Rodrigo Ortega do UOL, em São Paulo
03/11/2024 05h30O ativista Paulo Galo, 35, ficou irritado antes e depois das eleições municipais de 2024.
Durante a campanha, ele notou que até candidatos de esquerda viam trabalhadores de aplicativos como "empreendedores", algo que o incomoda.
O segundo momento de irritação foi quando viu o novo livro do sociólogo Jessé Souza: "Pobres de Direita - A Vingança dos Bastardos".
Quando o UOL publicou uma entrevista com Jessé, Galo fez um post chamando o sociólogo de "pseudointelectual classista que representa o pensamento da classe média branca".
Para ele, o conceito "pobre de direita" coloca a culpa da situação política em um grupo que nem mesmo pensa em termos de direita e esquerda.
Galo ficou conhecido em 2020, quando liderou protestos de entregadores por melhores condições de trabalho durante a pandemia.
Da sua casa no Jardim Guaraú, na zona sul de São Paulo, ele vê jovens de periferia entregues ao discurso da prosperidade individual de Pablo Marçal (PRTB).
Galo rejeita a "conversa batida" de que o pobre "não sabe votar", que é "a ovelha votando na raposa".
Para ele, não há solução que não seja coletiva, mas ela está distante. E a esquerda deve "tomar um couro" nos próximos anos.
O ativista afirma ainda que a direita se alia a criminosos com objetivo eleitoreiro e assistencialista, e isso fez diferença nestas eleições.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Até Boulos embarcou no papo de Marçal
As pessoas acham que a luta contra o capitalismo é uma luta para ficar rico. Quando aparece alguém prometendo esse "milagre" como Marçal, elas compram a ideia, mesmo sem saber se é verdade. É a sensação que importa.
Tem moleque que ganha salário mínimo e gasta tudo em um dia no baile para ter a sensação de ser "rico". O discurso do Marçal cola porque é mais fácil acreditar nele do que numa solução coletiva.
Na eleição, Marçal falou mentiras, Nunes falou mentiras e Boulos falou algumas verdades misturadas com mentiras, como a ideia de que entregador de aplicativo é "empreendedor". A gente sabe que não é como ele pensa, mas ele falou para ganhar eleitorado.
Essa ideia só o ferrou, porque ele não ganhou eleitorado nenhum. Boulos se vendeu como um cara certinho, bonitinho, que fala bem — periferia não é isso, rapaz, o povo não é isso. Está faltando uma leitura do que é o povo.
Direita dominou a quebrada
Aqui na minha quebrada, o domínio é da direita. Não vou ficar falando nomes, porque hoje a direita está mancomunada com o crime.
Quando percebi essa ligação, tentei trazer alguns vereadores do PSOL aqui, mas eles ficaram com medo, acharam que tinha muita ilegalidade e não quiseram colar.
Também chamei um cara do PT para fazer uma feijoada e mostrar como a direita dominou. Ele me deu R$ 300 para ajudar na feijoada e nunca mais olhou na minha cara.
Hoje em dia o crime faz o trabalho de base na periferia. Dá cesta básica, cola telha nas casas, dá curso de muay thai. E não faz isso porque é "bonzinho", é para montar uma base eleitoral e depois vender.
A direita é só a ferramenta que eles usam, porque a da esquerda eles não poderiam usar.
A direita tem nojo de pobre. A esquerda é diferente. Não vou falar que boa parte da esquerda ama o pobre, mas é uma visão diferente.
A direita vê o pobre como um animal que precisa ser encarcerado e assassinado. E boa parte da esquerda enxerga o pobre como um animal que precisa ser domesticado. Se não conseguir domesticar, abandona esse animal na rua também.
'O Boulos era o playboy branco hippie'
O Boulos poderia ter feito uma campanha cem vezes melhor e não ganharia. Não é a campanha, é antes. Esses caras [da direita] estão aqui na quebrada há quatro anos fazendo as coisas, ganhando a moral do povo.
Essas eleições foram a subjetividade contra a materialidade. O Boulos era o playboy branco hippie dizendo que é antirracista, antimachista, anti-homofóbico. Isso é da hora. Só que o povo não se emociona com isso daí. Se você fala que tem emprego, aí vai ganhar atenção.
Não tem solução a curto prazo. Esquece. No longo prazo tem várias pessoas na periferia fazendo coisas bacanas de forma autônoma.
Mas a curto prazo, tanto a esquerda autônoma quanto a eleitoreira podem se preparar para tomar couro por alguns anos.
Por que o Galo não entrou em um partido?
Quando a greve dos entregadores surgiu, a esquerda ficou maluca. Começaram a me ver como um quadro futuro e vieram em massa me procurar.
Entendo a importância de um partido, não sou contra. Mas, para mim, é uma ilusão achar que você vai entrar no sistema e hackeá-lo. Quem entra para "hackear o sistema" é que acaba sendo hackeado, porque o sistema tem muito mais ferramentas.
Depois da Constituição de 1988, um monte de gente revolucionária e radical se burocratizou. O que era um partido da classe trabalhadora virou um CNPJ — e quando você vira CNPJ, você precisa seguir as regras dele.
A esquerda entrou num lugar legalista e não consegue mais sair dele. A direita não é legalista, só que pode descumprir as regras porque não vai ser punida.
Eu faço parte de um partido, sim, mas é o "partido" amplo da classe trabalhadora, sem estatuto, tentando encontrar o trabalhador de forma real. Eu não me vejo no PT ou no PCB, porque não acredito na luta com CNPJ. Para mim, a luta é orgânica, da rua.
Vocês me viram lá cortando o cabelo [antes da entrevista, Galo foi a uma barbearia ao lado de casa]. Olha o papo das pessoas lá. Se filmasse aquele papo, os caras sofreriam uns dez cancelamentos.
É por isso que a esquerda não consegue mais trocar ideia, porque não entende pessoas reais, com erros e acertos. Acham que tudo tem que ser como ela estabelece, e as coisas não são assim. A esquerda está imaginando uma luta. E tem que pegar a luta que tem.
Incômodo com o 'pobre de direita' de Jessé Sousa
Não é só sobre o Jessé, é o pensamento da classe média, de toda a esquerda branca, essa coisa de que tudo está dando mer** porque o pobre "não tem consciência" ou "não sabe votar" ou que o "pobre é a ovelha votando na raposa". Essa conversa batida.
Como se a materialidade [as condições físicas, reais] não fosse a questão. Como se a consciência social dessa "esquerda playboy" tivesse surgido do nada, uma luz se acendesse na cabeça deles e eles passassem a entender o mundo.
Eles foram para a faculdade, tinham livros em casa, condições para impulsionar essa consciência. A materialidade faz cada pessoa ser o que é. Então, por que eu sou o problema e você é a solução?
O Jessé Souza devia criticar essa falta de materialidade, porque não existe "pobre de direita". Existe alienação.
A gente faz um esforço pra olhar para a classe média e dizer: "Mano, essa galera tá na luta com a gente". Eu sempre digo que o dia em que o entregador se encontrar com o dono da pequena hamburgueria e entender que são a mesma classe, vamos fazer uma luta foda.
Aí vem um vacilão como o Jessé dizer que o problema é o motoboy, que ele não sabe votar. A alienação que afeta o pobre também afeta a classe média branca de esquerda. Ela é tão presa à sua própria bolha que só consegue dialogar consigo mesma.
O resultado do Boulos também é exemplo disso. Quando tentam interagir fora da bolha, são arrogantes pra caralh*, chatos pra caralh*, e as pessoas não aguentam.
É como se eles vivessem numa "zona oeste" [uma das regiões mais ricas de São Paulo] própria, sempre com os mesmos grupinhos, porque não conseguem, seja por medo, falta de tato, de sensibilidade ou de viver a vida de verdade, interagir com a realidade e as pessoas ao redor.
Igreja revolucionária e coach de esquerda: dá pra fazer
Dá para fazer uma nova Teologia da Libertação [corrente de pensamento popular no clero da Igreja Católica dos anos 1960 que enfatizava a importância de combater a pobreza e a opressão aos desvalidos] usando a religião evangélica e a própria palavra de Deus.
A Bíblia fala: "Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, lá estarei". Esse é o verdadeiro partido: quando dois ou três trabalhadores estão ali, juntos, em nome de Deus.
E tem também aquela passagem: "É mais fácil o camelo passar pelo buraco da agulha do que o rico entrar no reino dos céus". Isso não é luta de classes? Se o rico pegasse essa riqueza e distribuísse aos pobres, você diria que ali só existe ferramenta para alienar?
A questão é que esse trabalho de base, de utilizar a religião para conscientizar, é algo que a esquerda não quer fazer.
Se a esquerda quisesse fazer um trabalho de base "da hora", dava até para criar "coach de esquerda". Sério, dava para fazer um Pablo Marçal de esquerda.
Era só o cara chegar e falar que o capitalismo é uma merd*, mas que, se você realmente quer prosperar, precisa fazer isso de forma coletiva. Quanto mais o pobre se unir, mais vai prosperar.
Dá para pegar as mesmas ferramentas que alienam e usá-las para desalienar. É só chegar aqui na periferia, tomar uma cerveja e trocar uma ideia normal, do dia a dia. Tem um trabalho possível de ser feito aqui. Dá para cair dentro das necessidades e se conectar. Mas quem é que está fazendo isso?
O problema é que a esquerda parece não saber fazer nada que não envolva voto. O pastor Henrique Vieira foi mexer na base e foi sequestrado pela institucionalidade. E quem ficou na base fazendo o trabalho dele?
PERIFERIA CONTINUA SENDO PERIFERIA EM TODO LUGAR, como afirmou os Racionais MC tempos atrás.
Não moro mais na periferia onde residi décadas atrás, bairro américa,
Aracaju, a qual nem parece mais com o que foi, depois de totalmente urbanizado.
Nos dias atuais, tá parecido com qualquer bairro de classe média baixa ou
de gente pobre remediada.
Como em muitas quebradas, tem as áreas mais pesadas e as áreas
menos , às vezes tão menos que até dá para viver em pouquíssimo estado de tensão ou de sobressalto.
E mesmo na área da pesada em que circulei, a rapaziada do tráfico
garante a “segurança” de quem vive por lá.
A feira dominical me garante o elo de ligação com pessoas e com
o ambiente da comunidade, não moro tão distante, porém mais perto do centro de
Aracaju, e na feira encontro gente que mora no local desde o tempo em que fui liderança
comunitária através da AMABA, associação de moradores, e agente cultural, através do Projeto Reculturarte.
E hoje, domingo, 03 de novembro, encontrei na feira com um outro líder dos anos de 1980 e 1990 e entusiasmado aliado do icônico Jackson Barreto, prefeito de Aracaju do campo da centro esquerda, eleito pela primeira vez em 1985 e que tem a sua grande influência politica na capital, possivelmente encerrada com a derrota de um de seus pupilos nestas eleições, Edvaldo Nogueira, ex-PC do B, atualmente PDT, o qual não conseguiu eleger o seu sucessor. Edvaldo Nogueira foi prefeito desta cidade por cerca de quatorze anos, De 2006 a 2012 , depois 2016 a 2024
Na conversa no meio da feira, uma senhora nos interrompe a conversa
com a afirmação “A AMABA acabou mesmo né, depois que fulano de tal, ocupou a
antiga sede com tráfico e prostituição”.
Depois, por força do
oficio de pesquisador cinematográfico circulei a área da pesada no B.A e visitei
pessoas que moram na região. O que vi e principalmente o que ouvi de uma delas literalmente
é para chorar... O que sustenta a
senhora que nos recebeu é a fé e pertença
a uma igreja evangélica.
Agora a tarde, leio a
entrevista de Paulo Galo, liderança dos trabalhadores
em aplicativos de SP, o que me estimula escrever estas linhas. E escrevo para
confirmar como ele tem muita razão no
que diz..
O B.A de hoje é bem isso que ele descreve com relação ao cenário do crime e da politica nas periferias de São Paulo.
Voltando ao inicio do texto, um bairro que se parece com um de classe média baixa em termos de infra-estrutura e equipamentos públicos
de educação e saúde, mas com governos de centro-esquerda em nossa cidade que não
cuidaram dos aspectos simbólicos, do imaginário, da convivência e da criação e
reforço dos vínculos comunitários.
Isso foi deixado para a indústria cultural, para as igrejas
evangélicas e para o consumo e tráfico de entorpecentes, esse último garantindo
também do seu jeito, “é desse jeito”, um
mercado de trabalho, mesmo ilegal, para
adolescentes e jovens pobres.
Nenhum comentário:
Postar um comentário