Romero Venâncio (UFS)
Em 7 de fevereiro de 1909 nascia Dom Hélder Pessoa Câmara. Prelado raro numa Igreja de raras grandes figuras. É sempre um risco e um desafio escrever sobre uma figura singular como Dom Hélder Câmara. Um risco porque estamos diante de um ser grandioso. Maior do que sua Igreja e maior do que seu país. Um homem que pensava grande em tudo. Na Igreja, no Nordeste, no Brasil, na América Latina...
Dom Hélder entendia que um cristão não pode se apequenar perante o mundo e as adversidades. Um desafio, por certo, porque a vida de Dom Hélder foi marcada por mudanças pessoais, políticas e teológicas radicais muitas vezes. O celebrado “bispo vermelho” já havia usado a “camisa verde” – foi integralista convicto nos anos 30.
Sabia, inclusive, porque foi integralista e porque o trabalho de massa da AIB (Ação Integralista Brasileira) tinha impacto na Igreja. Plenamente consciente. Como também foi importante afastar-se dos integralistas quando percebeu o perigo fascista que sempre rondou a AIB. Plínio Salgado nunca escondeu sua simpatia por Mussolini e se orgulhava do encontro com o “Dulce” italiano.
De um fascismo à brasileira ao antissemitismo, o integralismo tinha de tudo. Até Abdias do Nascimento andou por estas paradas integralistas. Dom Hélder foi integralista e renunciou publicamente a AIB. Logo, é sempre um desafio escrever sobre alguém assim.
Dom Hélder foi grandioso dentro e fora do cristianismo latino-americano por conta de conseguir unir dialeticamente duas características difíceis de conviver no coração de um discípulo de Jesus. A saber: Ação e Oração. Vida pública intensa e experiência mística de recolhimento.
O jornalista Marcos de Castro em sua “biografia” de Dom Hélder destaca bem a intensa vida política, missionária e ativista do bispo de Recife e Olinda. No livro: “Dom Hélder: misticismo e santidade” (editora Civilização Brasileira, 2002), Castro no capítulo segundo intitulado: “A revolução profunda” chama a atenção para as atividades públicas do Bispo. Não por interesse próprio quer seja para ganhar um cargo em governo, candidatar-se a algum pleito ou ter dinheiro.
O bispo Hélder era um crente obstinado em sua fé gratuita como é toda a graça de Deus. Sabia Dom Hélder que por merecimento, Deus jamais olharia para quem quer que seja. Somos todos do mesmo barro limitado, frágil e errante. Nada em nós justifica um Deus acreditar em nós. Nada nos justifica. Futilidades como cargos de poder ou prestígio mundano fazem parte apenas da “glória deste mundinho”. Nada mais. É insondável graça de Deus que nos faz ser alguma coisa e ter esperança em vida e na morte. E como toda esperança, sempre na corda bamba. Dom Hélder tinha plena consciência disto e se jogou no mundo e fez deste mundo o palco de sua ação, perdição e salvação (não necessariamente nesta ordem!).
Dom Hélder em sua plena ação no mundo, enfrentou três grandes “demônios”. Demônio aqui não como uma entidade que exista em algum lugar, mas como uma encarnação da maldade. O pastor Hélder enfrentou os demônios com tenacidade e sabedoria.
Primeiro. O “Demônio da fome”. Como nordestino, viu de perto a cara da morte e ela era a fome que maltratava, marginalizava e matava tantos irmãos pobres que só Jó por este nordeste errante. Sem dúvida, foi sua maior luta. A mais desigual e cruel. Lutou com as “armas” que dispunha e as que nem tinha. Lutou com os governos que tinham boa vontade (raro neste país!). Clamou por políticas públicas de segurança alimentar, fez projetos para o exterior para captar recursos, trabalhou em campanhas contra a fome, por moradia digna, por emprego e pela dignidade humana. Típico de todo humanista radical. Celebrou a obra de Josué de Castro em sua “Geografia da fome” e se somou à sua causa. Até o fim de sua vida.
Segundo. Enfrentou o “demônio da ameaça nuclear”. Lutou toda sua vida consciente pela paz. Foi um discípulo da paz. Chegou a ser indicado para o prêmio Nobel da paz. Atrapalhado pelos ditadores de plantão desse apequenado país. Dom Hélder pertence a uma geração que viu as reais possibilidades de uma guerra nuclear que poderia pôr fim a própria humanidade como um todo. Dom Hélder viajou pelo mundo como um mensageiro de um discurso de paz. Não defendia uma “paz de cemitério” ou uma suposta “paz interior”. Não. Sua missão dizia respeito a um imenso amor ao mundo. A “casa comum” como diz hoje o Papa Francisco. Como um discípulo de São Francisco, entendeu este mundo como pertencente a todo ser vivo.
Terceiro. Dom Hélder enfrentou o “demônio” da ditadura pós-64 que assolou este Brasil. Um golpe militar inicialmente apoiado pela CNBB e por boa parte da Igreja no susto de se ter no Brasil um governo “comunista”. Dom Helder assobrado pelo fantasma do comunismo. Humano como era, viveu as contradições de uma Igreja tola e pobre em sua fé. Cristão que tem medo de comunismo, nada sabe da vida. Vive numa bolha. Do Hélder mais uma vez percebeu o erro fatal de apoiar militares que amam mais armas do que o país. E mudou. Viu irmãos seus de igreja sendo presos, torturados, exilados e mortos. Viu o que estes militares de extrema direita eram capazes de fazer e fizeram... Com o Pe. Henrique Pereira Neto (prenderam torturaram, mataram e jogaram seu corpo numa mata da Várzea em Recife). Dom Hélder mais uma vez entrou em campo e combateu a ditadura dentro e fora do Brasil. Aliou-se aos movimentos de direitos humanos e liderou uma Igreja em combate as atrocidades dos governos militares.
Dom Hélder foi muitos na luta pela justiça, contra a fome, pela paz e contra os terrorismos de estado. Mas foi um na mística, no recolhimento, na síntese noturna, na entrega a um Deus misericordioso. Dom Hélder singular.
SARAU VIRTUAL - UM PASSEIO PELA HISTÓRIA DE DOM HELDER
Marcelo Barros
Queridos irmãos e irmãs,
Nesta mesma data, 7 de fevereiro de 1909, há 104 anos, nascia Helder Camara que se tornaria exemplo de fé cristã, solidária com toda a humanidade e de uma espiritualidade libertadora. Nestes dias, nos entristece ver grande parte das Igrejas cristãs apoiar projetos de sociedade opressiva e claramente contrários ao projeto divino de Paz e Justiça para este mundo. Mesmo a parte das Igrejas menos fechadas ainda ficam presas a uma compreensão da fé predominantemente ritual. Consideram a dimensão social transformadora apenas uma linha de pastoral e muitas vezes considerada como menos importante e marginal ao núcleo central da fé.
A realidade que estamos vivendo no Brasil pede muito de nós, cristãos e cristãs, principalmente pessoas comprometidas com as Pastorais. De certa forma, está exigindo que, com urgência, suscitemos e possamos desenvolver alguma iniciativa que expresse duas posturas ou atitudes:
1º – A reafirmação atualizada e mais profunda do compromisso de inserção no mundo dos pobres e de solidariedade com os grupos oprimidos (classe trabalhadora). Para o enorme grupo de cristãos/ãs, descomprometidos/as com a justiça social e ligados/as à Teologia ou espiritualidade da prosperidade, é preciso deixar claro que, para nós, ser cristão/ã significa ser discípulo/a do profeta Jesus de Nazaré e testemunha do reino de Deus, como projeto divino de Justiça, Paz e cuidado com a Mãe Terra, nossa casa comum. Nossa opção é a fé como profecia do reino de Deus e não fazer da Igreja uma religião cada vez mais ritual.
2º – Fazer com que nossas Igrejas sejam lugar de diálogo, espaço de comunhão universal. Portanto, ao mesmo tempo que tomamos posição clara pela profecia evangélica, temos de abrir nossas comunidades cada vez mais a serem pontes de diálogo e de construção de uma reconciliação social que o Brasil tem urgência e o presidente Lula tem pedido em várias de suas falas desde o seu discurso na noite em que foi eleito e também o discurso no Planalto na tarde de 1 de janeiro, depois de sua posse no Congresso.
Com estas duas preocupações que se tornam prioridade hoje, pensamos em aproveitar o aniversário da chegada de Dom Helder Camara como arcebispo católico no Recife (12 de abril de 1964) e provocar por parte de ministros e grupos de Igrejas cristãs e aberto a pessoas de outras religiões o começo de um processo de formação e aprofundamento para renovarmos e atualizarmos o famoso Pacto das Catacumbas, assinado por 42 bispos católicos de todo o mundo, liderados por Dom Helder Camara em novembro de 1965, durante o Concílio, pacto renovado na mesma Igreja das Catacumbas de Domitila, em Roma, durante o Sínodo da Amazônia (outubro de 2019) e desta vez como Pacto de cuidado com a Casa Comum.
Pensamos que devemos atualizar este pacto, na linha de reafirmar nosso compromisso de amor e solidariedade com o mundo dos pobres e cuidado com a ecologia integral, encontrando formas de viver isso de forma que colabore para a construção de uma reconciliação nacional e uma unidade popular na refundação do Brasil agora.
A ideia é lançar isso aqui no Recife no sábado 15 de abril em uma tenda junto com sofredores de rua e os irmãos que trabalham com eles e elas e ir propondo que o assunto seja discutido pelos mais diferentes grupos religiosos no Brasil, de modo a suscitar um aprofundamento da dimensão profética da fé nas diversas Igrejas e religiões, assim como uma renovação do compromisso de inserção social e política na linha libertadora.
Pensamos um texto breve que possa servir para ser aprofundado e se necessário transformado. Cada grupo pode fazer o seu texto próprio. O importante não é tanto ter um texto comum para o Pacto e sim a partir deste texto ou de outro semelhante, expressar concretamente a que cada grupo se compromete e como quer atualizá-lo para este momento brasileiro: renovar o compromisso de inserção junto ao povo empobrecido e no cuidado com a mãe-Terra.
Talvez seja possível encontrar uma forma de sugerir celebrações que ocorram na mesma ocasião em todo o Brasil, uma ideia seria, por exemplo, aproveitar a Semana da Pátria e o Grito dos Excluídos/as neste ano.
Vejam um primeiro texto que surgiu para ser um primeiro roteiro a ser discutido:
Por um novo Pacto das Catacumbas
(texto provisório a ser modificado e pensado para Recife)
"Em nome de Deus, Pai e Mãe de todos os povos,
Maíra de tudo, excelso Tupã.
Em nome de Olorum,
de todos os Orixás e dos Encantados da Mata,
Em nome do Amor Divino
que se manifesta na irmandade de todos os seres humanos
Em nome de Jesus Cristo, irmão
Que quis ser Servidor de toda a humanidade,
testemunha do projeto divino de Justiça e Paz no mundo.
Em nome da aliança da libertação.
Em nome da luz de toda a cultura
Em nome da morte vencida,
em nome da Vida, nós nos reunimos no Amor!"
Com essas palavras que retomam e ampliam o cântico de entrada da chamada “Missa da Terra sem Males”, composta por Dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra e musicada por Martín Coplas, que há mais de 40 anos, fazia memória do martírio dos povos indígenas e testemunhava a comunhão do Cristo com todas as pessoas e comunidades oprimidas, invocamos o Espírito de Deus sobre nós, nossas Igrejas e comunidades de outras tradições religiosas, todos reunidos em nome do Amor Solidário que pede de nós compromisso social e político com a Paz e a Justiça eco-social.
Queremos renovar nossa fé como adesão ao projeto divino de Paz, Justiça e Cuidado com a mãe Terra e a partir da inserção no mundo dos grupos e comunidades mais empobrecidos da nossa cidade e do mundo.
No dia 16 de novembro de 1965, na Igreja das Catacumbas de Domitila em Roma, animados por Dom Helder e outros pastores, 42 bispos católicos da América Latina e do mundo assinaram o Pacto das Catacumbas e assumiram o compromisso de inserção amorosa e solidária com todas as pessoas vítimas da pobreza injusta e das opressões de um mundo organizado em função do lucro e da competição.
Em 20 de outubro de 2019, durante o Sínodo para a Amazônia em Roma, novamente mais de 40 bispos e muitos outros e outras participantes do Sínodo, inclusive representantes de Igrejas evangélicas e também líderes de povos originários, renovaram o Pacto, desta vez incluindo a defesa da Terra e das águas no “Pacto das Catacumbas pela Casa Comum. Por uma Igreja com rosto amazônico, pobre e servidora, profética e samaritana”.
Neste início de 2023, a sociedade civil brasileira é chamada a colaborar com o governo para transformar as estruturas sociais que fazem do Brasil um dos países do mundo campeões em desigualdade social. As pesquisas revelam que entre os dez brasileiros mais ricos do mundo, dois se dizem pastores de Igrejas cristãs e vemos que muitos ministros e grupos cristãos, pentecostais, evangélicos e também católicos continuam dando um testemunho de um Deus que não é Amor e legitima o ódio, a violência e as discriminações sociais.
Diante disso, fazemos memória da vida e da profecia do servo de Deus, Helder Camara e queremos renovar nosso compromisso de fé e assinar um novo Pacto das Catacumbas.
Assim, reafirmamos como atual e convocadora para todos nós a proposta que Dom Helder Camara e os bispos, reunidos na 2ª Conferência geral do episcopado latino-americano, em Medellín, (1968) puseram no documento 5 das Conclusões de Medellín:
“Que se apresente cada vez mais nítido, na América Latina, o rosto de uma Igreja autenticamente pobre, missionária e pascal, desligada de todo o poder temporal e corajosamente comprometida na libertação de todo o ser humano e de toda a humanidade” (Medellin. 5, 15 a).
Hoje, lembrando o Pacto das Catacumbas pela Casa Comum, acrescentamos ao compromisso com a libertação de todo ser humano e da humanidade, o compromisso do cuidado com a mãe-Terra, as águas e toda a Casa Comum.
O Espírito de Deus, que nos inspira este compromisso nos dê força e luz para cumprirmos e dele dar testemunho pelo nosso modo de viver,
Amém, Shalom, Axé, Aleluia, Awuerê.
Penso que este texto deva ser estudado, aprofundado por cada grupo, cada Igreja, cada organização e assim a gente aproveite esse processo da elaboração do novo Pacto como ocasião de formação e aprofundamento.
Vejam se podemos produzir material de formação e de aprofundamento ao menos dessas quatro questões (coloco como pergunta, mas são temas a serem estudados).
1 - Por que e em que consiste para nós a inserção amorosa no mundo dos pobres? Como devemos e podemos expressar isso comunitariamente?
2 – Por que, em que consiste e como expressar nossa comunhão com as religiões de matriz africana e as espiritualidades dos povos originários?
3 - Por que e em que deve consistir nosso compromisso com a Casa Comum?
4 – Por que e como atuarmos para o diálogo intercultural e político na construção de uma reconciliação das famílias e do povo brasileiro?
Seria possível pensarmos encontros de formação e lives ou mesmo aulas registradas em internet que aprofundem esses assuntos?
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