por Manuel Domingos Neto
Há cerca de uma semana, eu comentei aqui sobre um debate no canal do IE/UFRJJ entre os professores Manuel Domingos Neto da UFF, com Eduardo Costa Pinto do IE/UFRJ sobre a conjuntura. Ambos estudam o movimento dos militares em torno do poder político no país.
O professor Manuel insiste, e eu concordo com ele, que Bolsonaro é instrumento do movimento do Partido Militar (veja aqui estudo de pesquisadores da Unesp que o blog republicou dia 16/04/20) para um projeto autoritário de poder de longo prazo para o Brasil, e que por isso, eles concordam na essência e divergem apenas na forma e nos detalhes.
Esse texto divulgado hoje tem uma dose de pessimismo, mas ele não trata de desejos como convém a pesquisadores, porque se busca a interpretação do fenômeno real.
O bolsonarismo, agora rompido com o lavajatismo vem se tornando um movimento resiliente. Perde uma parte da classe média, mas amplia a relação com o neopetecostalismo, que pode vir a receber mais vantagens, na medida em que o capitão fique mais isolado. O comando dos generais haitianos pode jogar Bolsonaro ao mar, mas antes ele teria que sofrer ainda mais desgastes.
O Mourão não diferirá dele na essência, quando seguirá buscará a retomada (lá de 64) de uma ideia de segurança nacional contra os adversários internos, quando a decisão era eliminá-los. Na atual conjuntura (26/04), quando não só o isolamento é crescente, mas a perda de bases para governar, na medida em que toda a energia está voltada para a guerra cultural que pensam estar implementando.
Vale conferir o texto que nos ajuda na busca para uma compreensão sobre o que está em curso.
Bolsonaro, duro na queda
Manuel Domingos Neto em 26.04.2020
Eduardo Costa Pinto logo intuiu que o apoio a Bolsonaro poderia não ser afetado imediatamente pela demissão espetaculosa de Moro.
A pesquisa da XP realizada entre os dias 23 e 24, divulgada neste sábado, dia 25, confirmou sua hipótese. Os que alimentam expectativa boa, ótima e regular sobre o governo somam 44% dos entrevistados. Os que têm expectativa ruim e péssima chegam a 49%. Tendo em vista o desemprego, a penúria reinante e os descalabros governamentais, é um desempenho extraordinário.
A pesquisa registra que 77% dos entrevistados disseram ter conhecimento da saída de Moro. Pode não ter decorrido ainda o tempo necessário para que a exploração do episódio mostre seus desdobramentos.
De toda forma, fica reafirmado: Bolsonaro corporifica politicamente expressiva tendência conservadora-radical de parcela numerosa da sociedade brasileira. É notável a ofensiva dos bolsonaristas atacando Moro nas redes sociais. A turma tem consciência do impacto negativo da saída de Moro (67% das respostas), mas não se abate.
O afastamento de Bolsonaro, por renúncia forçada ou impeachment, hoje, dependeria basicamente de iniciativas institucionais, ou seja, de investigações criminais, judiciais e legislativas, não da mobilização popular contra os desmandos governamentais.
As instituições não entram em lances decisivos sem forte respaldo da opinião pública e... sem amparo militar.
Importantes elementos da grande mídia perderam as ilusões sobre a capacidade de o atual governo responder aos dramáticos problemas sanitários, sociais e econômicos. Empenham-se agora no afastamento de Bolsonaro temendo a deterioração do quadro sócio-econômico. Refletem a inquietude dos homens do dinheiro.
Mas, quando suas denúncias lograrão calar fundo na consciência de muitos brasileiros e sensibilizar as corporações da força bruta ao ponto de respaldarem o afastamento do Presidente?
Bolsonaro tem ao seu lado o Partido Militar, por baixo, um contingente de um milhão de homens da ativa e da reserva em ativismo ininterrupto e frenético para “salvar o Brasil” do comunismo e reforçar seus proventos.
Uma debandada de generais do governo seria devastadora. A política ficaria entregue aos políticos, mas isso é improvável. Onde já se viu militares entregando cargos políticos sem fortes constrangimentos por parte da opinião pública?
Os generais persistem amparando Bolsonaro e há diversas explicações possíveis, sendo a primeira delas a dificuldade de abandono da cria. Muitos ainda não admitem ou fingem não admitir, mas o candidato e o presidente Bolsonaro foram obras castrenses. Não existiriam sem a vontade e a mobilização da caserna.
A tentativa de atenuar a responsabilidade das corporações é manifesta nas insistentes referências a uma “ala militar”.
Que “ala” é esta? Obviamente, não pode se resumir aos três generais que não arredam o pé da sala do capitão. (Heleno hoje parece ter pouco peso). Ramos, Braga e Fernando não ocupam postos tão relevantes por conta de exclusivos atributos pessoais. Atrás de cada um, há a teia de amparo, intrincada, profusa e capilar.
O que pretende, qual sua consistência, quem a comanda a tal “ala militar”? Quem quiser que acredite que tais homens representam a si mesmo.
A falácia da “ala militar” serve para atenuar a ideia de que o governo esteja sendo respaldado e conduzido por corporações. Permite também imaginar oficiais idealistas e articulados voluntariamente para lutar contra terraplanistas aloprados.
Apontar tal “ala” é também uma maneira de negar a estreita aproximação política e ideológica entre os múltiplos e variados condutores da máquina governamental. Em outras palavras, serve para negar o afinamento entre as cabeças governamentais.
Ora, uma das razões do “sucesso” de Bolsonaro é justamente a coesão de sua equipe. As quedas de Mandetta e de Moro, que tanto animam os opositores, decorreram de veleidades eleitorais, não de discordância de princípios políticos, éticos ou administrativos.
É bem provável que nos próximos dias o noticiário revele com fartura que Moro e Bolsonaro apresentam a mesma qualidade moral. Moro, menos vivaz, será duramente estigmatizado como transgressor da “omertà”.
Há, de fato, figuras no governo que, pelo exotismo de posturas e pela incapacidade administrativa incomodam os militares. Mas no plano da percepção do processo político em curso, não há contraditórios notáveis na equipe.
Predominam no conjunto a ojeriza à esquerda, o medo da China, o alinhamento automático a Washington, o conservadorismo nos costumes, o ódio ao sistema político representativo, a raiva e o pavor da transformação social favorecedora dos mais pobres, a vontade de destruir o que foi construído com base do pacto de 1988.
Exemplos notórios da comunhão espiritual entre militares e terraplanistas aloprados: o silêncio frente às agressões de Olavo de Carvalho, as contemporizações com os ministros da Educação e do Exterior, próceres da abominável destruição de políticas públicas estratégicas. Observemos a concentração de militares na Educação e na Ciência e Tecnoligia. Por que não reagem aos descalabros?
Bolsonaro é uma cria dos militares e seu governo representa a vontade das corporações politicamente ativas desde sempre, mas obedientes aos esquemas de aproximações progressivas e sustentadas, conforme explicou Mourão.
É intrigante que, até agora, a estreita associação entre o bolsonarismo e o partido militar não seja percebida pela “sociedade civil”. As tergiversações nesta matéria são lastreadas na falácia de que os militares persistem como o "lado” ajuizado ou racional do governo. Ora, não podem ter bom juízo os que escolheram o “Cavalão” como peça de apoio para retornar ao mando político e desenvolver tenebrosa agenda conservadora.
Analistas de todos os matizes, com razão, agitam-se acerca de supostas cisões entre os generais e o presidente. Há gente de esquerda, inclusive, torcendo discretamente para que isso ocorra. Alguns olham esperançosos para o vice-presidente. Um líder de esquerda disse até que o Brasil chegaria melhor em 2022 com o governo entregue ao general Mourão.
Iludida, aturdida e na defensiva, a oposição fala em governo de “salvação nacional”, em “frente ampla”... Se não consegue se entender minimamente, como a oposição lograria arrebatar o sentimento dos brasileiros?
A oposição sabe que não tem força e não pode pensar em levantar multidões. Evitando o combate de idéias no seio da população, os partidos voltam-se para práticas eleitorais carcomidas, mesmo sem a certeza de que o próximo pleito seja de fato assegurado.
Quanto à saída para a crise, sonha com a prevalência da tradição republicana: um grande acordo de cúpula que evite confrontos desestabilizadores de velhas estruturas. Um ponto indiscutível do acordo é o descarte definitivo de Lula.
O que pode fazer ruir o castelo de cartas que sustenta Bolsonaro, quem sabe, é a comoção decorrente da mortandade previsível pela incúria diante do avanço anunciado do covid-19.
Mas, comoções populares em si não conduzem necessariamente a mudanças políticas efetivas. Provocam explosões de fôlego curto, contidas pelo aparelho repressor do Estado, o mesmo que criou e sustenta Bolsonaro.
Para não concluir de forma demasiado amarga, lembraria que, como quase tudo na vida, farsas políticas têm duração incerta. A administração do mundo está em mudança acelerada e pode encurtar a trágica aventura do partido militar que leva o nome de “governo Bolsonaro”.
Como observou Héctor Saint-Pierre, esta aventura tem tudo para ser as Malvinas dos militares brasileiros.
https://www.robertomoraes.com.br/2020/04/bolsonaro-duro-na-queda-por-manuel.html
Gosto pelo poder mantém militares passivos a Bolsonaro, avalia cientista político
https://www.robertomoraes.com.br/2020/04/bolsonaro-duro-na-queda-por-manuel.html
Lu Sudré
Mesmo com a saída de Sérgio Moro do governo e criticas contundentes a Jair Bolsonaro (sem partido) em nível internacional, as relações entre os militares e o presidente não estremeceram. Essa é a análise João Roberto Martins Filho, cientista político e pesquisador referência no tema, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato.
O estudioso, que há décadas se dedica ao tema, entende que a passividade dos militares de alto escalão que integram o governo frente aos posicionamentos do capitão reformado esconde interesses pessoais.
“Do ponto de vista mais teórico, pensam que se perderem essa oportunidade, nunca mais vão poder participar do poder – como se isso fosse função de militar. Do ponto de vista dos interesses materiais, eles gostam de participar do poder. Não têm objetivo para o bem do país. E é essa participação no poder que faz com que eles não se afastem do governo. Não estou vendo nenhum indício de afastamento”, opina Martins Filho. A postura se estenderia também a militares de outros escalões que também trabalham na gestão.
Professor titular sênior da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), Martins Filho avalia que os militares não conseguiram atuar como pretendiam em quase um ano e meio de governo, reféns dos vaivéns do presidente.
“O maior objetivo deles seria controlar, tutelar, racionalizar um pouco o governo Bolsonaro. Ajudar o Bolsonaro a ser uma pessoa diferente da que ele é. Mas eles não conseguiram. O general que mais próximo estava de Bolsonaro e que mais alimentou ilusões de controlá-lo, foi o general Santos Cruz. O que aconteceu com ele? Foi demitido de forma vergonhosa”, afirma.
“O próprio presidente é uma fábrica de instabilidade. Está na cara que os militares não estão conseguindo melhorar Bolsonaro. Ele segue sendo aquilo que sempre foi. Nesse sentido, [a atuação dos militares] é um fracasso”, reitera o especialista.
Segundo Martins Filho, os flertes com regimes autoritários e anti-democráticos do presidente não encontra eco entre os militares, que preferem permanecer nos bastidores.
“Acho que eles preferiam que Bolsonaro fosse mais racional e pudessem ficar como eminência parda do governo. Não acredito que hoje, eles achariam uma boa alternativa um golpe de Estado e a instalação de uma ditadura militar, em um país complexo como o Brasil é”, pontua.
Apesar das políticas adotadas pelo presidente prejudicarem a imagem do Brasil internacionalmente, a cada crise, os militares aumentam sua participação no governo e, de acordo com o pesquisador, “não demonstram arrependimento”. Na opinião do especialista, há limites para o apoio militar a Bolsonaro, mas o gosto pelo poder faz com que esses limites sejam extremos.
“Parece que isso vai durar muito tempo. A não ser que haja uma eleição em 2022 que eleja um presidente com inegável legitimidade, com força para tirar o general do ministério da Defesa, e com força para mandar os 3 mil oficiais que estão no governo embora para casa.”
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: A saída de Moro causou a crise mais recente no governo de Jair Bolsonaro. A imprensa noticiou que, após as acusações de interferência na PF do ex-ministro, o presidente se reuniu com militares. Como avalia a reação dos militares à saída de Moro e postura do presidente nesse momento?
João Roberto Martins Filho: Ainda não está muito claro qual vai ser o grau de desgaste que o Bolsonaro vai ter com a demissão de Moro. Com relação aos militares, vamos entender o seguinte: entre os militares, temos o grupo que trabalha com o presidente do Palácio do Planalto, o General Heleno, desde sempre, mais recentemente o General Ramos, há menos de um ano. E agora o General Braga Netto. Esse grupo de generais é o núcleo duro, que está em contato cotidiano com o presidente, os chamados conselheiros do presidente.
Depois disso, temos um grande número de militares que vão desde ministros até cargos de quarto escalão. Uma coisa entre 2.500 e 3 mil militares. Pessoas que dependem do emprego, de certa maneira e não querem perdê-lo. É um complemento do salário deles.
O primeiro grupo que eu falei, é o grupo que tem influência política, está próximo do poder, tem o prazer de participar do poder. E tem um grupo, uma área inteira sobre a qual é meio difícil relatar o que está acontecendo, que não são autoridades e nem pessoas que conseguiram emprego no governo, são os militares da ativa. Quem fala por eles é o alto comando do Exército, que conversa com o ministro da Defesa. [Atualmente, o general Fernando Azevedo e Silva ocupa o cargo].
O ministro da Defesa não deveria ser um general, não foi pra isso que foi criado. Mas desde o governo Temer, é um general. Esse grupo da ativa, quando estava no poder a Dilma e o Lula, pessoas como Heleno desrespeitaram a Legislação e falaram. Mas qualquer general da ativa não pode falar, a não ser que ele peça permissão para o superior.
Esse grupo da ativa não sabemos muito bem o que estão pensando, mas vou arriscar: Acho que os militares que aparecem do lado do Bolsonaro, tem extrema dificuldade para sair do governo, mesmo com a demissão de uma personalidade que eles admiram tanto como o Moro. Porque eles voltaram o destino e a vida deles ao governo Bolsonaro.
Do ponto de vista mais teórico, pensam que se perderem essa oportunidade, nunca mais vão poder participar do poder – como se isso fosse função de militar. Do ponto de vista dos interesses materiais, eles gostam de participar do poder. Não tem objetivo pro bem do país, seria a participação no poder. Essa participação no poder faz com que eles não se afastem do governo. Não estou vendo nenhum indício de afastamento do governo.
Isso significa que não podemos enxergar os militares como um grupo único? Existem meandros entre eles?
Vejo um apoio muito grande a Bolsonaro, como se fosse uma tábua de salvação contra a centro-esquerda.
Hoje em dia não podemos falar que existe um grupo militar que é democrata, um grupo militar de centro-esquerda, o que seria legítimo. Apesar da disciplina e da hierarquia, os militares pessoalmente podem ter opiniões políticas.
Mas, divisões ideológicas eu não vejo. O que vejo é: Tem muita gente que está no governo porque tem um emprego bom lá e são milhares de oficiais. Outros estão lá porque estão participando do poder no primeiro escalão. E esses dois grupos têm interesses pessoais nas coisas, embora digam que é pro bem da pátria.
O outro grupo maior, que são os oficiais da ativa, que aí são 200 mil soldados e oficiais, temo dizer que essas pessoas também são muito bolsonaristas. Mesmo porque participaram ativamente na campanha. Até hoje. pode ser que amanhã veja alguma possibilidade de discordância, mas hoje, 28 de abril de 2020, não vejo essa discordância.
No dia seguinte às denúncias de Moro, a coluna da Mônica Bergamo, daFolha, afirmou que militares estão acusando Moro de traição. É uma demonstração desse processo de alinhamento com o governo?
Isso só confirma, o que é um absurdo completo. Veja ao ponto em que vai a lealdade a Bolsonaro. Vai ao ponto de rejeitar o Moro. Ainda que, se não der certo o governo Bolsonaro, eles vão tentar, acho, participar de um eventual governo Moro. O Moro como uma alternativa da direita.
Agora é realmente difícil de entender de onde vem tanta lealdade, como também é difícil entender que 30% do eleitorado que não abre mão, de jeito nenhum, da fidelidade ao Bolsonaro. Como Trump nos Estados Unidos, como o Berlusconi na Itália.
Estamos chegando ao 17° mês de governo. Qual papel os militares, da ativa e da reserva, têm desempenhado desde então?
Dei uma entrevista para o Valor Econômico que foi publicada no dia da posse, onde eu fiz uma previsão. Podia ter errado completamente essa previsão. A previsão que eu fazia era que os militares deveriam se ater a questões técnicas do governo, principalmente na infraestrutura, que o Moro tinha condições de se dar muito bem como ministro da Justiça – essa eu errei. E que quanto mais os militares entrassem na política, mais encontrariam dificuldade que fazem parte do campo político.
O campo político é o campo da imprevisibilidade, do uso de recursos, qualquer que sejam, para se manter no poder. Tem autores da ciência política, começando com Maquiável, passando por Weber, Carl Schmitt, que mostram que a política tem regras próprias.
Quando se está no poder, é comum até deixar um amigo no sereno porque você não quer se molhar, se isso for ameaçar seu poder. O campo da política é o campo do conflito, do uso de meios, muitas vezes não éticos, para se manter no poder. Tanto é que o Maquiável, em uma das coisas que ele é mais atual, há 500 anos ele é atual, é que falava que ‘se quiserem que a política seja a busca do bem, vão ficar felizes mas não é a política do jeito que ela é feita. A política, do jeito que é feita, se usa qualquer recurso pra se manter no poder.’
Nesse sentido, respondendo sua pergunta, eu diria que eles se deram mal. O maior objetivo deles seria controlar, tutelar, racionalizar um pouco o governo Bolsonaro. Ajudar o Bolsonaro a ser uma pessoa diferente da que ele é. Mas eles não conseguiram. O Bolsonaro sempre foi a mesma coisa, continua sendo e vai ser no futuro.
O general que mais próximo estava de Bolsonaro e que mais alimentou ilusões de controlá-lo, foi o general Santos Cruz. O que aconteceu com ele? Foi demitido de forma vergonhosa.
Então acho que nesse sentido, se o objetivo dos militares era garantir a estabilidade ao poder com Bolsonaro… O que o governo Bolsonaro tem é a fidelidade dos eleitores. Mas, qual o sucesso que esse governo tem? Qual é a racionalidade que esse governo tem?
O próprio presidente é uma fábrica de instabilidade. Hoje ele está calmo, mas enquanto estamos fazendo essa entrevista ele já pode ter feito uma besteira tremenda, demitido alguém.
Está na cara que os militares não estão conseguindo melhorar os Bolsonaro. Ele segue sendo aquilo que sempre foi. Nesse sentido, é um fracasso.
Quer dizer que os militares não têm tanto peso quanto previam?
Não, não tem tanto peso. Ele é uma personalidade intratável. Ele faz umdiscurso, como fez na ONU. Prepara o discurso a semana inteira, quem falou isso foi a Thais Oyama no livro dela sobre Bolsonaro, depois o Heleno vai no Palácio da Alvorada, eles reveem o discurso no sábado. Chega na segunda-feira, quando o Heleno está lá sentado, ele faz um discurso que o Heleno não conhecia.
O discurso que ele fez na ONU é o discurso mais esdrúxulo que algum chefe de estado fez na ONU na história. Ele fez outro discurso. Talvez com os filhos dele, com o chanceler Araújo, aquele bando de maluco.
Então, se você trabalha com uma pessoa que te apresenta um discurso no papel e na hora H faz outro discurso, alguma coisa está errada em sua influência junto a ele. Pessoalmente, se eu tivesse a expectativa de tutelar alguém, ser tutor de alguém, essa pessoa fizesse tudo o oposto, eu ia embora, ia fazer outra coisa. Mas não, o pessoal não sai de lá. Deve ser muito bom o poder…
Aproveitando que o senhor citou o Santos Cruz, qual são os militares que hoje estão mais próximos de Bolsonaro?
Quem está um pouco de lado é o Heleno, ele que era uma personalidade chave junto com Santos Cruz. O Santos Cruz foi demitido. Mas dois generais da ativa, o que é atípico porque tiveram que pedir licença do Exército porque pertencem ao alto comando do exército, estão licenciados. Não são da reserva, voltariam pro alto comando se saíssem do governo, são o general Ramos e o general Braga Netto.
Eles são os conselheiros do Rei, são muito próximos. Como, por exemplo, Thomas More era conselheiro de Henrique VIII. Só que não tem comparação. Nem Bolsonaro é o Henrique VIII e nem o general Braga Netto é o Thomas More.
E no caso dos setores da reserva? O Clube Militar, por exemplo?
O Clube Militar é completamente fechado com Bolsonaro. Ficou um pouco estressado com a demissão do Santos Cruz, porque ele tem uma carreira militar absolutamente fora da média. Chegou até comandar tropas no Congo em situação de guerra. Mas, os da reserva, estão achando uma maravilha.
Estando na reserva, às vezes com 50 anos, um trem da alegria desce com 3 mil empregos? Como vai fazer o próximo governo civil para demitir, logo de cara, 3 mil militares? A situação está muito incerta. São muitos interesses. Desde o interesse de participar do poder, o interesse mais alto sob o pretexto de ajudar o país, até o interesse em manter o emprego.
O outro interesse, que seria do alto comando, é não puxar o tapete de Bolsonaro, por mais que possam achar que alguma coisa ou outra está errada. E não entrar em conflito com o presidente, que é totalmente imprevisível.
Mas acho que se houvesse uma resistência dos militares ao que Bolsonaro faz, ele recuaria. Mas não há essa resistência. Eles sabem que ele pode demitir. Ele fala que tem a caneta e tem mesmo. Até aqui, a relação entre miliares e Bolsonaro sobrevive.
Quais seriam esses empregos militares no governo?
Vai desde primeiro escalão, até secretários de ministros, diretorias dentro dos ministérios, secretarias. Não existe, que eu saiba, um levantamento. É tanto oficial… Aparentemente os militares são preparados para fazer qualquer coisa. Porque em qualquer coisa estão envolvidos.
Eles deviam pensar até o seguinte: Daqui a pouco os civis vão começar a achar que eles também podem fazer funções militares, já que todo mundo pode fazer tudo. Então, por exemplo, um civil pode falar que gostaria de comandar uma fragata. ‘Não, você não pode comandar uma fragata. Uma fragata exige décadas de experiência.’ Mas então por que um militar pode ter influência no Ministério da Saúde? Devia ser um médico.
Agora, quando tem entrevista do Ministério da Saúde, porque quase não tem mais entrevista, quando tem, sempre tem dois ou três militares do lado. Qual o objetivo desses três generais estarem ali. Eles entendem de saúde?
Estava muito melhor antes. Tinha um médico e pessoas altamente preparadas dentro do Ministério da Saúde, que cá entre nós, merece elogios. Sobreviveu até ao Bolsonaro. Se os militares sabem fazer tudo, então acaba-se desconfiando de que quem sabe fazer tudo não sabe fazer nada.
E em relação às baixas patentes? Há possibilidade de mobilização contra Bolsonaro?
Não acredito. Eles já engoliram a reestruturação de carreira que beneficiou os altos escalões das Forças Armadas. Esse pessoal é bolsonarista também.
Como tem avaliado a postura dos militares durante a covid-19? No início do mês, circulou um documento do Centro de Estudos Estratégicos do Exército recomendando isolamento total dos brasileiros que formam o grupo de risco e apoio econômico a empresas e cidadãos durante a pandemia, enquanto Bolsonaro tem defendido o isolamento vertical. É mais uma prova de que o acúmulo do Exército não tem peso para o Bolsonaro ou esse centro não tem relação com o governo em si?
É um centro que deveria produzir análises estratégicas para o Exército. Mas imediatamente eles retiraram do site. Eu recebi esse documento, mas se você voltar no site não está mais lá. Ou seja: Eles não querem contrariar o Bolsonaro.
O comandante do Exército, que era considerado antes desse imbróglio todo, um homem que tinha pouca propensão para participar da política, fez um vídeo dizendo que o combate à covid-19 é a guerra da geração dele. Não temos nada contra os militares participarem de um combate a uma pandemia. Isso qualquer militar do mundo faz. Só que não é essa a questão.
A questão é que temos um presidente propondo coisas que praticamente significam a morte, e um monte de general do lado sem falar nada. O que um estrangeiro acharia se chegasse no Brasil e olhasse para a televisão? Esses militares estão com ele, concordam com ele, não acham que está fazendo nada errado.
Por isso que ficam tão afoitos para vazar para colunistas de jornal, que discordam disso ou daquilo. Se eles falam que o Bolsonaro é um democrata… Qualquer criança de 7 anos que o Bolsonaro não é um democrata. É um inimigo da democracia. Eles concordam com isso? É tudo um pouco estranho.
É um flerte contínuo com o autoritarismo?
Na parte do Bolsonaro, sim. Da parte dos militares é um pouco mais complicado. Eles querem participar do poder. Acham que foram afastados do poder desde 1985 de uma forma que não foram usados em sua capacidade para ajudar na defesa do país, mas, com certeza como estão demonstrando agora, preferem ficar nos bastidores. O Bolsonaro que expõe eles o tempo todo, traz eles para a berlinda.
Mas acho que eles preferiam que Bolsonaro fosse mais racional e pudessem ficar como eminência parda do governo. Não acredito que hoje, eles achariam uma boa alternativa um golpe de Estado e a instalação de uma ditadura militar, em um país complexo como o Brasil é, sem o apoio da imprensa, sem o apoio do Judiciário, do Legislativo, de parte da população, de todos os partidos políticos.
Há um arrependimento por parte deles de terem voltado à política?
Não. Nenhum arrependimento. E por outro lado, parece que isso vai durar muito tempo. A não ser que haja uma eleição em 2022 que eleja um presidente com inegável legitimidade, com força para tirar o general do ministério da Defesa, e com força para mandar os 3 mil oficiais que estão no governo embora para casa.
Mas ninguém está vendo isso. Estamos em um momento de desarticulação. O que temos hoje em dia, mais do que esperança, é preocupação.
Apesar da popularidade de Bolsonaro, ele foi alvo de panelaços e muito criticado pela demissão do Mandetta. Os militares, nessa situação, ao se omitirem eles estão bancando e se posicionando enquanto governo também?
Para você ter uma ideia, quando se aproximou o primeiro ano do governo, comecei a guardar link de matérias do exterior com críticas ao governo Bolsonaro. Depois de cem dias, tinha juntado cem links. Cem matérias negativas em um espaço de cem dias. Não era para os militares, enquanto uma parte importante do Estado brasileiro se preocupar com o imenso desprestígio que o Brasil tem no exterior hoje em dia?
A imagem que o Brasil tem hoje no exterior é uma coisa péssima. Esse desgaste vai afetar quem está no centro do poder. Se os militares estão no centro do poder e o governo não dá certo, evidente que afetará aos militares também. Eles se comprometeram de tal forma, que estão se vendo em um mato sem cachorro. Não tem o que fazer. Cada vez que fazem, fogem para frente e se envolvem mais com o governo. É essa a dinâmica até agora.
Mas em questões econômicas, por exemplo, há descompassos que podem crescer com o tempo? Propostas de Braga Netto e Paulo Guedes, por exemplo.
Claro. Houve desencontro. Os militares conseguiram tanto poder recentemente, mas esse poder é instável e incerto, que começaram a achar que iriam propor um plano econômico pro país. Esqueceram de avisar o Guedes.
Agora, o governo depois de ser pressionado pelos donos do poder, pelo capital financeiro, pelo agronegócio, pelo capital industrial e o comércio, que são poucas pessoas, na verdade, ele foi obrigado a reconhecer que quem manda é o Guedes. Mas é óbvio né. O programa do general Braga Netto foi feito de improviso. Ficou com a marca que seria uma espécie de PAC (Programa de Aceleração de Crescimento) do governo Bolsonaro, que é o que abominavam, criticavam o PAC o tempo todo.
Há um limite para a ala militar? Caso o barco de Bolsonaro afunde, afundarão junto?
Deve haver um limite. Por exemplo, se a China corta o comércio com o Brasil em 1% já é um desastre. Ou se o Bolsonaro fica completamente isolado porque Trump perde a eleição nos EUA, a economia começa a caminhar para uma crise muito forte, se a pandemia se transforma em catástrofe. Deve haver algum limite. Mas são limites extremos.
Militares são preparados para enfrentar o povo, não inimigos externos, diz especialista
O escritor Manuel Domingues Neto afirma que há um erro de conceito nas Forças Armadas brasileiras e que elas são treinadas para combater o povo, não o inimigo. Ela inda diz: "quando tudo isso passar, o débito das Forças Armadas em relação à sociedade será elevadíssimo”
Do Brasil de Fato - Nestes tempos em que a presença militar ganha corpo nos mais diferentes compartimentos da política brasileira, é da memória e da história que o escritor Manuel Domingos Neto tira as considerações para entender o cenário do país e refletir sobre o que bate à porta. Nesta semana em que se rememoram os 56 anos do golpe militar de 1964, que se anunciou em 1º de abril daquele ano, o historiador conversou com o Brasil de Fato a respeito dos principais temas que hoje sacodem a política nacional à luz do avanço das Forças Armadas sobre os espaços de comando e poder.
Tendo atuado na organização de esquerda Ação Popular durante a ditadura, Domingos Neto é ex-preso político e militante de envergadura histórica, além de ex-deputado federal pelo Piauí e professor aposentado pelo curso de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF). É desses substratos que partem suas análises sobre o risco imposto pela atual e ostensiva presença da ala militar no xadrez da política brasileira. “Quando tudo isso passar, o débito das Forças Armadas em relação à sociedade será elevadíssimo”, exclama o professor, quando tenta associar as lições do passado com as projeções sobre o temido futuro.
A relação entre o ministro Sérgio Moro e os fardados do poder, bem como a radicalização dos militares com a pauta dos costumes, o isolamento político do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), o “caos” e a “imprevisibilidade” anunciada pelo contexto nacional também são pontos de reflexão de Domingos Neto.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista:
Brasil de Fato: Em comparação a outros países da América Latina, como o Chile e a Argentina, onde torturadores foram punidos e o povo tem mais sensibilidade às vidas ceifadas pelos militares, no caso brasileiro, isso não acontece. Ao contrário, Ustra é exaltado por Bolsonaro, parlamentares, e parte da nação. Nos últimos dias, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, seguiu a interpretação do governo em relação ao golpe, e declarou que ele foi um "marco para a democracia brasileira". Isso lhe surpreende?
Manuel Domingos Neto: Como nós sabemos, a ditadura acabou através de um pacto. Esse pacto incluía a anistia e, portanto, incluiu a liberdade dos torturadores. Foi o pacto possível e, a partir de então, nós vivemos persistentemente um problema não resolvido. Os crimes de lesa-humanidade configurados na tortura e praticados pelos agentes do Estado não poderiam ser esquecidos ou se passar um pano em cima e acabou-se. Isso persistiu o tempo todo, tensionando, sendo, inclusive, uma das causas da animação dos militares pra retirar a esquerda de cena, porque eu acho que, no auge da legitimidade dos governos Lula, deveria ter sido feita alguma coisa. Não foi feito.
Estava muito vivo, nessas circunstâncias, o desgaste profundo dos militares e se tentou pôr panos quentes até na Comissão da Verdade, já no governo Dilma Roussef (PT), aí o incômodo foi terrível porque, durante todo esse período de democratização ou de democracia, a formação dos militares, a cabeça dos militares, as suas narrativas não foram mexidas, não foram tocadas. No máximo, eles silenciaram, ficaram, digamos, hibernando, e surgem, com o reacionarismo gritante apenas nos últimos anos.
Agora, eu não acredito que o retorno dos militares como agentes políticos, como protagonistas da cena política se deva apenas a isso. Acho que isso merece uma análise bem mais complicada porque entram outros fatores. Mas, sem duvida, o fato de não ter havido uma prestação de contas, esses panos quentes em cima da tortura contribuíram pra ferocidade com a qual eles retornam agora, paranifando um regime infame.
No dia de hoje, nós temos essa ordem do dia do ministro da Defesa, que é repugnante sob todos os aspectos. Ela é mentirosa, é falsa, desrespeitosa com os brasileiros, é desrespeitosa com a inteligência do homem comum. Não é preciso ser genial pra entender que essa ordem do ministro Fernando é um acinte. Como é que o sujeito assina um papel dizendo “instalamos uma ditadura pra defender a democracia”? Isso é ridículo, não tem fundamento, não tem cabimento.
Por que parte do povo brasileiro ainda nega a ditadura?
Ao longo de décadas, o reacionarismo inerente à sociedade brasileira foi alimentado de diversas formas. Algumas das mais evidentes foi o ativismo político dos neopentecostais, bombardeados e senhores da comunicação com a grande massa, mídias, as emissoras de rádio em qualquer canto do Brasil. Você constata uma predominância que atenta contra a democracia. Enfim, é um domínio acentuado desse ativismo sob a capa de pregação religiosa.
Agora, do ponto de vista estritamente militar, ao longo de todo esse período, as escolas militares estabeleceram, replicaram, insistiram, sofisticaram a narrativa do militar em defesa do Brasil, tomando o Brasil não obviamente como povo brasileiro. A narrativa era de salvadores da pátria, negando tudo o que está escrito na lei, na Constituição e o que foi vivido objetivamente pela historia do Brasil. Eu diria que, nestes anos de democracia, os militares viveram profundamente o grande dilema de sua existência de mais de 200 anos, que é [o fato de que eles] não sabiam se queriam ser policias ou se seriam força de defesa do Brasil. Acho que hoje predomina a primeira hipótese, a índole policial.
Eu diria que, nestes anos de democracia, os militares viveram profundamente o grande dilema de sua existência de mais de 200 anos, que é [o fato de que eles] não sabiam se queriam ser policias ou se seriam força de defesa do Brasil. Acho que hoje predomina a primeira hipótese, a índole policial.
Os meus colegas que estudaram as Forças Armadas estabeleceram outro dilema, também legítimo, que é se as Forças Armadas (FA) queriam ser políticas ou militares. Eu respeito essa interpretação, acho importante essa análise, mas, no meu trabalho, saliento muito mais essa história do dilema entre ser policial, ou seja, se preparar pra condicionar o cidadão brasileiro, ou militar pra enfrentar ameaça externa. As FA se prepararam pra enfrentar o povo brasileiro e não se prepararam pra enfrentar inimigos externos.
Como foi o comportamento militar no período petista? E o que representou a autorização do uso das Forças Armadas no Rio de Janeiro por Michel Temer, em 2017?
Eu, como tantos colegas que estudam os militares, ficamos atordoados. Nós nos enganamos, nós criamos ilusões, nós tivemos intenso convívio e debate com os próprios militares nesses anos todos. Formulamos, discutimos grandes programas estratégicos que foram transformados em estratégias e planos nacionais de defesa, programas estratégicos. E nós, eu, da minha parte, acreditei que haveria... O próprio Villas Boas inúmeras vezes repetia ‘foi muito ruim pras FA a experiência de governo’. Ele não chamava de ditadura militar. As FA sofriam com o regime como corporação. E, nessa conversa, a gente acredita que os militares tinham assimilado profundamente a necessidade de deixarem a política pros políticos, e não se envolverem na política, até porque o político armado estabelece uma relação absolutamente desonesta e covarde. Como é que eu vou agir politicamente se estou armado com a arma que tu me pagaste? Como é que você me paga pra me formar, me mantém, me dá as armas e eu vou discutir com você na política? Isso não tem cabimento, é a corrupção mais profunda que pode haver da ideia de democracia.
Como é que eu vou agir politicamente se estou armado com a arma que tu me pagaste? Como é que você me paga pra me formar, me mantém, me dá as armas e eu vou discutir com você na política? Isso não tem cabimento, é a corrupção mais profunda que pode haver da ideia de democracia.
Então, nós, falando com toda franqueza, houve muita ilusão... Eu não tenho, não tinha ilusão acerca do pensamento conservador dos militares. Isso estava nítido. É muito difícil você identificar, nesses últimos anos, um núcleo mais avançado. Do ponto de vista de apoiar o progresso social, isso não houve. Agora, nós não poderíamos imaginar que eles chegassem a ponto de paraninfar um governo de terraplanistas, de endossar um elemento selvagem como este presidente da República. Nós não imaginávamos que os militares fossem dar sustentação a alguém que torna o Brasil uma entidade estranha, exótica e abominável no mundo todo. Quem gosta do Brasil, efetivamente, pode apoiar tal coisa? Eu imaginei que os militares gostassem mais do Brasil e não chegassem a tanto, mas chegaram. A surpresa veio a partir de 2016, com o impeachment e, posteriormente, com as eleições. Quando eu vi militares da ativa e da reserva se engajando ativamente na eleição do Bolsonaro, fiquei atordoado.
Enfim, a repressão interna nas FA, a postura, o pensamento, a mentalidade ultraconservadora grassou exatamente no período democrático. É o que nós chamamos de a permissão de autonomia. O Estado concedeu uma autonomia exagerada às FA. As FA não concebem que o seu financiador, ou seja, a sociedade brasileira, dê qualquer pitaco acerca dos seus assuntos internos. Deu do no que deu. Estamos aí nessa situação catastrófica.
Eu não acho que os militares quisessem o Bolsonaro efetivamente. Me parece que eles entraram nessa como alternativa possível, alternativa única para derrotar e alijar a esquerda. Hoje eles estão absolutamente fechados na ideia de que Bolsonaro não é bom, é inconveniente. Bolsonaro é difícil, indomável, mas o pior dos mundos é o retorno da esquerda. Essa é, do meu ponto de vista, a razão pela qual eles continuam cada vez mais se afundando nessa crise descomunal. Se os militares têm muitas contas a prestar na história do Brasil, se mataram muitos brasileiros desde Canudos ou antes disso, se têm uma lista de coisas abomináveis sobre as quais silenciam ou negam ou mentem e constroem uma historia apenas pra enaltecimento da própria instituição, agora a coisa chegou a um exagero extremado. Nós estamos mergulhados numa crise sem a mínima noção de como vamos sair dela. E de uma coisa eu tenho convicção: no frigir dos ovos, quando tudo passar, o débito das FA em relação à sociedade brasileira será elevadíssimo.
O que foi a chegada de Bolsonaro ao poder, com a formação de um partido militar, a volta do discurso de defesa da pátria, a destruição do aparato estatal e sua reconfiguração como Estado autoritário? O que isso representa? Quais as diferenças para o regime militar de 1964?
Óbvio que o mundo de hoje é completamente distinto dos anos 60 e 70. Hoje a gente ainda tem um Congresso funcionando. Nós temos um Supremo. Eu diria ‘funcionando’ entre aspas porque tanto o Congresso quando o Supremo já têm razões acumuladas pra um impeachment, pro afastamento sumário do presidente, porque ele faz a coisa de forma muito grave, ele desrespeita a lei, comete crimes de responsabilidade a rodo. Portanto, quando a gente diz que a Justiça e as instituições estão funcionando, elas estão funcionando de uma forma que não interessa tanto à sociedade. Mas nós temos hoje uma sociedade radicalizada no sentido de que há um percentual pequeno que apoia Bolsonaro, que quer a intervenção militar, o fechamento do regime. É pequeno, mas é muito ativo e, nos meios atuais, essa minoria tem uma capacidade de influência muito maior do que teria no passado.
Me parece também que o que nós estamos vivendo é o reflexo de uma situação internacional. Existe hoje uma mudança de ordem em curso, e não há exemplo na historia de mudança de ordem mundial que não seja sangrenta. Na ultima, foram dezenas de milhões de mortos, que foi a Segunda Guerra Mundial, que inaugurou a hegemonia norte-americana, mas sobra pouca dúvida de que os Estados Unidos chegarão ao fim. Há pouco tempo, o George Bush estava propugnando aí a unipolaridade, querendo organizar o mundo segundo a vontade única dos Estados Unidos. Isso não durou muito tempo porque teve desafiante do ponto de vista militar, sobretudo. Teve a Rússia, que soube se defender quebrando o bloqueio da Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte], e teve sobretudo a ascensão chinesa. O capitalismo chinês, classifique ele como você quiser, é o fenômeno mais importante. Não há quem negue o fato de que os EUA são potência descendente e a China uma potência em ascenso. E, também, com um domínio tecnológico cada vez mais sofisticado, ela ganha a competição e haveria que barrar a possibilidade de ascensão chinesa, sobretudo assegurar o domínio da América Latina. Era impensável pros EUA perder esse domínio.
Os governos progressistas criaram coisas insuportáveis pros EUA. O Celso Amorim [ex-ministro da Defesa e das Relações Exteriores], um craque em política internacional, criou coisas alvissareiras – obviamente, ao lado de outros, como o Samuel Pinheiro Guimarães, o Marco Aurélio, sob a direção de Lula. Eles deram passos efetivos de integração sul-americana e de presença na África. O Brasil começou a jogar pra valer na semi-internacional... Ora, o que nós vemos agora é um troco. O Brasil jogou um grande papel e era preciso destruir esse papel. O que o Bolsonaro representa é isso.
Como o senhor percebe o alinhamento das forças militares com membros da Lava Jato, a partir da figura do ministro Sérgio Moro?
Óbvio que há um planejamento estratégico. Nós vivemos um novo tipo de disputa, que alguns chamam de guerra hibrida e no qual o aparelho judicial tem uma função muito relevante. E ele foi a grande peça. Os militares adoram Sérgio Moro pela cara de moralista. Não importa se ele destruiu a engenharia brasileira, se foi um juiz que atuou sempre ao arrepio da lei, um sujeito que vai prestar contas com a história, que tem um débito pesado. Acho que o destino dele não será bonito, mas ele é uma figura endeusada pelos militares. No discurso em que o general Villas Boas entregou o comando do Exército [em janeiro de 2019], ele exaltou o Moro. Com toda a manipulação que ele fez da lei, com todas as suas arbitrariedades, jogadas espúrias, com toda a sua articulação com o Pentágono e com a CIA, ele persiste sendo considerado o grande homem e ainda está bem cotado naquela lista dos políticos. Está em situação até melhor que a do próprio presidente. Sergio Moro é peça-chave, inclusive pra um eventual fechamento de regime. Sua figura pode servir muito bem pra um regime futuro aí de repressão.
A ligação de Bolsonaro com as milícias seria de conhecimento das Forças Armadas? Há uma negação dos militares em relação a esse tema?
Os militares conhecem mais do que ninguém as vinculações do Bolsonaro com as milícias, que não são coisa recente. É uma coisa muito antiga, muito consolidada a partir de sua base eleitoral no Rio de Janeiro. É muito estranho que as FA não tomem isso como uma ameaça ao monopólio da força porque, pela lei, deveriam zelar. Pela lei e pela lógica. São organizações fora da lei, são paramilitares, profundamente envolvidas com tudo que não presta, e estão intactas.
Existe um grupo radicalizado que ainda acredita no chamado “marxismo cultural”. Na sua opinião, um retorno da esquerda ao poder poderia ser barrado por interferência das Forças Armadas?
Olha, eu acho que o neoconservadorismo é dominante junto com essas teorias todas. Os militares são racionais, estão na ponta de muitas áreas do conhecimento científico, mas, quanto à percepção social, eles são rasteiros. Eles não estudaram a história do Brasil e construíram uma história digna de si. Uma coisa fácil de verificar são as interpretações que eles dão aos acontecimentos, aos processos ao longo dos últimos 200 anos ou até mais, já que remontam seu nascimento à Batalha dos Guararapes, no Século XVII.
Eles são profundamente reacionários, e esse reacionarismo precisa se exprimir de uma forma reconhecível, aí entra essa grande palhaçada do “marxismo cultural”. Não havendo outra interpretação plausível, absorvem essa. Os militares são sensibilizados também pela pauta dos costumes. Eles radicalizam nessa matéria, acham que é traição ao Brasil essa política de inclusão a partir das discriminações raciais. O Brasil é tipo como se quisessem preservar o que nos sobrou da sociedade colonial – exclusão dos negros, dos pobres, dos sem-terra, dos índios.
Hoje, com a pandemia do novo coronavírus, vemos um alinhamento ainda maior do Brasil com os Estrados Unidos, até mesmo no sentido de negar a gravidade da covid-19. Fala-se que o presidente Bolsonaro estaria isolado, pelo Congresso, pelo Supremo, com força apenas no empresariado e na base radicalizada. Tem-se um ambiente perfeito para a militarização da política. Você concorda? Hoje Bolsonaro teria poder para um novo golpe militar?
Olha, eu não sei falar com segurança acerca disso. Li muito sobre os militares, mas eles me surpreendem muito. Não sei o que serão. Um homem como Villa Bôas, por exemplo, foi uma completa surpresa pra mim. Eu não sei o que eles vão fazer. Posso dar minha sensação, que é de que eles usaram Bolsonaro porque não havia outra opção, era o que estava disponível, e logo em seguida souberam que Bolsonaro era indomável, mas apostaram assim mesmo. Alguns oficiais mais experientes, como o Almirante Flores, meses antes das eleições, depois de reuniões e tudo mais com o almirantado, concluíram “esse não vai ser enquadrado, ele não é razoável”. Mas outros continuaram com a brincadeira.
Logo no começo do governo, eu cheguei a pensar que o ataque à honra militar foi tão profundo que seria insuportável e que haveria um descarte de Bolsonaro, mas eles aguentaram. Hoje eu não sei, não saberia dizer e acho que ninguém saberia, em que ponto as Forças Armadas controlam o imenso aparato de segurança do Brasil diante de uma previsível situação de caos. Nós estamos caminhando para o caos, e ele não será controlado pelas poucas centenas de integrantes das Forças Armadas. E, mais ainda, havendo desobediência de polícias militares, a situação ficará imprevisível.
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