sábado, 18 de fevereiro de 2023

‘Escolas de samba têm um perfil pedagógico fundamental’, diz historiador

Em entrevista ao Porvir, o historiador Luiz Antonio Simas comenta como o Carnaval é, além da festa, um momento de aprendizado sobre história e temas atuais

por Ruam Oliveira ilustração relógio 17 de fevereiro de 2023

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O Brasil é conhecido como o país do Carnaval. Mas essa festa é só folia? O fato é que não se trata de um consenso geral. Existem aqueles apaixonados pela data e que esperam ansiosamente pela chegada deste período, e há também quem não queira saber da folia e prefira descansar. 

Além da diversão, o Carnaval também pode ser educativo. A escola consegue aproveitar a data como ponto de partida para o debate de questões sobre arte, cultura, história e até mesmo geografia ou língua portuguesa. 

Em entrevista ao Porvir, o historiador Luiz Antonio Simas, que será homenageado no enredo da escola de samba carioca Acadêmicos da Abolição este ano, pontuou que o evento, seja de rua ou o televisionado, é um momento para olhar para a diversidade e aprender com o diferente. E isso representa o Brasil.

“De certa forma, ao longo da história do Brasil o Carnaval fundamentalmente se manifesta como uma festa de construção de sentido coletivo da vida. Isso é muito importante. Sobretudo numa realidade e em um mundo que nos individualiza cada vez mais”, afirma Luiz. 

O historiador também disse que a data tanto pode ser estudada para analisar a história, quanto refletir sobre o presente e eventos contemporâneos. Em muitos casos, os enredos trazem temas centrais na sociedade brasileira como o racismo, a intolerância religiosa e o preconceito. 

Confira abaixo a entrevista com Luiz Antonio Simas:

Porvir: De que maneira o Carnaval representa e traduz a diversidade brasileira?

O historiador Luiz Antonio Simas posa para foto em uma rua do Rio de Janeiro. Ele está com uma camiseta com ilustração dos santos Cosme e Damião

O historiador Luiz Antonio Simas. Foto: Monica Ramalho.

Luiz Antonio Simas: Acho que o Carnaval não representa apenas a diversidade brasileira, mas ele representa praticamente tudo. Ele representa o que a gente tem de melhor e, ao mesmo tempo, os nossos tensionamentos enquanto sociedade. Ele não é um consenso para o povo brasileiro. Existe quem ama o Carnaval e tem um Brasil que o repudia com veemência. Então o Carnaval é, de certa maneira, uma festa em que repercute ou ressoam os dilemas da nossa formação naquilo que ela tem de mais forte, mais bonito, mais potente, mas também naquilo que ela tem de mais pesado. O Carnaval é uma festa disputada porque o Brasil é um país disputado.

Porvir: Como essa diversidade aparece nas diferentes festas e ritmos?

Luiz Antonio Simas: Um lado que eu acho absolutamente fascinante do Carnaval é exatamente a possibilidade de encarar um Brasil múltiplo, diverso, plural, que se manifesta nos inúmeros carnavais que a gente tem. Um Carnaval que é do Rio de Janeiro, que é da Bahia, de Pernambuco, de São Paulo, de São Luís do Maranhão. Temos um Carnaval de marchinha, de frevo, de axé, afoxé, samba de bumbo, batuque de Pirapora… é uma multiplicidade enorme. Então, nesse sentido, o Carnaval mostra a riqueza e a complexidade do processo de formação do Brasil e da cultura brasileira.

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De certa forma, ao longo da história do Brasil, o Carnaval fundamentalmente se manifesta como uma festa de construção de sentido coletivo da vida. Isso é muito importante, sobretudo numa realidade e em um mundo que nos individualiza cada vez mais. E essa perspectiva coletiva do brincar Carnaval, do fazer Carnaval é muito forte. Todos esses lados são magníficos e representam essa diversidade. Quem pretende conhecer um pouco da diversidade, da pluralidade, de um Brasil múltiplo, de um Brasil feito do cruzamento de culturas das mais diversas, certamente vai ter que passar pelos estudos do Carnaval.

Porvir: Estamos em 2023 e, apesar disso, pessoas seguem utilizando a figura indígena como fantasia. Assim também acontece com a “Nega Maluca” e outros estereótipos preconceituosos e ofensivos. Como educadores podem usar esses casos como disparadores de uma reflexão ampla sobre história e cultura do país e respeito aos povos originários?

Luiz Antonio Simas: O Brasil vive um processo, como sociedade, em que diversas questões precisam ser amadurecidas, refletidas e repercutidas. O Carnaval não é uma festa de alienação. Nesse sentido, o Carnaval é uma festa que escancara alguns dos dilemas mais terríveis da formação brasileira. O Brasil como Estado-nação, como um certo projeto oficial, foi projetado para excluir, para concentrar renda e capital. É um projeto escravocrata, que domestica e aniquila corpos. É um projeto que se construiu em cima da aniquilação de saberes não brancos, de corpos não brancos. O genocídio dos povos originários, o que a gente está vendo hoje com os Yanomami, a rigor é uma política da colonialidade. Então existe esse Brasil oficial que é tacanho, que é horroroso.

Porvir: E sobre as fantasias?

Luiz Antonio Simas: O Cacique de Ramos, por exemplo, é um bloco em que todos os componentes usam vestimentas indígenas como fantasia de Carnaval e brincam. Mas o Cacique é um outro papo, porque vive naquela encruzilhada em que o profano é sacralizado e o sagrado é profanado o tempo todo. O bloco foi fundado num espaço consagrado inclusive ao Orixá Oxóssi – que é também o Cacique de Ramos vinculado ao culto dos Caboclos de Umbanda. Então o Cacique de Ramos tem uma autorização, inclusive espiritual, para que eles venham trajados de indígenas. Aí a fantasia ganha uma outra dimensão. Ela ganha uma dimensão de respeito aos povos tradicionais. Há uma questão orgânica, como a do Cacique de Ramos, que louva os caboclos, Oxóssi e os povos das florestas, homenageando os povos originários.

Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil

Outra coisa é uma pessoa gratuitamente usar uma fantasia que no fim das contas pode representar exatamente esse descaso com todos os dilemas da nossa formação e que com o que acontece desde sempre – e hoje isso está muito aprofundado – com os povos originários. Essa reflexão pode ser levantada no Carnaval, porque a festa serve também para a gente levantar questões as mais relevantes. Essa é uma delas.

Porvir: Do seu ponto de vista, quais personagens ligados ao Carnaval merecem destaque em sala de aula? 

Luiz Antonio Simas: Tenho livros publicados sobre escolas de samba (Dicionário da história social do samba; Samba de enredo: história e arte) e eu acho que são instituições que têm um perfil pedagógico absolutamente fundamental. 

Vou dar um exemplo muito concreto: em 1960, a Acadêmicos do Salgueiro fez enredo “Quilombo dos Palmares”, contando a história antes de que ela chegasse aos livros didáticos. As escolas de samba têm dimensão pedagógica.

Acho importante que a gente ressalte alguns personagens do Carnaval que participam de todo esse processo e que estão inseridos numa economia criativa que faz a festa acontecer. Isso tem que ser debatido. Se aparentemente o Carnaval é a festa da alienação, e escapista como senso comum considera, a gente não pode desconsiderar, por exemplo, que existem personagens que trabalham exaustivamente para que o Carnaval aconteça e que dependem materialmente, espiritualmente e afetuosamente da existência do Carnaval. Existem artistas plásticos, bordadeiras, vidraceiros, costureiras, músicos e garçons que ativamente participam desse processo para que a festa ocorra. 

Gosto muito de pensar nos personagens anônimos porque, aparentemente, não estão às nossas vistas, mas vivenciam o Carnaval e fazem acontecer. Acho muito importante que a gente tenha essa dimensão. 

O Carnaval é uma festa múltipla do povo do Brasil, um gerador de renda não só durante os dias de folia, mas durante boa parte do ano boa parte do ano – em um bloco grande ou uma escola de samba, a preparação de um desfile desses dura seis meses, com gente trabalhando, pensando, refletindo, botando a mão na massa para que as coisas ocorram. Gosto muito desses brasileiros e brasileiras que estão fora do foco da grande mídia que são decisivos para que o Carnaval aconteça.

Porvir: Além da perspectiva histórica, o Carnaval também reage e discute temas bastante atuais. Quais as diferenças na maneira como esses temas são expostos em blocos de rua e nos desfiles do sambódromo?

Luiz Antonio Simas: Os carnavais de avenida podem ter um potencial pedagógico muito grande porque os enredos, o cortejo dramático, a dramaturgia de um desfile de escola de samba podem colocar uma série de questões vinculadas à história do Brasil, à literatura brasileira, a cultura brasileira, a personagens que constroem o Brasil, tudo isso pode passar numa avenida. Por exemplo, a Beija-Flor de Nilópolis vai cantar em 2023 as outras narrativas sobre o processo de independência do Brasil, trazendo como referência o 2 de julho baiano, a guerra de independência da Bahia, com a perspectiva de caráter popular para a reflexão que a avenida pode ensejar.

São narrativas que trazem para a reflexão a participação popular, mostrando que a construção de uma certa narrativa elitista que vigorou a respeito da nossa independência com o grito do Ipiranga, com Dom Pedro I, não pode apagar uma série de movimentos de caráter popular que lutaram de uma forma combativa para que o Brasil se tornasse independente.

Porvir: Quais outras dimensões pedagógicas e sociais podem ser vistas, tanto na avenida quanto em festas de rua?

Luiz Antonio Simas: A rigor, uma escola de samba pode pensar temáticas do passado trazendo essas narrativas para reflexão a respeito do presente e de projeções de futuros melhores para o país. O Carnaval de rua é bem mais solto, mas tem a tradição também de ser um Carnaval que reflete o tempo que a gente está vivendo. O Carnaval de rua é o Carnaval da sátira política, é o zombeteiro, ele zomba do poder, tem essa capacidade de gargalhar, de rir, de brincar na cara da intolerância, da violência, dos discursos racistas, da misoginia e de discursos heteropatriarcais. 

O Carnaval da Sapucaí pode trazer diversas dimensões, mas tem um caráter pedagógico que eu diria que é um pouco mais fechado – enquanto o Carnaval de rua traz essa efusão, muito mais ampla. 

Porvir: Há uma série de engajamentos culturais e sociais…

Luiz Antonio Simas: O Carnaval, definitivamente, não é uma festa da alienação. Se a gente vai estudar a história do Carnaval, se formos para a década de 1880, por exemplo, o Carnaval colocou em questão a abolição da escravatura no Brasil. A gente tem inúmeras referências documentais de desfiles de cordões, de grandes sociedades carnavalescas que traziam a temática da abolição de uma forma muito intensa para as ruas. O Carnaval fez a propaganda abolicionista. Esse é um exemplo, mas ao longo dos tempos o Carnaval ganhou perspectiva de engajamento social, sim. Carnavaliza tudo isso, é claro, mas ao carnavalizar coloca essas questões na ordem do dia.

Porvir: Como você acredita que um convite à compreensão social e histórica do Carnaval pode desconstruir preconceitos e gerar aproximação com o diferente?

Luiz Antonio Simas: Eu acho que o Carnaval tem a capacidade de nos colocar diante da alteridade, diante de outras experiências, perspectivas ou pessoas que aparentemente são distintas da gente. Isso tudo dentro de um espírito de coletividade. O Carnaval é uma festa que, ao ser coletiva, ressalta também a possibilidade de se construir um sentido coletivo de vida marcado pela pluralidade. Acho isso cho absolutamente fundamental. 

O Carnaval, portanto, é uma festa que desafia alguns padrões normativos que são rigorosamente – é importante dizer – vinculados a esse projeto de Brasil excludente, que foi sendo construído desde o período colonial e que está aí nos assombrando o tempo todo. É uma festa que apresenta a possibilidade do convívio com o outro, com a alteridade, a pluralidade, com o poder que a pessoa tem de ser aquilo que efetivamente ela é. 

Foto: Agência Brasil

O Aldir Blanc (1946-2020), grande compositor, tem uma frase fabulosa: “Carnaval é aquele período em que a gente tira a fantasia que usa o resto do ano”. É aquele momento de efusão em que nós podemos ser efetivamente o que nós somos, isso é fundamental em toda a pluralidade e diversidade. É uma festa que enseja o respeito à divergência, à diferença, à multiplicidade de experiências, à pluralidade. Carnaval, nesse sentido, é muito pedagógico. Ele te coloca diante da necessidade de conviver com o outro, com a outra, com a alteridade como o elemento fundamental da construção coletiva de vida.

Porvir: Em quais disciplinas ou componentes curriculares a temática se encaixa?

Luiz Antonio Simas: O Carnaval para a educação é fundamental porque cruza com a história, com a sociologia, a filosofia, a arte… Quando se pensa no Carnaval, ele é um tema que traz essa transversalidade que passa pela história, pela filosofia, pela sociologia, geografia – porque está muito ligado à questão do território e à maneira como o território é praticado. 

Ele tem essa multiplicidade pela língua portuguesa, pela literatura, de poder perfeitamente utilizar o samba de enredo para trabalhar português. Eu diria que, nesses aspectos, o Carnaval tem um papel absolutamente fascinante que pode ser trabalhado pela educação. Nós podemos dar aula de história, de geografia, de sociologia, de filosofia, de artes, de língua portuguesa, de literatura tendo como referência o Carnaval. Ele é um tema que apresenta uma transversalidade para quem trabalha com educação. 

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