Abril de 2024- 60 anos de uma página infeliz da nossa história (1)
Francisco Calmon (*)
O extinto matutino carioca O Jornal, que pertencia à cadeia de jornais de Assis Chateaubriand, carregava o slogan de ser o veículo "líder dos Diários Associados". Também foi o porta voz dos setores mais reacionários envolvidos no golpe civil-militar de 1º de abril de 1964. Logo depois da vitória do putsch, o matutino iniciou uma verdadeira campanha de caça às bruxas a todos que, aos olhos de seu dono e seus associados, fossem vistos como "comunistas" e "subversivos", lista que podia eventualmente ser engrossada por desafetos políticos ou que fossem no espaço público fossem vistos como obstáculos .
Visualizar, quase 60 anos depois, as edições de O Jornal nos dias, semanas e até meses que se seguiram ao golpe, em muitos aspectos talvez possa ser comparado ao horror do personagem de um filme de terror que folheia as páginas do diário de um vampiro que a todo dia precisa de mais vítimas para aplacar sua sede de sangue. São editoriais inflamados, artigos assinados diários assinados pelo próprio Chateabriand e por outros articulistas, capas e manchetes com letras garrafais, denúncias e incitação que clamavam aos militares por mais cassações, demissões e prisões dos chamados pejorativamente de "vermelhos", "comuno-fidelistastas" ou "sino-soviéticos". "agitadores", etc.
Na edição do dia 8 de novembro de 1964, um domingo, numa reportagem de página e meia, O Jornal se jactava com o fato do que ele chamava de "revolução democrática" já ter, somente até aquele momento, "livrado o país de 3.180 "subversivos". Na lista estavam incluídos um presidente da República (Jango), dois ex-presidentes (Juscelino Kubitschek de Oliveira/JK e Jânio Quadros), quatro governadores de Estado - até aquele momento, os governadores de Goiás, Mauro Borges, que seria cassado, e do Espírito Santo, Francisco Lacerda de Aguiar, o Chiquinho, forçado a renunciar, ainda tentavam se segurar em seus cargos -, três vice-governadores, dezenas de deputados federais e senadores e cerca de 200 outros deputados estaduais, prefeitos e vereadores espalhados pelo país.
Até aquela momento - e em todo o período ditatorial -, os setores mais atingidos pelos expurgos promovidos pelo regime eram justamente as.Forças Armadas (FFAA). De acordo como O Jornal, 285 militares do Exército já haviam sido punidos, entre os quais são citados nominalmente um marechal (Osvino Ferreira Alves) e 20 generais, todos eles reformados ou colocados na reserva, com exceção do ex-chefe da Casa Militar do presidente João Goulart, Argemiro Assis Brasil, que foi expulso do Exército
Na FAB (Força Aérea Brasileira), 175 integrantes já haviam sido reformados, demitidos ou expulsos, entre os quais estavam seis brigadeiros, sendo que o brigadeiro Dirceu de Paiva Galvão citado como expulso daquela arma. Na Marinha de Guerra, onde o maior expurgo seria ainda maior, por conta da rebelião dos marinheiros e fuzileiros navais ocorrida poucos dias antes do golpe de 1º de abril, até a data da reportagem, o expurgo já havia atingido 248 militares, entre os quais dois almirantes de esquadra, dois vice-almirantes e quatro contra-almirantes. Nesta última arma, o almirante de esquadra (?) Goyano e contra-almirante João Eduardo Secco foram expulsos..
Na lista de O Jornal, além das punições feitas com base no que seria apenas o primeiro Ato Institucional baixado pelos militares golpistas poucos dias depois do putsch de 1º de abril de 1964, também estão incluídas demissões feitas em seus Estados pelos então governadores Carlos Lacerda (Guanabara), Ademar de Barros (São Paulo). Mauro Borges (Goiás) e Ildo Meneghetti (Rio Grande do Sul). A ironia da história é que os três primeiros acabariam sendo engolidos pelos militares golpistas que eles, de olho em suas próprias ambições políticas, achavam que poderiam confiar para construir um atalho em direção ao Palácio do Planalto. Não foi o que aconteceu.
O mesmo pode-se dizer também de JK e Jânio Quadros, que haviam se apressado em se manifestar a favor do golpe de 1º abril. O Juscelino era candidatíssimo à sucessão de Jango e, vitorioso o putsch, também declararia publicamente o apoio à eleição do general Castelo Branco por um Congresso Nacional manietado pelas primeiras cassações de mandatos de parlamentares, em 12 de abril de 1964.
Também é irônico pensar que o império montado por Assis Chateaubriand, formado por emissoras de rádio e televisão e jornais espalhados por vários Estados do país, começaria a ruir justamente durante o período do regime em favor do qual os Diários Associados chegaram a promover, pouco mais de um mês depois do golpe, uma campanha em favor de doações de ouro. Em 1968, quando ele morreu, as Rede Globo de Comunicações, em especial a TV Globo, com o generoso patrocínio dos militares, já começava a montar a poderosa "aldeia global", enquanto já se falava dos graves problemas financeiros dos veículos dos Diários Associados.
Um reflexão se impõe a todos setores preocupados com a defesa e o fortalecimento do Estado de Direito e a democracia no Brasil , um ano depois da aventura golpista protagonizado em 8 de janeiro de 2023 por apoiadores do ex-presidente e ex-capitão do Exército Jair Bolsonaro. Até o momento não se tem notícia de que nenhum militar tenha sido punido ou esteja punido por participação ou cumplicidade, ativa ou por inação culposa, nos atos golpistas. Nem mesmo o coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente da República, que sequer responde à qualquer IPM (Inquérito Policial Militar), mesmo sendo um réu confesso de crime de conspiração contra o Estado de Direito.
Uma diferença abissal se pensarmos que a reportagem de O Jornal mostra que, pouco mais de sete meses do golpe de 1º de abril de 1964, , 608 militares já haviam sido mandados para reserva, reformados, demitidos ou expulsos apenas nas FFAA, enquanto outros milhares respondiam aos processos que ainda estavam em andamento. O efeito fundamental disso foi a completa erradicação de todos os setores nacionalista existentes dentro das três forças e a montagem de um aparato repressivo que as tornaram praticamente impermeável à qualquer influência contra um formação ideológica totalmente reacionária, autoritária e altamente corporativista.
Por outro lado, talvez possamos encontrar algumas semelhanças com a ausência de punição contra os militares cujos planos de conspiração foram frustrados em agosto de 1954 pelo suicídio do presidente Getúlio Vargas, ou pelo contragolpe de 1955, liderando pelo então ministro da Guerra, general Henrique José Lott, que garantiu a posse do presidente eleito, JK. Também não podemos nos esquecer daqueles que conspiraram em 1961 para impedir a posse de Jango depois da renúncia de Jânio Quadros, mas cujos planos foram barrados pela Campanha da Legalidade, iniciada no Rio do Grande Sul, pelo então governador do Estado, Leonel Brizola.
Em comum o fato de que ninguém foi punido naqueles episódios, o que deixou o caminho livre para o amadurecimento de um projeto autoritário, que se analisarmos bem, teve suas primeiras sementes plantadas na emergência dos ideais positivistas que antecederam o golpe da proclamação da República, em novembro de 1889. O grande problema é perceber que, 38 anos depois do fim do regime ditatorial de 1964, ele continua servindo de molde e até alicerce de nossas FFAA, ainda que impregnado pelo mofo da Guerra Fria da década de 1960.
(*) Ex-coordenador nacional da Rede Brasil – Memória, Verdade e Justiça; membro da Coordenação do Fórum Direito à Memória, Verdade e Justiça do Espírito Santo. Membro da Frente Brasil Popular do ES.
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