez pontuado por intensos protestos, o que já mobilizou uma resposta entusiástica. O instinto de Pavlov dos dias de hoje é despertado pelo ponto de exclamação, os leitores estão treinados a reagir e multiplicar a linguagem da raiva. Essa é, aliás, a razão para Ventura ter tentado tornar o grito de “vergonha” no seu alter ego parlamentar. Para estas culturas, se a vida é pública, toda ela transmitida online (no Instagram o que comemos, no Facebook aquilo de que gostamos, no WhatsApp o que comentamos), passa-se a viver num modo de performance, dirigida a um público desconhecido, em que é necessária uma identificação que mobilize atenção: é a fúria contra tudo e contra todos.

Trata-se de uma deriva da bússola política. Em 2010, um veterano da resistência anti-nazi, Stéphane Hessel, escreveu o seu livro-apelo, “Indignem-se”. Os “indignados” ocuparam a Plaza del Sol, em Madrid, no ano seguinte. Em contraposição, a sociedade virtual pretende absorver e trivializar a insurgência, reduzindo-a a um enérgico sinal gráfico, um protesto que não incomoda mas que se finge portador de energia. Essa indignação é resignação.

O problema, mais do que o artifício, é que nunca tínhamos vivido assim. Todas as sociedades modernas foram intensivas em comunicação, que, aliás, é uma das características essenciais da natureza humana, dado que o que nos distingue de outros animais é a capacidade de exprimir uma linguagem complexa. Mas, se ao longo da modernidade foi criada uma comunicação pública com intermediação, decerto disputada pelos poderes, fossem eles o soberano, as igrejas, os jornais, o discurso científico, os partidos ou outras figuras de autoridade, ao mesmo tempo que procurámos sempre manter uma comunicação privada, emocional, no espaço reservado. Defendíamos assim um reduto de liberdade, mesmo quando o controlo do espaço público nos ameaçava. O problema é que a tecnologia da ansiedade, ou a sociedade de hiper-comunicação, subverteu este modo de comunicação. Em vez dessa intermediação no espaço público, passamos a ter uma contaminação emocional intensiva no espaço da apresentação, num mundo em rede em que tudo se diz e tudo se vê; ao mesmo tempo, a tecnologia invade os dados no nosso espaço reservado para escavar as suas minas, uma apta analogia para a missão de controlo. Temos assim o máximo de individualização com o máximo de controlo, suportado por uma ilusão de autonomia e até de participação.

Este processo tem duas consequências sociais. A primeira é que este sistema se reproduz a si próprio, tal como um vírus que busca infiltrar todas as formas de vida. Com menos intermediação e incentivando a fabricação de emoções, a sua difusão é vertiginosa. Acredita em si próprio, criando uma iliteracia do deslumbramento. Portanto, não pára. A segunda é que, mesmo que se afirme que estamos num plano horizontal, todos iguais, somos habituados à fragmentação impotente e sob controlo, só somos todos se não formos nada. O sistema de pontuação social na China, a tutela dos cidadãos por geo-referenciação em países ocidentais, a video-vigilância nas ruas, o poder de monitorização de contactos sociais, a extração de dados quando fazemos uma pesquisa ou uma compra, todos são exemplos de mecanismos de controlo. Quando explodiu o escândalo da Cambridge Analytica, Zuckerberg explicou que “a privacidade já não é a norma social”. Ora, o controlo é a outra face do caos e dirige a ordem do medo. É certo que alguns, no alvor do progresso industrial (quando “tudo o que é sólido se desvanece no ar”, escrevia Marx), tinham entrevisto que se tratava de uma nova cultura. Agora, que a nossa vida vai sendo reduzida a “dados” e que a sua utilização é mercadorizada, percebemos que a sociedade líquida que daí resulta pode ser a mais subjugada.

Shoshama Zuboff, professora da Harvard Business School, publicou no ano passado um livro, “O Capitalismo de Vigilância”, que dá voz a esta inquietação sobre os perigos da nova fronteira do poder. Chamou a este processo um golpe autoritário, por provocar a expropriação de direitos que tínhamos como parte da nossa tranquilidade. Argumenta ela que a experiência da vida privada era o último território por explorar na expansão do capital. A sua invasão passou agora a ser banalizada pela sociedade do medo. De facto, a sociedade totalmente conectada seria o último dos totalitarismos, nela não existe liberdade. Nem existe igualdade, dado que a credulidade sobre um mirífico controlo de todos sobre todos significa aceitar uma absoluta concentração do poder de controlar nas mãos de alguns.

A política no tempo do medo

A política do caos e do controlo é a forma de organizar o poder na sociedade do medo. Vai triunfar e, se sim, como vai funcionar? Ainda não sabemos, nem está decidido. Mas, se perguntamos quem manda, como se produz e reproduz a autoridade social, notamos talvez que o contrato passou a ser desprezado, mesmo que fosse antes de mais uma promessa, e que agora se afirma uma forma de autoritarismo que reconfigura o espaço público sob a forma do poder de exceção.

E aqui entra uma ilusão sobre a ilusão, a perceção deste nevoeiro como um já visto. Quando o nosso instante se parece com o passado que nos morde, as analogias com tempos anteriores são convidativas. Fugimos sempre para o que é conhecido e o passado, mesmo que trágico, é seguro, já aconteceu. Assim, há quem descubra nos modos sociais dos dias de hoje a repetição de uma animalidade entranhada na vida moderna, fazendo renascer linguagens predadoras como a norma da dominação, um espelho dos anos trinta do século XX. Descortina-se então um autoritarismo larvar que nunca teria sido extinto, o que parece confirmado pela desenvoltura de Bolsonaro a evocar a ditadura militar, ou pelo ímpeto eleitoral de profetas como Orban, Modi, Duterte, Salvini ou Le Pen, por Abascal a disparar frases como mísseis e, antes de mais, por Trump, com a sua pose de queixo levantado à Mussolini, a disputar um segundo mandato. Parece uma repetição, dizem-nos, mas fosse porventura só isso e seria talvez patético.

Este movimento é distinto, não é um fascismo. É um autoritarismo do tempo da globalização, que usa o localismo como ressentimento, promove o culto do chefe, usa o ódio como cultura, conduz até a uma militarização da política, tudo repetições da meia noite do século passado mas, ao contrário do fascismo, em que o Estado absorvia a sociedade, na sociedade do medo é esta que absorve o Estado. Também ao contrário do fascismo histórico, este novo autoritarismo promove o mercado como lei, pretende a privatização de hospitais e escolas, defende desabridamente o capital financeiro como o primeiro oráculo. 

Se bem que todos os regimes monopolizem o espaço público, os autoritarismos contemporâneos especializaram-se nas novas formas de comunicação dirigida. O Brasil é um dos casos mais marcantes do crescimento desta nova linguagem, é o segundo país com mais utilização do Youtube e o terceiro com mais contas de Facebook, só atrás dos EUA e da Índia, e foi o palco de um ensaio triunfante, a eleição de um presidente improvável. Em contrapartida, Trump usou o aparelho do partido republicano. Em ambos os casos, a tecnologia que usaram foi a combinação de intensidade e de imunização da sua figuração, o que surpreendeu os adversários. Brad Parscale, o gestor de Facebook na campanha de Trump em 2016 e que dirige a sua recandidatura este ano, explicava ao Guardian este sucesso, dizendo que “toda a campanha depende da recolha de dados”. Por isso, na corrida para a reeleição e usando registos detalhados sobre os vários públicos, em 2019 pagou 218 mil anúncios, cem deles para milhões de leitores, mas a maioria para menos de mil pessoas, com alvos dirigidos cirurgicamente. Os temas mais frequentes destes anúncios são, por ordem, a condenação dos media (para criar uma referenciação paralela e protegida da crítica), a imigração (para designar um perigo), o socialismo (para etiquetar os adversários) e o porte individual de armas. Tanto no caso de Trump como de Bolsonaro, o recurso intenso ao apoio dos tele-evangelistas faz ressoar este discurso numa dimensão religiosa. São duas formas de culto e essa é a gramática da sociedade do medo.

Esta comunicação só consegue constituir uma política se for avassaladora. Por isso, em 2019, doze dos ministros bolsonaristas postaram, em média, um tuíte a cada 40 minutos. Trump, durante os meses do impeachment, publicou três mil; num só dia, chegou a 400. Em ambos os casos, o metralhar de mensagens é uma forma de mobilizar a atenção de um exército de “bolsominions”, que devem ficar presos a cada palavra e à obrigação da sua reprodução, como se se tratasse de um liturgia da relação direta com a divindade. A névoa de mensagens fecha um universo que isola esta política de qualquer conversação. Ela não faz parte do domínio da racionalidade e o que lhe permite delimitar um mundo separado é precisamente o facto de ser hiper-comunicativa. Assim, a sua linguagem cria um novo sistema de crenças que desafia o conhecimento (a terra é plana, não há alterações climáticas, as vacinas prejudicam as crianças, por exemplo), mobiliza os seus próprios padrões de autoridade (o que nos chega via internet é certo) e reivindica as prerrogativas dos seus profetas (dizia o advogado de Trump que, se ele assassinasse alguém na Quinta Avenida, poderia continuar a sua campanha). Assim, a política desaparece, ou deixa de ter racionalidade na confrontação de posições e propostas.

Seria ingénuo pensar que a política seja meramente uma conversação ou que interesses sociais não sobredeterminam o espaço da argumentação. Mas, aí está, o espaço público é ainda um espaço e por isso a dominação exige narrativas que hegemonizem e sejam aceites. A mentira e a deturpação são vulneráveis e, por isso mesmo, devem ser blindadas como se fossem dogmas de fé. Para investigar esses dogmas, Felipe Nunes, um cientista brasileiro que estuda o comportamento nas redes sociais, conduziu, antes das eleições, uma experiência sobre essas narrativas, usando uma ampla amostra. Verificou que 46% das pessoas acreditavam numa notícia falsa valorativa de uma pessoa e somente 38% numa notícia falsa pejorativa. Estudando estes cenários, constatou que o desmentido de uma mentira numa rede social é irrelevante para alterar a opinião da maioria das pessoas, mas que a verificação profissional, por exemplo por jornalistas de televisão (ao género do Polígrafo) reduzia em 20% o impacto de uma mentira. Só que, apurou, ao chegar à campanha eleitoral esse efeito desapareceu, tudo o que era reproduzido formava doutrina para os clubes de fãs em que se organizaram os eleitorados. Outras investigações confirmaram esta conclusão. Michael Peterson e os seus colaboradores da Universidade de Aarhus compararam as redes sociais nos EUA e na Dinamarca e verificaram uma constante: não é por insegurança quanto à verdade e mentira que estes milicianos reproduzem as fake news, é mesmo por indiferença e pelo culto do caos. O segredo é criar a bolha que os albergue.

No entanto, mesmo a métrica desta comunicabilidade pode ser enganadora. Um campeão do Twitter, freneticamente partilhado, pode não conseguir adesão efetiva aos seus propósitos. Paulo Pena, jornalista que investiga as fake news com o MediaLab do ISCTE, apercebeu-se de que um tuíte do PNR contra uma conferência em Lisboa de Jean Willis, ex-deputado brasileiro exilado na Europa depois de ser ameaçado pelas milícias de Bolsonaro, fora o texto mais partilhado durante dias. Ora, a manifestação que convocava, tendo obtido a promessa virtual de adesão de milhares de pessoas, acabou por não conseguir juntar sequer umas dezenas, o que revela uma característica deste modo de expressão: o ”eu vou” representa simplesmente um certificado de existência e não uma garantia de apresentação. O virtual é real, excepto por vezes na realidade. Assim, mais do que a multidão da partilha, é preciso um lugar de autoridade para transformar as emoções da internet numa política que constitua um culto.

Há um vírus na comunicação?

A afirmação da política como culto exige uma tecnologia que viabilize a devoção e a submissão, as normas de uma obediência. E ela está disponível. Jonas Kaiser, da Universidade de Harvard, e Adrian Rauchfleisch, da Universidade de Taiwan, criaram um sistema de monitorização que incluiu 13529 canais do Youtube, alguns generalistas, outros de comentário ou políticos, e tentaram explorar um dos seus mistérios, perceber como funciona o algoritmo que, depois de uma qualquer visualização, nos sugere o autoplay, inscrito no final do vídeo concluído, ou os “vídeos relacionados”, ou seja, como é que a maior plataforma social do mundo encaminha os seus utilizadores. Descobriram o que chamaram de “grande radicalizador”, ou um enviesamento que leva a plataforma a sugerir predominantemente conteúdos de direita. Se por um momento ignorarmos suspeitas sobre este enviesamento, a razão do seu automatismo parece evidente, é que a direita usa a cultura do ódio como uma forma de aumentar a temperatura dos discursos e assegurar a sua reprodutibilidade, o que coloniza as redes na internet. Essa estratégia é um sucesso.

Deste modo, descobre-se que o autoritarismo dos nossos tempos usa melhor do que ninguém a militância de redes, que é a sua forma de ativismo político, assente na promessa aos iniciados do reconhecimento narcísico e da adrenalina da superexcitação. Assim recruta os seus engenheiros do caos, nos termos do jornalista Giuliano da Empoli, provando que, no tempo da hiper-comunicação, existem dispositivos de contaminação e subjugação mais poderosos do que a simples coerção. Esta engenharia mobiliza influencers como a voz do povo, promove igrejas como modelo de empresa (sobretudo a Teologia da Prosperidade de grupos pentecostais), uberiza o trabalho como se cada pessoa fosse empresária de si mesmo, judicializa a governação para a tornar irredutível, usa a ideologia como uma proibição, anula os compromissos sociais contratuais. E o pináculo da sua identidade é o discurso contra a política, reclamando uma exterioridade purificadora que anula a democracia como pluralismo. Ouve aqui o eco de Salazar? Nos dias de hoje, Trump e os seus aprendizes também são “contra a política”, são o povo contra “o sistema”. A direita apostou o seu futuro nesse novo sistema de crenças que rejeita a conversação na vida social. O facto é que venceu no seu campo. Por isso, em poucos anos poderá não haver direita que não seja trumpista, se o seu condutor for reeleito. E triunfará se estabelecer a sociedade do medo, que reclama um regime de exceção permanente.

Uma democracia em segurança sobreviverá?

É decerto difícil adivinhar o que ainda está para vir. Mas o que já sabemos, o passado, diz pouco sobre o futuro. A Itália de Peppone e D. Camillo já não existe. A França em que Sartre se recusava a ir à televisão também não. E, lamento, mas o Portugal de Cavaco Silva tão pouco. Agora, um dos nossos universos é virtual e não deixará de o ser. Pior, no presentismo obsessivo em que vivemos, dizem-nos que esse é o destino abissal, que nos precipitámos para uma tele-sociedade em que estamos reduzidos a figurantes de uma série da Netflix. Em todo o caso, este mundo está fragmentado e não voltará a unificar-se. A política ocupará novos territórios. Os atores do passado passaram. Na oportunidade da crise, figuras assustadoras exigem o poder absoluto.

Assim, nesta mudança indizível o espetáculo da pandemia, um apocalipse transmitido em direto para um mundo de espectadores encerrados e temerosos, poderia ser o grande medo inaugural de um tempo novo. A doença, o nosso mal, não se dissipará: enquanto prosseguir a desflorestação tropical e a inclusão de animais selvagens na cadeia alimentar humana, patogéneos desconhecidos, para os quais não temos imunidade, entrarão no circuito planetário à velocidade da globalização; enquanto prosseguir a toxificação do planeta, desastres extremos multiplicar-se-ão. O tecno-capitalismo, para lembrar o termo de José Gil, é o nosso big brother. Por isso, a engrenagem da hiper-comunicação pode ser usada para ampliar uma estratégia autoritária assente nesses temores tão realistas. A crise económica que vem, com o desemprego e a precarização da vida, a banalização dos discursos de ódio, do racismo, da homofobia, ou a menorização das mulheres, tudo se pode condensar numa sociedade de medo. Esse poderia ser um impulso para um estado pastoral, sob a forma de um autoritarismo messiânico e de um controlo social totalizante. E, no entanto, nada está decidido.

Nas primeiras salvas da pandemia, ainda os contágios e a mortandade estão a acumular-se, já a disputa mais importante que está em curso vai determinar a cultura, a linguagem, o sistema de referências da população. É a que estabelece onde está a segurança. Não é pouco, é tudo, a sociedade só se reencontrará contra o medo se garantir a sua segurança. A segurança é hoje o serviço público dos cuidados de saúde, a linha da frente. Quando é o nosso corpo que traz o mal, a doença que infeta, é a solidariedade entre todos que salva. O bem comum é a fronteira da humanidade.

É aqui que fracassa a engenharia do caos. É uma linguagem, mas nada diz sobre o que vem. O seu arquétipo institucional sobre o futuro não inclui uma narrativa sobre o trabalho, nem sequer sobre a sociabilidade. Nós viveremos e trabalharemos, não queremos que a vida nos empobreça. Amaremos e não será à força de likes. O espaço público nunca será completamente coisificado e o espaço privado nunca será totalmente domesticado. As pessoas encontrar-se-ão e buscarão contacto emocional. As ideias continuarão a ser uma forma de contaminação e intimidade. A democracia, ideia radical de igualdade, é assim o antídoto mais poderoso contra o medo. Talvez por isso o paradoxo mais difícil da crise seja saber se a democracia é rejeitada como Cassandra, ou se alguém ouve os seus avisos no tempo em que o medo corrói a humanidade.

Francisco Louçã é Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.



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