Seg, 11 de junho de 2018, 10:44
Fonte: http://www.ufs.br/conteudo/61808-crime-de-lesa-cultura-atentado-contra-a-pintura-mural-da-igreja-matriz-de-porto-da-folha
Fonte: http://www.ufs.br/conteudo/61808-crime-de-lesa-cultura-atentado-contra-a-pintura-mural-da-igreja-matriz-de-porto-da-folha
No contexto do bicentenário da Paróquia Nossa Senhora da Conceição
(1821-2021), na cidade de Porto da Folha, no sertão de Sergipe, a
campanha pela reforma da Igreja Matriz, proposta pelo pároco
Melchizedeck de Oliveira Neto, em 2016, desencadeou na comunidade
católica uma campanha para a preservação da pintura mural do altar mor,
com a criação de um abaixo assinado em 16 de maio de 2018, reivindicando
o tombamento da pintura realizada por Frei Juvenal Vieira Bomfim, em
1970.
A argumentação de um dos líderes dessa campanha pela
arrecadação de fundos para a reforma é que “não podemos deixar que uma
história se perca em meio a debates claramente político-ideológicos”.
Segundo Glauber Resende, “a pintura, devido a dificuldade de remoção,
será reproduzida em outro local da igreja, sem prejuízo para sua parte
em nossa história”. Outro defensor da retirada do mural, Luiz Fontenelli
argumenta que “nada mais justo que o altar seja reposto da forma em que
foi construída [sic], pois é de suma importância resguardar a nossa
verdadeira história” (CINFORM, 4/6/2018: p. 97 e 98).
Esse não é o
entendimento de instituições culturais do Estado de Sergipe, como o
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, que defendem a permanência
do afresco, opinião compartilhada pelo professor emérito da Universidade
Federal de Sergipe, José Paulino da Silva. Setores da Igreja Católica,
como a Comissão Diocesana de CEBs da Diocese de Garanhuns, também apoiam
a manutenção do mural na Igreja Matriz.
Essas manifestações
ecoaram no Conselho Estadual de Cultura, que, em reunião do dia 15 de
maio de 2018, deliberou pelo início do processo de tombamento, nomeando o
conselheiro Fernando Aguiar como relator. Como medida preventiva, o
presidente do Conselho, Antônio Alves do Amaral, oficiou o bispo da
Diocese de Propriá, Dom Vítor Agnaldo de Menezes, e o pároco de Porto da
Folha, Melchizedeck de Oliveira Neto, sobre o andamento do processo
(Ofícios n. 19/2018 e n. 20/2018, respectivamente).
A
pintura mural da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Porto
da Folha, realizada por Frei Juvenal Bomfim, no ano de 1970, é um
exemplo da representação artística das ideias do Concílio Vaticano II
nos sertões nordestinos. Como outros artistas, como o espanhol Mino
Cerezo Barredo, o frade realizou a representação de Cristo rodeado por
camponeses e operários como forma de “exprimir o conceito da libertação
dentro do campo católico cristão” (FRADE, 2012: p. 57). Nas suas
próprias palavras, o mural representou o “Cristo sertanejo, moreno,
repartindo o pão, aves e flores, que lembram a confiança no Pai. Mais
ainda: toda a vida do lugar: feira, vaqueiros, agricultores,
bordadeiras, professora, e o rio São Francisco” (Citado na Carta da
Comissão Diocesana das CEBs da Diocese de Garanhuns, 25/5/2018).
Desse
modo, seguindo as diretrizes do Concílio Vaticano II, a pintura dá a
predominância e ênfase à figura de Cristo, mas um Cristo sertanejo e
moreno, repartindo o pão. Acima dele temos a imagem do Espírito Santo,
que pode ser associada ao próprio Deus, parte da Santíssima Trindade,
juntamente com Deus Pai e Deus Filho. A simbologia da pomba branca
remete a paz e raios de fogo, irradiando sua força sobre todos que
habitam as margens do rio São Francisco.
A preocupação social da
arte brasileira, desde o modernismo, foi marcada tanto pela denúncia
social, quanto por temas populares, com tendências figurativas evidentes
sob a influência do muralismo mexicano. Para Ana Paula Baptista (2002),
a “arte moderna e a arte sacra têm no mural seu ponto de inflexão”, na
medida em que, no período de 1943-1955, se privilegiou pinturas murais
em templos católicos com encomendas para artistas modernos, como Candido
Portinari e Alfredo Volpi. Portanto, a pintura mural de Frei Juvenal
Bomfim não destoava de iniciativas similares patrocinadas pela Igreja
Católica, mesmo antes do Concílio Vaticano II.
Por outro lado,
podemos situá-la no contexto da resistência artística ao autoritarismo
vigente e tributário do ar irrespirável do seu tempo (1970),
compartilhando, com artistas como Glauber Rocha, de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e de Antonio Callado, com Quarup (1967), a busca pela recuperação da cultura popular autêntica, sob a influência do romantismo revolucionário (RIDENTI, 2006).
Em
um momento de aprofundamento da discussão do tombamento da pintura
mural da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição no Conselho
Estadual da Cultura, fui surpreendido pela ação inescrupulosa de
criminosos que destruíram parte da pintura mural, na madrugada do dia 5
de junho de 2018. A esse crime de lesa cultura temos que responder com o
tombamento e restauração deste patrimônio histórico da cidade de Porto
da Folha por parte do Estado de Sergipe.
Essa experiência, por
certo traumática para a comunidade local, pode servir como uma
importante prerrogativa para que se consolide entre nós a ideia de que o
direito ao passado é uma das dimensões fundamentais da plena cidadania.
Toda essa mobilização comunitária reitera que o registro da memória
social deve ser definido a partir da sociedade e que cabe ao Estado
garantir, conjuntamente, a preservação do bem cultural. Afinal, a arte
tem que estar em toda parte.
Bibliografia
BAPTISTA, Anna Paola P. O Eterno ao moderno: arte sacra no Brasil, anos 1940-50. UFRJ/IFCS, 2002 (Tese de Doutorado).
CINFORM. Ideologia X religiosidade (Caderno Municípios). Aracaju, ano 35, ed. 1834, p. 94-98.
DIOCESE DE GARANHUNS. Carta aberta da Comissão Diocesana de CEBs. Sítio da Cruz, 25 de maio de 2018.
FRADE, Gabriel. A arte sacra e a liturgia. Revista de Cultura Teológica. V. 20 - n. 80 - OUT/DEZ 2012, p. 53-60.
RIDENTI,
Marcelo. Cultura e política: os anos 1960-1970 e sua herança. In:
FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O Brasil Republicano: O Tempo da Ditadura. V. 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
*Antônio Fernando de Araújo Sá é professor do Departamento de História da UFS. E-mail: afsa@ufs.br
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