domingo, 19 de novembro de 2023

OS SEUS DONS FRUTIFICAM OU ESTÃO ENTERRADOS E MORTOS? Chico Alencar, Marcelo Barros e Chico César.

 (breve reflexão para crentes ou não)

Neste domingo, em milhares de comunidades de fé espalhadas pelo mundo, é lida a "Parábola dos Talentos" (Mateus 25, 14-30).

À primeira vista, em percepção rasa (ou 'fundamentalista', ao pé da letra), pode parecer historinha de um Jesus "empreendedor", ensinando como entesourar e lucrar.

Não é nada disso. Ele utiliza valores materiais da época ("talento" era a moeda de então e já vigorava a ideia de lucro, de ganho) para falar dos nossos valores espirituais, de partilha. Jesus, pedagógico, partia do imanente, do concreto, para chegar ao transcendente, que não enferruja nem apodrece.

Nessa parábola, o Mestre lembra nossa condição no mundo. Criados por Deus (nosso Deus é sempre um "Deus escondido", como Alguém que nos deu o sopro da vida e viajou para bem distante), recebemos dons que devemos fazer frutificar.

Todos, sem exceção, nascemos com um potencial para o bem, para a generosidade, para a fraternura. PARA A INTEGRAÇÃO COM A NATUREZA, PARA O CUIDADO COM A TERRA, NOSSA CASA COMUM. Como fecundamos isso? Quem esquece esses dons, e "enterra seus talentos", abre espaço para o ódio, o rancor, a amargura. Para os extremos climáticos que devastam as gentes.

Na sociedade da competição, da exclusão e do mercado total, muitos não têm oportunidade para desenvolver seus talentos.  Nós também vamos nos acomodando à (des)ordem individualista vigente, e ficamos opacos, omissos, embotados, cinzentos...

Somos, por natureza, gregários. A vidinha do "cada um por si", dos talentos enterrados, é uma negação da nossa vocação e traz infelicidade. Pablo Neruda (1904-1973) dizia: "continuo acreditando na possibilidade do amor. Tenho certeza do entendimento entre os seres humanos, logrado sobre o sofrimento, sobre o sangue e sobre os cristais quebrados". Neruda queria ser "um poeta de utilidade pública".

Em sua linda "Oração ao Tempo", #caetanoveloso pede "o prazer legítimo/ e o movimento preciso (...) de modo que o meu espírito/ ganhe um brilho definido/ e eu ESPALHE BENEFÍCIOS".

Como estamos cultivando nossos dons? Qual tem sido nossa "utilidade pública"? Que benefícios temos espalhado? 

Nelson Mandela (1918-2013), enfrentando o racismo e a prisão, desenvolveu muito bem seus talentos (que nos inspire nessa véspera do Dia Nacional da Consciência Negra)

Chico Alencar


XXXIII Domingo Comum: Mt 25, 14- 30.
(Dia Mundial dos Pobres) 

Quando vida e parábola se misturam, o evangelho é o avesso

              Neste XXXIII domingo do ano, o evangelho de Mateus 25, 14- 30 nos traz a chamada “parábola dos talentos”. Uma parábola estranha que entendida ao pé da letra pode ser compreendida como legitimação do Capitalismo: é importante fazer render os talentos, ou seja, o dinheiro recebido, de modo que se restitua ao rico o dobro do que ele investiu. Infelizmente, é provável que, hoje, na maioria dos púlpitos católicos e protestantes, esse seja o tipo de discurso mais ouvido e aplaudido. 
             Ao contrário, neste domingo, celebramos o Dia Mundial dos Pobres, proposto pelo papa Francisco. O evangelho proclamado na celebração desse dia deve nos ajudar a fortalecer a comunhão com os pobres. No entanto, compreendido ao pé da letra, esse evangelho parece contrário a tudo o que o próprio Jesus disse no mesmo evangelho de Mateus. 

             Como outras parábolas, essa também compara Deus ou o próprio Jesus com um homem muito rico. Os estudiosos dizem que na época de Jesus, cada talento  valia 6 mil denários e o salário diário de um trabalhador era um denário (Warren Carter, p. 606). Então, se o tal rico tinha oito talentos, era como se tivesse a soma equivalente ao salário de quase 20 anos de trabalho de um lavrador. Pior ainda, a parábola diz que o tal rico é “um homem duro, severo, que quer colher onde não plantou e ajuntar onde não semeou’(v. 24). É a experiência que o mundo sempre teve com o modelo de economia, baseado no lucro e na exploração do trabalho do outro. É uma sociedade sem solidariedade e sem compaixão. Além disso, conforme o texto do evangelho, o tal homem, além de rico e mau, é fingido. Finge ser honesto. 
             Na cultura da época, cobrar juros era desonesto. Na sociedade judaica, quem cobrava juro era publicano e amigo de romanos. Um homem honrado não podia deixar que descobrissem que ele cobrava juros de empréstimos. Como o sistema sempre encontra escapatória para o poder, os senhores não se envolviam em cobrança de juros para não serem considerados desonestos. Faziam isso através de escravos. Afinal, um escravo não tinha mesmo nenhuma honra a preservar. Os ricos confiavam o dinheiro a escravos de confiança e eram esses que cobravam juros para os seus proprietários (Bruce Malina e Richard Rohrbaugh, Evangelhos Sinóticos, Paulus, p. 143). Hoje, no Brasil e em outros países, muitos ricos recorrem a “laranjas” e outros expedientes para continuar a ser vistos como homens honrados. 

              O evangelho de Mateus, escrito pelos anos 80 do primeiro século da nossa era, reflete a crise das comunidades cristãs que esperavam a parusia (a prometida manifestação de Jesus e a vinda do reino) e essa parecia nunca chegar. Era isso que a comunidade de Mateus queria destacar com essa parábola do evangelho: como reagir ao fato de que o reino de Deus prometido está demorando tanto e o mundo parece cada dia pior. Não podemos fazer leituras fundamentalistas da parábola. É bem o que essa parábola descreve bem: “O senhor viajou para muito distante e demorou a voltar”(v. 19).  
              De acordo com o evangelho, como sempre fazia, Jesus aproveitou um fato ocorrido na época para tirar dele alguma lição para a comunidade cristã dos anos 80. Infelizmente, a interpretação da parábola para justificar a ética da burguesia é tão comum que a própria palavra “talento” tornou-se em nossas línguas sinônimo de “dom natural”. Comumente as pessoas dizem que você tem ou não tem talento para tal coisa. Existe até o adjetivo “talentoso”. Ser talentoso é questão de dom natural. 
               No contexto do evangelho, a parábola nada tem a ver com dons naturais. Se entendêssemos assim, os ricos de hoje seriam como o servo que ganhou cinco talentos e foi capaz de fazê-lo render outros cinco. E os pobres teriam sido retratados no servo que ganhou menos e acabou enterrando mesmo o pouco que recebeu. Assim, o evangelho se torna sacralização do capitalismo. Embora a tradução da CNBB comece a parábola no verso 14 com as palavras: “O reino dos céus é também como um homem....”, essa expressão “reino dos céus” não aparece na maioria das versões, embora possa se supor. A tradução do padre Alonso Schokel diz simplesmente: “é como um homem” e outras traduções: “será como....”. Certamente, Jesus nunca compararia Deus com o tipo de senhor ou patrão narrado nessa história. 

              Se olhamos o sistema econômico na linha da Economia de Francisco e Clara não podemos defender o patrão ambicioso. Temos de nos identificar, não com os dois escravos que serviram à ganância do senhor e sim com o servo que não aceitou entrar naquele jogo e simplesmente enterrou o dinheiro. O único modo de não nos identificarmos com o servo criticado como mau e preguiçoso pelo próprio evangelho é fazer uma leitura diferente. Se o tal servo criticado na parábola fosse da comunidade de Mateus, ao agir do jeito que agiu, teria simplesmente cumprido o que Jesus tinha ensinado. Afinal no discurso da montanha, Jesus disse: “Não acumulem riquezas aqui na terra, onde a traça e a ferrugem destroem e os ladrões assaltam e roubam” (Mt 6, 19). Ao rapaz rico, Jesus disse: “Se queres ser completo, vai, vende tudo o que tem, dá aos pobres e terás um tesouro no céu”. E quando, por apego à riqueza, o rapaz desiste de seguir Jesus, este diz aos discípulos: Em verdade vos digo: dificilmente, um rico entrará no Reino dos Céus. É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus” (Mt 19, 21- 24). 

Nas comunidades antigas falar de “servos” era referir-se aos ministros cristãos. Na história das dez moças, que Mateus conta antes dessa parábola, o evangelho insiste no dever de esperar vigilantes. Agora, nessa parábola, o evangelho propõe um passo a mais. Não basta só vigiar com o óleo nas lâmpadas. Além disso, é preciso trabalhar para fazer render a riqueza que Deus nos confiou. Se o reino não vem logo é para dar tempo a que façamos os valores do reino de Deus se multiplicarem.  
A parábola é sobre o rendimento do empenho dos servos aos quais o Senhor confiou a boa notícia do reino. A história não se detém sobre o valor ou significado dos talentos. O talento que Deus nos confiou foi o seu Evangelho, a fé e o testemunho do seu amor que devemos comunicar a toda humanidade. O contexto é como a parábola diz: “Após um longo tempo…”
Neste Dia mundial dos Pobres, o talento que Deus nos confia para cuidar são exatamente as próprias pessoas dos mais pobres. Quem faz os talentos renderem são os cristãos e cristãs inseridos nos movimentos sociais, nas comunidades pobres. O julgamento de Deus sobre quantos talentos cada servo vai devolver se concretiza no esforço que fazemos para que o mundo seja mais igualitário e as Igrejas colaborem para o reconhecimento da dignidade de todos os cidadãos  e cidadãs do nosso país e da Terra.

Marcelo Barros







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