Conjuntura obriga as forças progressistas a pôr as barbas de molho e reavaliar sua atuação política, sua linguagem, seu programa e seus objetivos
Revista Opera - 4 de novembro de 2024
Uma das razões dessa virada ideológica se deve ao desaparecimento de paradigmas na cultura ocidental. Ninguém vive sem referências que alimentem a esperança. Minha geração se nutria do marxismo e tinha como referências reais os países socialistas que, apesar dos pesares, representavam um avanço civilizatório comparado aos países capitalistas, em especial quanto à redução das desigualdades sociais. Tudo isso desabou.
As recentes eleições no Brasil e no mundo comprovam o avanço das forças políticas de direita. Acuados, os raros governos progressistas fazem concessões que contrariam os princípios que regem os programas de seus partidos. Ou adotam posturas autocráticas. Chama a atenção o fato de muitos líderes de direita serem jovens apoiados por jovens.
Perplexa com a perda de espaços e de capacidade de promover mobilizações populares, a esquerda parece não se ter dado conta ainda do grave perigo que o avanço da direita representa para o futuro da humanidade. O clima me recorda Berlim no início da década de 1930, quando todos bailavam pelos cabarés da cidade e conviviam alegremente com aqueles homens uniformizados cujas braçadeiras exibiam a suástica!
Sou da geração de 1968, que promoveu a revolução sexual, se espelhou em Che Guevara, manifestou solidariedade à luta dos vietnamitas contra a invasão dos EUA, aplaudiu os barbudos de Sierra Maestra que libertaram Cuba da órbita da Casa Branca. Geração que se nutria de Sartre e Merleau-Ponty; Reich e Fanon; Marx e Althusser. Geração que enfrentava ditaduras militares, erguia barricadas em defesa da democracia, apoiava greves operárias. Após a redemocratização do Brasil, em 1985, minha geração governou o país por 18 anos!
“E agora, José?/ A festa acabou, / a luz apagou, / o povo sumiu, / a noite esfriou, / e agora, José?”, indagam os versos de Carlos Drummond de Andrade. Quais as causas dessa virada do mundo à direita? Como é possível entender o descaso dos países metropolitanos com a crise climática e o apoio ao genocídio promovido pelo governo sionista de Israel sobre as populações de Gaza e do Líbano? E a ONU, condenada a mero papel decorativo?
Uma das razões dessa virada ideológica se deve ao desaparecimento de paradigmas na cultura ocidental. Ninguém vive sem referências que alimentem a esperança. Minha geração se nutria do marxismo e tinha como referências reais os países socialistas que, apesar dos pesares, representavam um avanço civilizatório comparado aos países capitalistas, em especial quanto à redução das desigualdades sociais.
Tudo isso desabou. Pressionada pelo bloqueio imposto pelos EUA, Cuba enfrenta grave crise econômica, e a China se sustenta no paradoxo de adotar uma política socialista e uma economia capitalista.
Sem paradigmas não se fomentam utopias. E sem utopias não há esperança. O horizonte socialista se apagou do cenário político da esquerda. Líderes de esquerda temem inclusive pronunciar a palavra “socialismo”, estigmatizada pela direita. Receiam queimar a boca. Sabem que socialismo soa como sinônimo de comunismo e não atrai votos.
Não se projeta mais uma alternativa pós-capitalista. Procura-se amenizar os desmandos do sistema, ampliar redes de benefícios sociais aos mais pobres sem, no entanto, combater as causas estruturais da desigualdade e do desequilíbrio ambiental. São raras as vozes de ressonância mundial, como a do papa Francisco, que ousam proclamar, ainda que em termos menos convencionais, que dentro do capitalismo a humanidade não tem salvação. Basta ler as encíclicas assinadas por ele.
Sem teorias que iluminem, sem países que sirvam de exemplo, a esquerda fica à deriva no turbulento curso do rio da história sem saber onde haverá de desaguar. Hoje, Hitler e Mussolini se sentiriam à vontade no cenário internacional. Seriam aplaudidos como guias e exaltados como Trump, mormente se abrissem mão do antissemitismo.
Como o eleitor dará apoio e votos à esquerda se não há quem lhe apresente um antídoto à avassaladora deseducação política promovida pelas poderosas ferramentas midiáticas controladas pela direita? O povo não pensa no global, pensa no local; não foca o social, foca o pessoal. Quer segurança no bairro onde mora, acesso à internet, escola, moradia e emprego; prosperar e se livrar da humilhação de uma existência empobrecida e subalterna.
“Gente é pra brilhar”, proclama Caetano. As redes presenciais, que organizavam amplos setores populares (CEBs, sindicatos, movimentos sociais, núcleos partidários etc.) se esgarçaram. Ao lutar pelo fim do imposto sindical, a esquerda fragilizou toda a estrutura da organização e da mobilização operárias.
Agora, as redes virtuais imperam, destituem seus dependentes de cidadania e neles incutem o consumismo, o narcisismo e o individualismo. A ideologia do empreendedorismo leva multidões a abraçarem o “cada um por si e Deus por ninguém”. Incutido na cabeça do povo, o sistema culpabiliza o indivíduo por não ser capaz de sair da pobreza e obter renda própria.
Como enfrentar tamanho eclipse da utopia que mobilizava multidões de jovens e aqueles que confiavam nas pautas da esquerda? O que temos a apresentar de melhor além de promessas?
Hoje, é incomensurável o número de jovens asfixiados pelo niilismo. Ignoram a ética, são indiferentes à religião, desprezam a política, têm ideias tão desalinhadas quanto os fios de seus cabelos. Sonham apenas em ter um bom emprego e uma vida confortável – um lugar ao sol nesse sistema cada vez mais afunilado e excludente.
Essa conjuntura obriga as forças progressistas a pôr as barbas de molho e reavaliar sua atuação política, sua linguagem, seu programa e seus objetivos.
O mundo retrocede. Da utopia para a distopia. E isso até os cegos enxergam.
(*) Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org
Frei Betto, Chico Alencar, pastor Henrique Vieira, pe. Júlio Lancellotti, Paulo Leminski e muita gente que não cabe nesse pequeno texto são luzes. Posso citar outros dois Chicos, o Buarque e o de Roma. Como disse o primeiro, ao se referir as mulheres de Atenas, miremo-nos no exemplo de mulheres e homens como os citados, assim como em muitos outros (as) menos conhecidos ou desconhecidos para muita gente.
Ontem, por exemplo, escutava uma mulher sábia e guerreira, a Irmã Tea Frigério, missionária italiana que vive no Pará há muitos anos. Ainda voltarei porque estava fazendo outro trabalho, mas precisamos ouvir e/ou trabalhar com gente assim, gente que ama, faz versos , protesta, mas que tem os pés no chão com um coração aberto e amoroso. Pois precisamos disso cada vez mais. Sem isso não faremos a revolução permanente que acontece no cotidiano, e que irrompe com grandes multidões, exatamente quando o cotidiano está encharcado de gente como os que citei ou não,🌻mas que você que nos lê, conhece....
Os mais angustiados são os que esperaram ou esperam a revolução repentinamente, sob a responsabilidade maior de grandes líderes, por cima. Talvez esses últimos anos do avanço da contra-revolução, e que não começou agora, nos sirva para ampliar o nosso olhar de volta ao nosso cotidiano a fim de perceber quantas Tea Frigério em nosso país contribuíram e contribuem para o sucesso de grandes lideres do campo progressista e consequente grandes transformações. Grandes líderes não apenas sujeitos individuais, como sujeitos coletivos, como o MST, por exemplo.
Para olhar o quanto precisamos cuidar da sementeira de grandes líderes. Por que os formados nos anos 1960, 1970 e 1980, já estão com cabelos brancos e estes lugares precisam ser ocupados. O que necessita de propósito com tempo, cuidado e apoio material.
Zezito de Oliveira
“Utopia” ou “distopia”? Entenda a diferença entre os conceitos