Faltou convidar Paulo Freire para nossos encontros de formação e nossas aulas. Mesmo lembrado, efetivamente foi pouco convidado. Me refiro a formação sindical e as aulas da universidade,principalmente. Frei Betto afirmou recentemente, em conferência no Fórum Social Mundial em Salvador, que faz-se necessário fazer uma espécie de "auditoria pedagógica" nos roteiros dos cursos de formação sindical e de algumas organizações e movimentos sociais, muito esquemáticos e "bancários", na acepção freiriana."
Zezito de Oliveira - Educador e agente/produtor cultural.
EDUCAÇÃO PARA MANTER A DESIGUALDADE
Acervo Online
| Brasil
por José Ruy Lozano
dezembro 7, 2017
A elite brasileira, que adora odiar Freire,
compra a peso de ouro para seus filhos o ingresso em colégios
influenciados por ele. Aos filhos dos pobres, resta a disciplina escolar
do século XIX
Pipas de várias cores enfeitam o céu. Alunos observam
algumas subirem e outras caírem, enquanto tentam compreender como a
direção do vento influencia o movimento, além de verificarem na prática
conceitos científicos como aerodinâmica, resistência do ar e força da
gravidade. Tudo na base da experiência concreta, envolvendo tentativas e
erros.
Voltando à sala de aula, professor e alunos discutem, organizados em
círculo, o que se aprendeu com aquela vivência. A diferença hierárquica
entre mestre e estudantes se dilui, e o professor mostra-se mais como um
mediador ou um facilitador do processo de aprendizagem.
Pano rápido. Vamos nos deslocar para outra realidade.
Alunos uniformizados prestam continência e dirigem-se aos policiais,
que também são professores, utilizando os termos “senhor” e “senhora”.
Nos corredores da escola, com paredes cinzentas, não se veem bedéis, mas
guardas, alguns armados. Todos os meninos usam o mesmo corte de cabelo,
todas as meninas têm o cabelo preso.
Na sala de aula, o professor fala e os alunos ouvem. Todos os
estudantes sentam-se enfileirados e qualquer contato entre eles durante a
explanação gera uma advertência. Contabilizadas, as advertências podem
provocar a expulsão do aluno.
As primeiras cenas são parte do cotidiano de um grande colégio de
elite, recém-chegado à cidade de São Paulo. As seguintes são exemplares
da realidade vivida em colégios estaduais administrados pelas polícias
militares de cada estado.
As descrições revelam duas tendências – contraditórias – cada vez
mais presentes no panorama escolar brasileiro. As escolas particulares
mais caras investem em metodologias ativas, considerando os interesses e
as individualidades dos alunos, partindo do pressuposto de que eles,
alunos, são os protagonistas da aprendizagem. Já escolas públicas de
muitos estados brasileiros estão terceirizando sua administração às
polícias militares e apostam na disciplina mais rígida e no ensino mais
tradicional.
Grandes empresários e grupos de investimento estrangeiros compram ou
erguem escolas com tecnologia moderna e formação de ponta, onde os
alunos aprendem a explorar o mundo por uma interação lúdica. Enquanto
isso, o deputado Jair Bolsonaro espalha nas redes sociais vídeos
propagandeando as virtudes das escolas administradas pela PM, cujo
mantra é lei e ordem.
Uma agridoce ironia: o ponto cego dos discursos das escolas de elite é
admitir que as metodologias que propõem são em grande medida inspiradas
em teorias da educação que tiveram Paulo Freire como um de seus
expoentes.
Geralmente, esses colégios mencionam programas de formação de
universidades norte-americanas, como Harvard e Stanford. O que não dizem
é que obras como Pedagogia da Autonomia, um clássico do
pensador pernambucano, estão na bibliografia básica das faculdades de
educação inspiradoras de seus projetos pedagógicos.
A elite brasileira, que adora odiar Freire, compra a peso de ouro
para seus filhos o ingresso em escolas em muito influenciadas por ele,
bem como por outros pensadores considerados progressistas no campo da
educação, como Jean Piaget ou Maria Montessori.
A ironia continua. Aos filhos dos pobres, resta a disciplina escolar
do século XIX. Ainda que justamente pensando neles Paulo Freire tenha
elaborado suas teses, a eles são negadas sua influência e seu prestígio.
Mas a diferença talvez não seja tão despropositada ou surpreendente
como se pode pensar à primeira vista. Afinal, nas escolas públicas
estudam os pobres, que serão no futuro funcionários dos alunos ricos.
E o que se espera do trabalhador pobre, a não ser obediência?
Aos ricos, proporciona-se liberdade. Dos ricos, esperam-se
criatividade, “empreendedorismo”, autonomia. Ao pobre, destinamos o
adestramento, a normalização foucaultiana de condutas, a padronização de
comportamentos.
Acima de tudo, não se deve incentivar o questionamento, tampouco uma
perspectiva crítica dos filhos das classes menos favorecidas. Isso deve
ser reservado àqueles capazes de pagar mensalidades astronômicas, que
compram um desenvolvimento cognitivo “diferenciado” para seus filhos.
Assim a educação brasileira cumpre seu papel: o de continuar sendo um
dos instrumentos mais terríveis de manutenção da desigualdade social.
*José Ruy Lozano é sociólogo, autor de livros
didáticos, conselheiro do Conselho Independente de Proteção à Infância
(Cipi) e coordenador pedagógico geral do Colégio Nossa Senhora do
Morumbi – Rede Alix.
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