sexta-feira, 17 de abril de 2020

NO CORAÇÃO DO POETA CABE A MULTIDÃO DE UMA PRAÇA REPLETA


capa do primeiro LP solo de Moraes Moreira

ABILIO NETO

CIDADÃO, de Moraes Moreira e José Carlos Capinam – LP Cidadão de 1991 

Na mão do poeta
O sol se levanta
E a lua se deita
Na côncava praça
Aponta o poente
O apronte o levante
Crescente da massa

Aos pés do poeta
A raça descansa
De olho na festa
E o céu abençoa
Essa fé tão profana
Oh! Minha gente baiana
Goza mesmo que doa
Abolição
No coração do poeta
Cabe a multidão
Quem sabe essa praça repleta
Navio negreiro já era
Agora quem manda é a galera
Nessa cidade nação
Cidadão
Abolição


A morte repentina do muito talentoso Moraes Moreira foi para seus fãs como aquele trecho da letra que o poeta cearense Fausto Nilo pôs em uma de suas músicas mais preciosas: “a nossa dor balança o chão da praça”.  

Muito se poderia dizer de Moraes Moreira, poeta, músico (sanfoneiro e violonista), compositor, cordelista, “criador e criatura, um documento da raça pela graça da mistura”, mas a sua obra fala por si. A gloriosa geração da década de 40 do século passado começou a partir já faz algum tempo. Essa baixa de 13/04/2020 é muito, muito sentida porque Moraes era a alegria e o suingue em pessoa. Quando se fala em artista do povo, ele será sempre um dos nossos maiores representantes. É por isso que essa perda é tão dolorida. 

O último show dele foi testemunhado por um amigo: o fotógrafo Evandro Teixeira, um dos mais importantes nomes da história do fotojornalismo brasileiro, que fez o registro da sua apresentação no dia 13 de março de 2020, no Clube Manouche, no Jardim Botânico, um dia antes do músico entrar em quarentena. As imagens do show mostram um músico vibrante da mesma forma como se consagrou com os Novos Baianos e na brilhante carreira solo seguida posteriormente. 

“Ele me ligou e disse que ia fazer o show, e eu falei: eu vou lá, mas vou entrar em confinamento também. E ele: É o último dia, vamos lá”, contou Evandro, emocionado. 

Quando o artista é maior do que qualquer texto escrito sobre ele, o importante é valorizar sua obra e deixar que ela fale por si só a fim de que não pereça no esquecimento após sua morte. Estamos num momento difícil em termos de política e cultura. Observei algumas ‘lives’ milionárias de artistas sertanejos nessa quarentena forçada pela covid-19 para constatar que são um retrato impressionante do funeral da verdadeira cultura musical brasileira. 

Então, sem muitas palavras, até porque sem condições de escrevê-las, vamos recordar MORAES MOREIRA em apenas sete registros (para mim especiais!) do seu formidável repertório: 1) cantando (ao vivo e com o povo) CIDADÃO, dele e Capinam, gravada em 1991; 2) cantando um frevo inovador de sua autoria, que nos remete à história do ritmo, com o auxílio luxuoso do filho, o grande guitarrista Davi Moraes, FREVO CAPOEIRA, gravado em 2015; 3) cantando no Globo de Ouro de 1987, a música SINTONIA, dele com Fred Góes e Zeca Barreto (1986) com participação especial do bandolinista Armandinho, naquela que é uma das mais lindas músicas da sua carreira; 4) declamando um poema na companhia de amigos em que homenageia grandes nomes da cultura brasileira; 5) com a música CHÃO DA PRAÇA, dele e Fausto Nilo, verdadeira pérola da MPB, gravada originalmente em 1978, aqui na versão carnavalesca de Caetano Veloso em grande registro de 2007; e 6) sendo homenageado no baile do bloco parado “Quero Ver Quem Vai” por tudo que representa para o carnaval, na tarde/noite da terça-feira 25/02/2020, no Bar Royal, no Recife antigo, com a música BLOCO DO PRAZER, dele e Fausto Nilo, frevo de 1979. 


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