quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

SOBRE DEUS E O PAI - Elaine Tavares

  28 de janeiro de 2024 - facebook


Sempre fui uma pessoa cheia de religiosidade. Fui criada na tradição católica. Minha mãe era de ir à missa toda a semana, na igreja matriz, e levava muito à sério todas as coisas da fé. Um dia, por acaso, ela começou a ir numa missa que tinha dentro do Hospital Ivan Goulart em São Borja e a gente a acompanhava. O padre fazia uma missa diferente. Botava o povo sentado em círculo, fazia o povo falar. Discutiam-se os problemas da vida real e ele não se importava com as crianças entrando e saindo, em algazarra. Pelo contrário, buscava encantá-las. Eu era pequena, nem sabia, mas ali vivíamos a Teologia da Libertação. Igreja então passou a ter outro sentido e o deus que se nos aparecia não era alguém inatingível, lá no céu, mas uma presença aqui, agora, no outro.

Depois que eu cresci segui por esse caminho. O deus que nos interpela é o irmão caído. Não é um poderoso no trono do céu. Assim que não há barganhas com esse deus. Dá-me isso que eu te dou aquilo. Não. O deus no qual me agarro é esse mesmo, minúsculo, sem poder. É um deus inútil, então? Não para mim. Esse outro caído é para onde movo toda minha energia, minha luta, e onde encontra morada toda a minha ternura. Desperta o que há de melhor em mim e aponta o caminho do comum, comunidade, comunismo.

Digo isso porque nessa caminhada de cuidar do pai com a doença de Alzheimer recebo muita mensagem de gente dizendo: deus está no comando, confia nele, entrega para deus, reza que tudo melhora. Eu agradeço, mas nada espero de deus. Porque penso que essa é uma batalha para se enfrentar com ações concretas, terrenais. No cuidado de uma pessoa com Alzheimer talvez a “reza” seja justamente a decisão de cuidar, de ter perto, de apoiar com afeto, com carinho, com paciência, com presença. A realidade de ver o pai ir se desfazendo na minha frente é tão avassaladora que tudo que posso pensar é: como vou tornar sua vida confortável, alegre, feliz. E isso é um motor para uma série de decisões e de ações que me toma inteira. É uma decisão secular. Não há nada a pedir a deus, porque tudo já está dado. Estão aí o pôr-do-sol, os passarinhos, as canções, as árvores, a brisa, a chuva, os gatos, o canto das cigarras, o voo da coruja, a minha saúde, a minha força, os cachorros, meu sobrinho, meu amor. Há tantas coisas ... Que posso mais querer?

Não penso em deus como um ser que “está no comando”, penso em deus como rede, onde descanso meu corpo cansado ao fim do dia. Quando deito o pai e ele me olha sorrindo antes de fechar os olhinhos, cheio de confiança, porque sabe que ali está alguém que o ama, independentemente de saber quem eu sou, sei que sou eu quem está no comando. E deito ao seu lado, segurando sua mão, cantando uma canção de Cascatinha e Inhana, enquanto sinto nos cabelos o toque delicado do meu deusinho, e sua voz macia a me dizer: venceste mais um dia, tu és foda, guria! E rimos... Porque deus é essa capacidade da leveza em meio ao caos...

Nenhum comentário: